Era uma vez em Nova York

Henrique de Azevedo

 

Era uma vez em Nova York, filme mais recente de James Gray (Amantes, Os Donos da Noite), chega enfim aos cinemas brasileiros após sua exibição no Festival do Rio de 2013. À época, o filme recebia o título provisório “O Imigrante”, posteriormente corrigido para “A Imigrante”, para então estrear com o nome atual, referente a outros clássicos da formação cultural americana assinados por Sergio Leone (Era uma vez no Oeste – 1968, Era uma vez na América – 1984).

A confusão de gênero se dá pela dualidade do título original do longa (The Immigrant), mas em verdade ambos fariam jus à trama. O filme conta a história de Ewa Cybulska (Marion Cotillard), polonesa que foge da Primeira Guerra Mundial junto da irmã Magda (Angela Sarafyan), em direção aos Estados Unidos. Ao aportarem em Ellis Island, Magda é diagnosticada com uma doença pulmonar e é retida em quarentena. Já Ewa, por problemas com a sua documentação, se vê obrigada a cooperar com Bruno (Joaquin Phoenix), imigrante de origem judaica e rufião local, que suborna os guardas para permitir a sua entrada em Nova York e promete ajudá-la a resgatar a irmã. Desse modo, Ewa começa a se apresentar como dançarina em seu número teatral e a se prostituir. Eventualmente, ela conhece o ilusionista Emil (Jeremy Renner), primo de Bruno, que também tenta socorrê-la a sua maneira. Todos eles representam o imigrante do título, que faz aquilo que está ao seu alcance para sobreviver naquele novo mundo que vai adquirindo a sua forma.

James Gray é afeito a esses tipos. São notáveis as personagens de sua obra que, assim como o próprio diretor, possuem origem russo-judaica e se deparam com conflitos envolvendo essa tradição moral, seja o filho pródigo em Os donos da Noite ou o herói romântico de Amantes. Em diversas entrevistas sobre Era Um Vez Em Nova York, Gray afirma esse caráter autobiográfico, dizendo que seus próprios avós, que chegaram aos EUA sem pronunciar palavra em inglês, o inspiraram na criação de diálogos e cenas inteiras, como o tratamento dos imigrantes em Ellis Island, o deparo com comidas desconhecidas.

No entanto, mais do que um retrato sociológico do American Dream, Era uma vez em Nova York se destaca na análise teológica dos dilemas enfrentados por Ewa. Desde o início da sua relação com Bruno, este já descobre a sua característica principal, o sacrifício em face da irmã (“Because for you, your sister’s well being is more importante than your own”). Magda significa para Ewa o ideal de virtude, e por isso ela furta, se exibe no teatro e se prostitui para poder preservá-la. Ao mesmo tempo, o que Magda é para Ewa esta representa para Bruno e Emil. Ambos se encantam pela sua pureza e beleza angelical e, como testemunhas do seu martírio, veem nela a possibilidade da própria salvação.

Seria fácil simplesmente justificar as atitudes do trio apenas observando as suas boas intenções (a irmã, a paixão, a felicidade). No entanto, o filme vai além ao mostrar a amargura dos personagens e o peso de suas ações. Ewa, de tradição católica, se vê a todo o tempo manchada pelo pecado e clama pelo perdão. Bruno, com a aproximação de Ewa, passa a não mais conseguir conviver com a própria imoralidade, tendo enfim noção verdadeira da perdição na qual se encontra. Ambos repetem, em momentos distintos do filme, que não são nada (“I am nothing”), dada a gravidade dos atos que cometeram.

No fundo, Era uma vez em Nova York é o drama da própria condição humana, que se encontra entre a exigência de perfeição moral e sua inerente falibilidade. Isso fica claro no principal momento do filme, quando Ewa, no auge do seu desespero, decide procurar o auxílio religioso, retomando a sua tradição católica. A cena se inicia com a sua entrada na Igreja, com toda a preocupação estética de passar a ideia de inferioridade e submissão, ressaltando a grandiosidade da arquitetura interna, até a sua caminhada ao confessionário, onde é observada sorrateiramente por Bruno. Lá se apresenta o dilema moral por excelência: Ewa, desolada, revela toda a sua trajetória e, já completamente sem esperança, assume que sua alma estaria para sempre condenada, pois não conseguiria se afastar do pecado. O padre então apresenta a resposta doutrinária – por maior que tenha sido a punição divina pelos seus erros, a possibilidade de perdão é sempre infinita, desde que ela se afastasse da fonte daquele mal e se dedicasse à sua salvação. Somente a partir daí, temos aos poucos o arco da sua redenção, que passa necessariamente pelo aprendizado do perdão e vai diretamente influenciar a saga do próprio Bruno.

Era uma vez em Nova York, desse modo, é um filme poderoso a partir do momento que avança do épico de construção da cidade pelos imigrantes para a apresentação do paradoxo teológico e mergulha no íntimo de cada personagem. Tanto Ewa quanto Bruno ou Emil estão não apenas inseridos perfeitamente no contexto apresentado pelo diretor – a luta dos imigrantes num ambiente estranho e muitas vezes hostil – mas materializam diferentes respostas para os problemas morais ali encontrados, gradualmente convergindo para o ideal de virtude.

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