Especial 50 anos de teoria mimética parte final – Da necessidade de medidas extremas

Por Fabio Silvestre Cardoso

Em 2004, o vencedor do Oscar de melhor documentário foi o filme cujo protagonista era um dos arquitetos da Guerra do Vietnã, até aquele momento um dos piores capítulos da política externa norte-americana. “Sob a Névoa da Guerra”, dirigido por Errol Morris, trazia como eixo central as onze lições concedidas pelo ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, Robert McNamara. Justiça seja feita: em que pese a qualidade da fita, não foi a primeira vez que houve um documentário sobre esse tema; mais do que isso, não foi a primeira ocasião em que uma liderança política falou sobre o tema; sem contar que mesmo o cinema norte-americano já havia purgado do pecado original daquela guerra. Ainda assim, o que chama a atenção no documentário estrelado por McNamara é uma das passagens em que o ex-senhor da guerra afirma, com a devida gravidade, que por pouco o mundo não assistiu a uma hecatombe sem precedentes, haja vista que a radicalização havia atingido níveis inimagináveis naquele momento. Felizmente, houve um recuo dos dois lados, e período mais quente da guerra fria esfriou.

A referência do parágrafo acima me veio à memória algumas vezes durante a leitura de “O Tempo das Catástrofes – quando o impossível é uma certeza”, obra assinada pelo pensador francês Jean-Pierre Dupuy. O livro compõe a coleção da Biblioteca René Girard, da Editora É, que ora é lançada no Brasil. O objetivo do texto é, de uma só vez, arrojado e singular: mostrar a importância de se identificar a catástrofe, preveni-la e cuidar para que ela não aconteça. Num mundo em que um axioma da linguística, “o impossível acontece”, parece cada vez mais corriqueiro e banal, é de se pensar por que é que as ideias de Dupuy não haviam aparecido antes. Em verdade, é correto afirmar que boa parte de suas concepções estão por aí, mas sem a mesma proposta racionalista, articulada e conceitual, isto é, sem os pressupostos teóricos aventados pelo pensador em sua obra. Em tempo: o autor não cita diretamente Girard, mas os elementos centrais da teoria mimética estão presentes.

Com efeito, se levarmos ao fim e ao cabo, a ideia de prever as catástrofes parece tão banal que até mesmo o cinema de Hollywood já tratou do assunto. Pois em “Minority Report”, dirigido por Steven Spielberg, a história se passa num futuro em que a polícia consegue prever os crimes, num departamento que alia alta tecnologia à necessidade de manter a ordem social. A questão que problematiza o filme é que sua estrutura cogita essa possibilidade como distopia de um futuro em que as possibilidades de vida virtuosa se transformaram no inverno de nossa desesperança, no pior dos apocalipses que nem mesmo as teorias da pós-modernidade poderia conceber. Em síntese: a contramão da vida política que promete a redenção à humanidade.

E, no entanto, não é com esse objetivo que se almeja antecipar a catástrofe. Antes, o propósito obedece às necessidades prementes de um mundo que, assaz complicado, não existe apenas dentro dos esquemas formais das teorias políticas e econômicas tornadas hegemônicas nos últimos anos. Torna-se urgente, com efeito, a adaptação para que o pior não aconteça. Aqui, talvez, a título de exemplo, é inevitável a menção aos eventos do 11 de Setembro. Se, para alguns, aquele foi um ato de pura covardia, na perspectiva postulada por Dupuy torna-se um evento digno de especulação filosófica. Senão, vejamos: citando Bergson, por ocasião do posicionamento do pensador sobre a declaração de guerra da Alemanha em direção à França: “quem teria acreditado que uma eventualidade tão formidável houvesse podido efetivar sua entrada no real com tão pouco empecilho?” Os atentados às Torres Gêmeas, no fatídico 11 de Setembro, servem, de fato, como a mais perfeita tradução desse tipo de acontecimento que, até a sua ocorrência, parecia impossível de ser realizado. E, apesar da aparente impossibilidade, os atentados mudaram o mundo e, mais particularmente, alteraram o cenário da Política Internacional.

A propósito disso, a certa altura do livro, Dupuy escreve: “Como a tragédia do 11 de Setembro de 2001 mostrou de modo impactante, não é só o saber que é impotente em fundamentar a credibilidade, mas também a capacidade de representar para si o mal (…)” Ora, mesmo depois desses eventos fundadores de uma nova conjuntura internacional, houve quem se comportasse como se esses eventos não demandassem comportamentos e ações mais extremadas.  É a partir desse contraste que se deve compreender a reação algo esquizofrênica de parte do Ocidente ao não reconhecer legitimidade por parte de alguns governos no que concerne a chamada Guerra ao Terror. Para muitos, foi uma estratégia espúria para a manutenção do poder de George W. Bush. E esses autoproclamados críticos e membros dessa facção extremada da “corrente do bem” não se dão por satisfeitos com a constatação de realismo político de que, sob ataque, qualquer liderança com alguma coragem agiria da mesma forma. E isso seria legítimo.

E tudo isso porque, em tempos de catástrofe, ações extremadas são decisivas para que seja evitado o pior. No plano da política internacional da última década, a Guerra ao Terror representou coibir que mais atentados ceifassem vidas inocentes. Nessa perspectiva, a lógica da guerra preventiva não apenas se torna aceitável, como é desejável, como que atendendo às necessidades mais primitivas do pacto social: a preservação da vida pelos líderes políticos. Nesse ponto, o mérito de “O Tempo das Catástrofes”, para além de render homenagem ao pensador René Girard, é conceber, no plano metafísico, uma análise sofisticada das questões contemporâneas, sem deixar de enfrentar as consequências decisivas dessas medidas, a saber: o dilema ético, a crítica do senso comum e a carência de interlocução para esses debates.

Infelizmente, há quem prefira esperar que o tempo seja o senhor da razão, como diz o adágio de pretensão filosófica. Ou, por outra, que no futuro, revelações como a de Robert McNamara revelem o que estava escondido. Se, e quando, isso acontecer, significa que a previsão da catástrofe funcionou – e isso vale tanto para o Aquecimento Global como para a Crise Econômica. Do contrário, pior para a humanidade: significa que a profecia da catástrofe era autorrealizável.

Fabio Silvestre Cardoso é jornalista e professor universitário.

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