Especial 50 anos de teoria mimética parte 3 – De conversões e sacríficios

Um alimento extraordinário e perturbador

Por Leandro Oliveira

É mais do que lugar comum, quase um acordo implícito dos nossos tempos, o artista dispensar qualquer comentário sobre o próprio trabalho. A compreensão última do significado da obra de arte é para nós uma prerrogativa do público e a capacidade de análise deste o juiz da legitimidade daquele. A reação a esse “interpretacionismo” é na maior parte das vezes descabida – de um lado, conservadores em arte, enxergando em tudo o “assalto pós-moderno-desconstrucionista”; de outro, arrivistas pouco dotados, acusando de “elitismo” qualquer juízo de valor, que afinal é a decorrência e finalidade lógica de qualquer interpretação. Entre les deux, mon coeur balance. Confundir estética com ideologia é sempre um perigo a que devemos estar atentos, em último caso um caminho seguro para fazer da compreensão de uma visão de mundo a imposição de uma visão de mundo.

Toda a produção poética de nosso tempo se desdobra na aposta à ambigüidade e de alguma maneira, é nesta ambigüidade que encontraremos sua fortaleza. E é pela dispersão das referências que devemos entender a importância do crítico, como uma figura dedicada a avaliar e sintetizar a qualidade intrínseca de determinado trabalho; aspirantes a Vírgilio na selva selvaggia de nossa ignorância.

Mas neste sentido, oxalá, não estamos na condição dantesca – antes escolhemos nossos guias que somos escolhidos por eles. “A Conversão da Arte” é neste sentido específico um guia; um livro que pelas mãos nos leva através dos círculos da arte de nosso tempo.

Sofisticado pelo quadro de referências, René Girard é, em um sentido estrito, antes um ensaísta, provocando e lançando pistas para críticos posteriores, do que efetivamente um analista – cujas prerrogativas técnicas esperamos ser, sim, científicas. Não podemos esperar, por exemplo, que Girard parta da maquinaria musicológica para pensar sobre Wagner e seu Anel, ou da psicanálise mais hardcore para falar de Proust e o narcisismo. Ao contrário, ele se serve da musicologia ou da psicanálise para estabelecer reflexões que são suas, originais e provocativas como a que segue:

“O ouro do Reno é, pois, o fantasma do objeto cobiçado pelo desejo convergente de Alberich e das três filhas do Reno. É o desejo tão intenso que consome seus objetos e só se alimenta da rivalidade cada vez mais destrutiva. Tudo isso nos é dito. O ouro não passa de uma bugiganga, diz Loge. Para que ele se torne terrível e maravilhoso, é preciso arrancá-lo do seu lugar de origem. Basta que um primeiro imprudente, um primeiro louco o tome para si e eis que as invejas se desencadeiam. É esse processo, obviamente,  que nos mostra Wagner, quando Loge aconselha Wotan a se apoderar desse ouro, a imitar Alberich, a fazer exatamente a mesma coisa que ele.  Como foi que ele conseguiu o ouro? Roubando. ‘O anel’, exclama Wotan, ‘eu quero o anel!’ ‘Mas consegui-lo é uma brincadeira de criança!’ responde Loge. ‘Como procederás?’, replica Wotan, não sem aspereza. ‘Roubando. O que um ladrão roubou, rouba-o tu mesmo ao ladrão’. Em outras palavras, paga a ele na mesma moeda, torna-te seu rival, trata-o como ele tratou os outros, ele o merece e , como tu vens depois dele, como és tu que o imitas, tu podes aperfeiçoar o ato que lhe proporcionou o que queres para ti, o gesto que fez dele o que tu mesmo queres ser. É preciso não esquecer que, em ‘A Valquíria’, Wotan dirá que a diferença entre Alberich e ele é infinitesimal e pode se inverter a qualquer instante…” (p.163)

Um assombro em qualquer medida; a passagem é resultado do desdobramento (em outros ensaios) de referências mitológicas, dramáticas, históricas e psicanalíticas cuidadosas, tudo isso para dar luz, uma nova luz, a uma peça discutida a exaustão como é o “Anel” wagneriano. Exemplos como esses abundam (os ensaios sobre Valery e Stendhal são essenciais).

“A Conversão da Arte”  é um alimento extraordinário, com sua profusão de probes estimulantes, prosa acessível e algumas boas novas chaves para a compreensão de obras capitais. Dois perigos do livro? O primeiro é que o leitor tire de suas afirmações peremptórias, intenções inequívocas do autor em debate; o que, devemos convir, não é difícil se lidamos com uma inteligência e cultura como a de Girard. Do segundo, Girard é emprenhado de culpa: várias vezes ficamos com a impressão de que Girard se vale dos autores e obras que discute para entender suas próprias teses; o livro não deixaria de ser sobre Girard, a arte em seus vários aspectos, um dado meramente instrumental.

Lendo “A Conversão” me lembrei de uma passagem deliciosa de um ensaio de E.H. Gombrich. Conta ele que o medievalista Adolph Goldschmidt certa vez abre a discussão sobre um quadro específico com a pergunta “o que você vê?” “Uma linha horizontal atravessada por duas verticais”, responde um aluno. “Well”, diz Goldschmit, “I see a little more.”

No caso de Girard, por lidarmos com uma personalidade acachapante, talvez seja difícil “ver um pouco mais”. Mas é um antídoto que devemos buscar a cada página.

Leandro Oliveira é professor de história da música e anfitrião do “Falando de Música”, da OSESP.

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O sacrifício e sua exposição romanesca

Por Jessé de Almeida Primo

O hindu tem um olhar implacável, exatamente porque não tem medo de reconhecer que a atividade humana pertence essencialmente ao domínio da guerra. A Ilíada não é nada diante do Mahabaratha.

René Girard, Rematar Clausewitz

Um trecho de Dom Quixote abre Mentira romântica e verdade romanesca (ed. É, 2009) de René Girard, permitindo assim que a narrativa fale. Não é qualquer trecho, mas a exposição do desejo mimético – o desejo de alguém, cujas manifestação e intensidade, estejam relacionadas à existência de modelo ou rival que deseje os mesmos objetos e  com os quais goze “de uma relação privilegiada”(Shakespeare: O teatro da inveja, 2010, p. 43). Alguns calam a narrativa: em A conversão da arte (2011) Girard diz que Sartre “não levou seu herói, Mathieu, até o fim do seu percurso. (…) interrompe-o no momento em que a redenção esperada vai tornar-se realidade (p. 84).” Retoma-o em Rematar Clausewitz (2011): “Ao querer ser mais racional do que os estrategistas que o antecederam, [Clausewitz] toca subitamente numa realidade absolutamente irracional. Nesse momento ele recua, e começa a não querer enxergar (p. 26).”

Nas palestras d’O sacrifício (2011) Girard também deixa falar as narrativas védicas. E deixando-as falar, põe-se nas situações limites dos romancistas do primeiro livro, exaspera-as. Tal se dá ao expor o mecanismo do bode expiatório: “O milagre do sacrifício é a formidável ‘economia’ de violência que ele realiza. Ele polariza contra uma única vítima toda a violência que, um pouco antes, ameaçava a comunidade inteira (p. 63).” Também em Rematar Clausewitz: “Seu desaparecimento [da guerra] como instituição (…) encheu o mundo de fogo e sangue. Continuando a não querer ver, incentivamos esse impulso para o pior (p.25).” No La violence et le sacré (ed. Bernard Grasset, 1972): “Em muitos rituais o sacrifício se apresenta de duas maneiras opostas: como algo ‘muito santo’ que não se recusa sem cometer erro muito sério e como ato que não pode ser cometido sem se expor ao mesmo erro (p.13)”. Reforça-o com Hubert e Mauss: “é crime matar a vítima por ser sagrada. Mas a vítima não será sagrada se o crime não for cometido (ibdem).”

Os antropólogos contudo evitam tais situações e omitem a violência sacrificial (O sacrifício, p. 40,) ao condenar “toda exploração realista como um esforço para denegrir culturas arcaicas” (ibdem). Com isso tornam-se cúmplices dos perseguidores, envolvendo-se a posteriori no mecanismo do bode expiatório que eles estimulavam. Mas essas culturas não cuidam da aparência com o mesmo zelo que seus assessores buscam protegê-la (notem a dor de cabeça que nossos índios dão aos antropólogos da FUNAI), ainda que elas procurassem dissimular a violência entorpecendo as vítimas, domesticando-as ou divinizando-as.  Os Brâmanas, p. ex., não são bichos-grilos de fralda e cítara, em posição de lótus, que cantam My sweet lord de George Harrison. Ao contrário, “propõem o recurso do sacrifício para resolver os conflitos, em vez da moderação e da não violência”(p. 61) e estimula-os com um “simulacro de crise” (p. 64). Seu mundo portanto não é tão distinto do nosso como os adeptos da alteridade querem crer. Segundo alguns textos védicos, “todas as criaturas inteligentes [devas e asuras] estão destinadas às rivalidades(p. 47)”, as quais giram em torno de objetos que não passam de pretexto para que estas permaneçam. Os deuses [devas], sempre mais “ávidos e agressivos que os demônios [asuras](p.49)”, revivem “a rivalidade mesmo nas circunstâncias mais propícias para sua extinção(ibdem)”, em outras palavras, make war not love. Longe de ser um fenômeno enraizado no inconsciente coletivo, é algo sofisticado, elaborado como teoria e demonstra percepção sagaz da natureza humana.

Cristo todavia “exaspera as rivalidades miméticas, aceitando ser vítima delas para desnudá-la aos olhos de todos (Rematar Clausewitz, p. 174)”. Mas a lenta privação da “humanidade de suas últimas muletas sacrificiais” mais a confrontação desta com “a própria violência” já vem do Velho testamento (O sacrifício, p.108). Lemos em Êxodo: “Não tomarás o partido da maioria para fazeres o mal, nem deporás, num processo, inclinando-te para a maioria, para torcer o direito (23, 2)”. Esse princípio também regula o apedrejamento em Deuteronômio: “A mão das testemunhas será a primeira a fazê-lo morrer, e depois a mão de todo o povo (17, 7).”  Ou seja, devem lançar a primeira pedra sem o conforto da contaminação mimética.  Porém a execução militar moderna retoma a dissimulação sacrificial das culturas arcaicas e contraria o princípio de se lançar a primeira pedra… ou disparar a primeira bala. Há entre os executores alguém ignorado cuja arma está carregada de pólvora. Assim não terá disparado o tiro fatal e cada um irá para casa com esperança de não ter matado o condenado, além do consolo de ter atirado com os outros. Não há pois diferença entre ritual de fuzilamento e o que Girard diz do sacrifício brâmane: “Os textos [védicos] sugerem várias manobras muito reveladoras. Aconselha-se ao sacrificador desviar sua atenção desse deus [vítima divinizada] que está torturando e não pensar nele, mas em outra pessoa que ele preferiria sacrificar se pudesse escolher (p.87)”. Por outro lado, no capítulo 3, Girard também vê “inspiração antissacrificial e até mesmo não-sacrificial nas partes mais avançadas da tradição védica (p.115-122).” Embora tal inspiração apareça em ambas, nas escrituras a prioridade é a perversidade do mecanismo e suas vítimas. Já nas narrativas védicas – de um geometrismo à Poe (pp. 116-8, 120-1) – a preocupação é mostrar como a elaboração desse mecanismo pode se voltar contra os próprios autores.

O sacrifício retoma Mentira romântica fazendo o desejo mimético seguir-se da solução sacrificial e o seu desmascaramento. Girard percebe nos textos védicos as tramas humanas vistas nos romances e dissimuladas nas intrigas dos devas e asuras. Observemos também que nos capítulos 1 e 2 concentra-se no mecanismo mimético-vitimário e no último fala da revelação que o desmascara. Mentira romântica também segue o esquema ao tratar do desejo mimético e ao terminar na conversão com um trecho de Os irmãos Karamazov. Esse trecho, diga-se, não fecha um círculo que reproduz o eterno retorno ao desejo mimético da fala do primeiro Quixote (pp. 25-26), e sim parte desse desejo para o desengaño de um Quixote moribundo (p. 325) ou, por outra, para “uma mudança efetiva que nos possibilita sair [desse] círculo (A conversão da arte, p. 190)” – e tal mudança é o sentido mesmo da conversão –, que “não nos retorna ao ponto de partida”, mas “avança rumo a um porvir sempre imprevisível (p. 189)”. Isso se prolonga em Dostoiévski: do duplo à unidade (2011) – cujo conteúdo se inicia na “descida aos infernos” de um autor romântico e culmina na “ressurreição (cap. 4)” – e em seu coroamento apocalíptico, Rematar Clausewitz, no qual trata do império da mediação interna (i. e., da crise de indiferenciação em que o rival substitui o modelo), denuncia a violência que só produz a si mesma não mais o sagrado,  testemunha a destruição total que substitui a instituição da guerra e constata a rejeição à “melhor parte” (Lc, 10, 41-2), que é o único modelo imitável.

Jessé de Almeida Primo é crítico literário e colunista da Dicta&Contradicta.

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