Especial 11 de setembro parte final – A Babel do Rancor

1.

Próximo

E difícil de abarcar está Deus.

Mas onde existe o perigo também

A salvação é pródiga.

Friedrich Hölderlin, Patmos.

De todos os 11 de setembro que devem ser lembrados, não podemos nos esquecer daquele que aconteceu em 1805, quando a família e os amigos de Friedrich Hölderlin deixaram-no nas mãos do Dr. Ferdinand Autenrieth, responsável pela clínica para os mentalmente instáveis em Tübingen, cujo peculiar método de cura era colocar a face do paciente em uma máscara para que este fosse impedido de gritar.

Hölderlin era então um jovem poeta, autor de algumas odes, alguns hinos, um romance epistolar (Hyperion), uma tragédia inacabada (A morte de Empédocles) e se preparava para escrever os hinos tardios que lhe dariam a posteridade tão almejada, entre eles Patmos, em que se colocava no lugar de ninguém menos que São João Evangelista, ao apóstolo que, exilado na ilha grega do mesmo nome, teve a visão daquilo que hoje chamamos de apocalipse, a revelação das últimas coisas.

Entre 1800 e 1805, ele alternava estados de perfeita lucidez com outros de uma instabilidade psíquica que ninguém conseguia compreender. Ao voltar a pé de uma viagem que fez à França em 1802, ficou fascinado pelas ruínas gregas que havia encontrado pelo caminho. Seus amigos em Stuttgart ficaram chocados com sua aparência quando ele finalmente retornou. “Estava pálido como um cadáver, muito magro, tinha os olhos encovados e com expressão bravia, cabelo e barba compridos e vestia como um pedinte”, disse Friedrich Mattheson, um de seus colegas mais próximos. No mesmo ano, soube que sua então amante, Susette Gontard, havia morrido de uma moléstia incurável e fulminante.

Os 231 dias que passou na clínica de Tübingen não melhoraram o seu estado – aliás, ao que parece, só contribuíram para agravá-lo. Se não fosse por Ernst Zimmer, um modesto marceneiro que tinha lido Hyperion na sua juventude e que resolveu acolhê-lo numa torre contígua à sua casa, Hölderlin teria sido abandonado sem remorsos. Era um caso sem solução. Os médicos afirmavam que não duraria muito tempo.

Viveu por mais 36 anos, isolado na torre de Zimmler, recebendo poucos visitantes, em absoluto silêncio, escrevendo e reescrevendo alguns projetos de hinos que jamais seriam concluídos. Ninguém da sua família o visitou, muito menos seus amigos mais famosos, como Hegel e Schelling, com quem convivera no seminário em Tübingen durante a juventude em que presenciou, como uma testemunha privilegiada, o nascimento daquilo que seria o idealismo alemão.

Um ano após a internação de Hölderlin, Georg Friedrich Hegel dava os últimos retoques na sua Fenomenologia do Espírito e, ao saber da invasão das tropas napoleônicas em Iena, viu Napoleão passar na frente de sua janela e disse a um amigo: “Eu vi o espírito do mundo passando pela minha cidade a cavalo”.

O Imperador francês – como queria ser reconhecido pela Europa toda – havia dominado a Prússia e a Áustria com facilidade. Até 1815, o continente tinha sido vítima de uma expansão militar poucas vezes vista, só comparável o que aconteceria cento e vinte anos depois quando a Alemanha nazista revidou (também com facilidade) com a Ocupação francesa durante a Segunda Guerra Mundial.

E, enquanto isso, Hölderlin ficava quietinho na sua torre e Hegel elaborava um novo sistema filosófico que simplesmente resolvia todos os problemas da própria Filosofia. O mundo entrava numa espiral descendente que parecia não ter fim.

2.

For the perverse unreason has its own logical process.

Joseph Conrad, The Secret Agent

 

Se Hegel tinha visto o “espírito do mundo” trotando a cavalo na frente da sua casa e Hölderlin tentava alcançar o mesmo apesar da distância imposta pela sua suposta loucura, o que os nova-iorquinos – e o resto do planeta – viram quando as Torres Gêmeas desabaram no dia 11 de setembro de 2001 foi um spiritus mundi que até então tinha resolvido ficar oculto e, ao se revelar daquela maneira, impediu a possibilidade de que alguém emitisse sequer um grito, tal como a máscara que paralisava os rostos dos pacientes na clínica de Tübingen em 1805.

Este spiritus mundi lançou sua sombra pelos próximos dez anos sob a forma de três conseqüências:

– Apesar de termos testemunhado um dos eventos mais aterrorizantes já ocorridos, avisando-nos claramente de que há um Mal que atua neste mundo, preferimos o que carinhosamente apelidei de “a opção da avestruz”: encolhemos a cabeça, a enterramos bem no fundo do solo e nos negamos a ver que a maldade está nos detalhes e nos nossos corações, causando assim uma doença que se alastra pela sociedade ocidental e que poucos conseguirão diagnosticá-la quando ela surgir em sua verdadeira face;

– A recusa ao ver o Mal também paralisou qualquer espécie de reação correta e justa que se possa meditar a seu respeito. Se por um lado reagir contra o Terror pode levar a ações consideradas extremas (ex: qualquer espécie de guerra, este monstro que invade a consciência dos pacifistas), por outro lado o quietismo que imperou nos meios considerados progressistas (disfarçado de “tolerância” e “pluralismo”) impede que se aja como qualquer ser humano racional faria diante de tal situação (ou seja, a tão boa e tão esquecida legítima defesa). Tal dilema só leva à uma única manifestação: a da apatia, que atinge o indivíduo, e a da entropia, que corrói a sociedade política;

– Contudo, a apatia e a entropia não duram para sempre. Existem dois caminhos quando surge o momento da ação: ou temos aquilo que Albert Camus chamava de a revolta justa, em que a pessoa reage diante de um mal insuportável e que precisa parar de existir de qualquer forma – e esta reação é feita com a perfeita consonância entre os meios e os fins; ou temos o puritanismo protegido pela ética do rancor e do ressentimento, comportamento característico de quem vê o mundo pelos filtros de qualquer espécie de ideologia política, seja de direita ou de esquerda.

Foi este mesmo rancor que motivou os terroristas que destruíram as Torres. Para eles, o próprio World Trade Center era um símbolo do atrito entre o Ocidente e o Islã. É um erro de julgamento típico de quem vê o mundo pela perspectiva apocalíptica. Se alguém quiser encontrar um sentido para a destruição daquela tão engenhosa construção arquitetônica, deve voltar para o episódio da Torre de Babel, narrado no livro do Gênesis. Ali, havia apenas a velha e boa hubris, a rebelião que o homem ocidental sempre fez contra a ordem do ser desde que adquiriu este pecadillo chamado consciência.

O ataque ao WTC foi a prova de que ainda era possível se pensar em executar uma atrocidade nos mínimos detalhes, pelo menos desde que o Ocidente resolveu esquecer de que houve algo chamado Shoah. Era uma nova variação do Mal Lógico: a construção minuciosa de uma ação irracional que, para citar Joseph Conrad, possui um processo de racionalização que poucos ousam compreender. Por uma ironia trágica, o alvo desta ação era também o outro lado da moeda: a ciência exata da arquitetura e da engenharia, filhotes do cientificismo e do positivismo, os fenômenos que mostram apenas os fatos e nada mais, sendo destruídos pelo mistério poderosíssimo de um espírito que não hesita ser questionado.

Se alguém chegar a esta conclusão perturbadora, não pode esquecer ir para o próximo passo: o de que o Ocidente e o Islã não são tão diferentes como pensamos. Ambos sofrem do mesmo dilema: a corrupção de seus princípios mais duradouros. O Ocidente não acredita mais na ordem do ser que o fundou; o Islã acredita nela até demais, mas, ao mesmo tempo, deixou-se infectar pelas ideologias progressistas ocidentais – tais como o marxismo e o desconstrutivismo – e isso acentuou ainda mais a sua característica apocalíptica, provocando o que um scholar como Richard Landes chamaria de jihad global. Agora, os terroristas não atacam para impor a sharia em alguns lugares; eles querem sua imposição no mundo todo, de preferência usando como meio a criação de uma comunidade fundada no terror e no sofrimento, uma comunhão de vítimas que sofrem em função de um projeto muito maior, a da libertação da raça humana dos grilhões da escravidão espiritual.

O resultado disso tudo é que vivemos hoje em um mundo de violência aleatória – e ela não precisa ser explícita, com explosões, guerras e tiros, mas permeia cada partícula do relacionamento humano, em especial o modo como o homem lida com aquilo que lhe é mais precioso: a sua relação com a Palavra. Como numa lógica de alucinação, percebemos que a queda daquelas duas torres nos levou a uma confusão de valores, a uma Babel do rancor. Ninguém sabe mais como denominar algo, como analisar corretamente algum evento. Tudo começou a ser visto como se estivéssemos em uma névoa da ignorância, com a diferença que não teremos um tabernáculo no final desta peregrinação.

Em seu magistral A origem da linguagem, Eugen Rosenstock-Huessy explica detalhadamente as quatro doenças que podem atacar o nosso envolvimento com a Palavra: a guerra, a revolução, a crise e a desintegração. Em um resumo breve, podemos definir cada doença da seguinte forma: a primeira ocorre quando não se escuta o que o inimigo diz; a segunda acontece quando não se diz ao amigo o que fazer ; a terceira se demonstra pela gritaria inarticulada que impera na sociedade; e a quarta é representada pela repetição hipócrita de termos e conceitos que ninguém mais entende a que se referem no mundo concreto.

Na época de Rosenstock-Huessy essas doenças foram delimitadas (meados da década de 30 do século passado) como se fizessem parte de uma queda ontológica do ser, como se um estado sucedesse o outro e assim por diante. Hoje isso não é mais possível: as quatro doenças da linguagem vivem simultaneamente na nossa sociedade, impedindo-nos de identificá-la e rematá-la com uma profilaxia adequada. Naquele mesmo período, outro alemão, Hermann Broch, escrevia em 1934 de que a humanidade se apoderou de um desprezo peculiar pelas palavras. Ninguém mais conseguia conversar decentemente com o outro ao seu lado. Qualquer espécie de debate racional era impossibilitado pelo fato de que um tentava dominar o seu semelhante impondo a sua visão-de-mundo. A palavra servia como meio do poder do forte sobre o fraco e nada mais.

Entre Rosenstock-Huessy e Broch, é provável que o último seja um autor mais atual para os nossos tempos pós-11 de setembro. Perdemos a capacidade de persuasão, de convencermos o próximo de que ele pode estar errado e este perdeu a capacidade de nos convencer que podemos também estar errados. Broch afirmava que a recuperação da Palavra, a que o autor do Gênesis e o apóstolo autor do Evangelho de São João compreendiam com a mesma exatidão, apesar da distância de dois mil anos, só poderia acontecer com o retorno de um mito que restaurasse a ordem do sagrado, a ordem do ser que nos fizesse ver os limites e as extensões da nossa responsabilidade. Contudo, ele reiterava que poucos entenderiam sobre o que falava tal mito; é provável que, justamente por causa da crosta de incompreensão que desceu sobre a consciência humana, o mito só poderia ser decifrado não por meio da Palavra e sim por meio do Seu silêncio.

E aqui voltamos ao recolhimento de Friedrich Hölderlin. Para René Girard, em seu Achever Clausewitz (livro responsável por aglutinar muitas das idéias expostas nesse texto e que foi traduzido recentemente – e de forma impecável – por Pedro Sette-Câmara), a aparente loucura do poeta alemão não era loucura em hipótese nenhuma. Era uma forma de manter a sanidade espiritual em um mundo que se preparava para a loucura apocalíptica sobre a qual estamos sendo jogados como os antigos cristãos no Coliseu romano. O silêncio de Hölderlin é o silêncio da Palavra diante da ambigüidade terrível do mundo; ao mesmo tempo,segundo o pensador francês, é neste mesmo silêncio que se encontra a nossa salvação. Eis aí um raciocínio perigoso que pode nos levar ao quietismo moral tão duramente criticado por Michael Oakeshott em seu The politics of faith and the politics of skepticism.

Não por acaso, foi a análise deste mesmo silêncio que salvou a carreira de Martin Heidegger, o filósofo brilhante que se enamorou com o regime hitlerista. Girard argumenta que o alemão não entendeu nada a respeito desta retirada do mundo. Da nossa parte, somos obrigados a colocar tudo em suspensão, uma vez que a cautela de quem já vive no apocalipse nos leva a esta atitude.

3.

Like Aristotle down a well,

I´ve no conception where the hell

things come from, but I do know Evil´s

to be fought, not figured out.

Who says the Self is history

is suffering pinkeye. Let me

suggest they line up, A to Z,

and fuck themselves like democrats.

Joseph Brodsky, Speech over spilled Milk.

Por sua vez, o poeta russo Joseph Brodsky, que viveu uma outra forma de silêncio – o dos Gulags e do exílio exterior – propunha uma reação diferente. Conforme conta em seu ensaio Um discurso inaugural, proferido a uma classe de recém-formados da Faculdade de Princeton a partir do famoso ensinamento cristão de dar ao inimigo a outra face, a pessoa que recebe a violência dessa forma deve sempre se lembrar que o versículo continua da seguinte forma: “Mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra (…) e ao que quer demandar-te em juízo, e tirar-te a tua túnica, larga-lhe também a capa. E se qualquer te obrigar a ir carregado mil passos, vai com ele ainda mais outros dois mil”. Ou seja, somente quando fizer tudo isso, então a vítima pode reagir porque enfim chegou a um limite.

O 11 de setembro foi este limite. Depois deste dia, não podemos ficar mais em silêncio, como também não podemos partir para a ousadia de Brodsky retratada no poema acima. Temos de encontrar um ponto de equilíbrio, algo próximo de uma prudência aristotélica que nos ensine a ter a sensibilidade adequada para reconhecer e enfrentar o Mal pelos meios que julgamos ser justos. Mas até mesmo tal prudência parece ser algo utópico. Nesses dez anos, continuamos a oferecer a outra face ao inimigo – e relutamos em descobrir que o inimigo não é apenas o muçulmano que quer impor a sua sharia, mas principalmente nós mesmos, os ocidentais que não querem mergulhar na escuridão dos nossos corações. A primeira prova de que estamos completamente contaminados é a nossa incapacidade de ver as trevas dentro da luz e vice-versa.

Só a partir deste ponto, deste limite que ninguém mais consegue exprimir em palavras adequadas, que podemos solucionar os problemas que julgamos necessários para repararmos a sociedade. E então virá a resposta inusitada que, como Brodsky fala, nos fará vencer o inimigo sem cairmos nos perigos da sua malícia. Porque, infelizmente, neste mundo ocidental obcecado pela democracia e no mundo islâmico onde todos são iguais diante de Allah, ainda temos medo de descobrir que a única coisa que nos iguala e nos une é a nossa infinita capacidade de destruir o nosso semelhante – e nada mais. Enquanto isso, a Palavra tentará permanecer, entre escombros e sussurros, mesmo que seja a custa do silêncio criado pelo rancor de todos nós.

Um comentário em “Especial 11 de setembro parte final – A Babel do Rancor

  1. “Mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra (…) e ao que quer demandar-te em juízo, e tirar-te a tua túnica, larga-lhe também a capa. E se qualquer te obrigar a ir carregado mil passos, vai com ele ainda mais outros dois mil”. Ou seja, somente quando fizer tudo isso, então a vítima pode reagir porque enfim chegou a um limite.
    A interpretação de que este seria o limite para a reação, não se coaduna com o espírito cristão. Cristo não reage a agressão que lhe é feita até a morte e pede a Deus que perdoe a seus agressores. Nietzche tem razão quando afirma que o cristianismo é uma doutrina de escravo, daquele que suporta tudo para ser recompensado por sua humildade e sofrimento.

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