Especial 11 de setembro Parte 4 – Uma nova música para os nossos tempos difíceis

http://youtu.be/YjeWbgrKMLM

Por Leandro Oliveira

No dia 17 de setembro de 2001, ao ser perguntado sobre os eventos da semana, Karlheinz Stockhausen comenta em uma conferência em Hamburgo:

“Trata-se da maior obra de arte imaginável em todo o cosmos!” E segue: “Mentes que realizam em um ato aquilo que não poderíamos sequer sonhar em música, pessoas ensaiando como loucos por dez anos, preparando-se fanaticamente para um concerto, e então morrendo – imagine o que aconteceu lá… Eram pessoas que estavam tão focadas naquela única performance, quando então 5.000 outras pessoas são enviados no mesmo momento para outra vida. Eu não poderia ter feito isso… Por comparação nós compositores somos nada. Artistas algumas vezes tentam ir para além dos limites do que é factível ou concebível, e então podemos acordar e abrirmo-nos para o outro mundo.”

Perguntado se, no caso, não deveria prevalecer a distinção entre o que é crime e o que é arte ele responde:

“É um crime apenas por que as pessoas não concordam. Elas não foram ao ‘concerto’. Isso é claro. E não foram avisadas que iriam morrer [draufgehen]. O que aconteceu lá espiritualmente, esse salto para fora do que é seguro, para fora do ordinário, fora da vida, isso acontece algumas poucas vezes, raramente em arte.”

Não eram as palavras de um artista-profeta, um transcendentalista a advogar uma arte como revelação, um meio para o desenvolvimento espiritual. Eram palavras que expressavam uma visão de arte e música inaugurada pelas vanguardas do século XX.  E nesta visão de arte, que é uma visão de mundo, Stockhausen e seus acólitos se excediam neste tipo de totalitarismo destrutivo de sua própria “imaginação”, colocando como o mais alto valor da arte a ousadia, resumidas no slogan “l’audace, toujours de l’audace”. Buscando o eterno contraste com o convencionalismo acusam a timidez de todos os contemporâneos que não caíram de joelhos a seus pés e à doutrina que recomendavam.

Embora não soubesse, Stockhausen estava já falando de outro mundo. O que morre definitivamente no dia 11 de setembro de 2001 é sua “nova música”, inaugurada teoricamente pelo aiatolá Pierre Boulez na famosa fatwa de 1952:

“Qual a conclusão? O inesperado: afirmamos, por nossa vez, que todo músico que não sentiu – não dizemos compreendeu, mas sentiu – a necessidade da linguagem dodecafônica é INÚTIL. Porque toda a sua obra se situa aquém das necessidades de sua época.”

Boulez fala, entre outros, para Stravinsky, que naquele mesmo ano se volta ao serialismo. E o que o compositor quer é muito mais do que a liberdade pessoal (e a subvenção estatal): é a normatização da idéia de que a arte tem uma história distinta daquela da Cultura; acreditando que esta história (talvez com H maiúsculo) impõe obrigações inexoráveis para com os artistas sérios, ele, Artista (definitivamente com A maiúsculo) se torna prosélito de sua maneira particular de ver a arte como a necessidade para a Cultura. Em resumo, vê a si e sua obra como o ponto culminante de toda a produção até ele.

Ambos são apenas desdobramento do hegelianismo, para alguns; seu efeito é, para forçar a mão, demoníaco na maior parte das vezes. Le Corbusier parte do mesmo “sistema mental” para defender suas aberrações urbanísticas; Godard tem uma atitude equivalente para suas aberrações cinematográficas. E o que há tanto no arquiteto quanto no cineasta e estes compositores é menos “estetismo”, “formalismo” ou coisa que o valha: na verdade, é o cultivo à egolatria e à indiferença daquilo que passa a sua volta, uma estética de criança mimada, vazia de apelo não somente para o público mas para a maior parte dos artistas seus contemporâneos.

É interessante como tais “profetas” confundam reincidentemente a vida humana com os meios materiais que lhes estão dispostos para suas criações; não deixam de tornar os ouvintes meros objetos de seus devaneios, os seres humanos a fantasia da mente do criador (aqui com “c” minúsculo, indubitavelmente).

Digo que tal música morre definitivamente no dia 11 de setembro de 2001 não por deixar de ser praticada ou defendida – é praticada e defendida até demais nas universidades brasileiras -, mas porque ali, uma semana depois do evento, nas palavras de Stockhausen mostrou toda sua desumanidade monstruosa.

Em 2003, John Adams recebeu o Pulitzer Prize por “On The Transmigration of Souls”. Ela é resultado de encomenda realizada pela Filarmônica de Nova Iorque em memória às vitimas do 11 de Setembro. Nas palavras do compositor

My desire in writing this piece is to achieve in musical terms the same sort of feeling one gets upon entering one of those old, majestic cathedrals in France or Italy. When you walk into the Chartres Cathedral, for example, you experience an immediate sense of something otherworldly. You feel you are in the presence of many souls, generations upon generations of them, and you sense their collected energy as if they were all congregated or clustered in that one spot. And even though you might be with a group of people, or the cathedreal itself filled with other churchgoers or tourists, you feel very much alone with your thoughts and you find them focussed in a most extraordinary and spiritual way (…)

I want to avoid words like “requiem” or “memorial” when describing this piece because they too easily suggest conventions that this piece doesn’t share. If pressed, I’d probably call the piece a “memory space”. It’s a place where you can go and be alone with your thoughts and emotions. The link to a particular historical event–in this case to 9/11–is there if you want to contemplate it. But I hope that the piece will summon human experience that goes beyond this particular event. “Transmigration” means “the movement from one place to another” or “the transition from one state of being to another.” It could apply to populations of people, to migrations of species, to changes of chemical compositon, or to the passage of cells through a membrane. But in this case I mean it to imply the movement of the soul from one state to another. And I don’t just mean the transition from living to dead, but also the change that takes place within the souls of those that stay behind, of those who suffer pain and loss and then themselves come away from that experience transformed.

Muito antes de Stockhausen vir com sua piadinha de mau-gosto, uma música já vinha sendo cultivada – na América por John Adams, Philip Glass, Steve Reich, no leste europeu por Sofia Gubaidulina, Henrick Gorecki ou Arvo Pärt – plena de consonância com as necessidades de sua época e respectivas comunidades. Música não necessariamente nova, não necessariamente para um novo Homem; apenas música para os nossos difíceis tempos.

Leandro Oliveira é professor de história da cultura, é anfitrião do “Falando de Música” e do curso de apreciação musical do projeto “Itinerante” da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.

[CONTINUA AMANHÃ]

2 comentários em “Especial 11 de setembro Parte 4 – Uma nova música para os nossos tempos difíceis

  1. É Ricardo, Webern sempre tem o que dizer. Triste que acabe descontextualizado e instrumentalizado pela “patota” serial… Valeu pelo link, vou propor para a Dicta um ensaio sobre este e outros barbarismos musicais recentes.

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