Especial 50 anos de Teoria Mimética Parte I – O ano que pegamos girardismo

Por Marcelo Ferlin Assami

A busca por culpados

Diante de uma situação de crise, quando o tecido social ameaça se romper, as pessoas buscam culpados, processo que parece bem natural, bastante comum, até sensato. O clamor que a pedofilia provoca, porém, não nos cega ao fato de que nem todos os políticos corruptos são pedófilos. Seja qual for o inimigo do dia, sejam seqüestradores, parricidas, usuários de drogas, direitistas, homofóbicos ou chatos, nem todos são pedófilos. (Os crimes podem ser permutados conforme o eleito pior: nem todo pedófilo é chato, nem todo cocainômano é de direita.) Sabemos, portanto, que tomar um criminoso como inimigo e elegê-lo a bode expiatório não resolve o problema da sociedade. Quando muito, traz algum alívio. (Em países picaretas, um político tentará passar mais um pacote de leis para mediar e impedir a vida privada dos pagadores de imposto.)

Se sabemos disso, por que o circo continua? Olhar para a imprensa ou para o que chamam de mídia basta para se perceber que o motor do negócio é a produção de bodes expiatórios. (“Dengue o vilão deste verão”, “Margarina o vilão da alimentação saudável”, “Delenda Sarney” etc.) Por extensão, um mínimo de entendimento sobre a vida pública nos diz que evitar se tornar um bode expiatório é outro motor. E, também, que a produção de consenso, um dos efeitos colaterais na busca por culpados, é moeda valiosa. Há como escapar disso?

E como somos capazes de perceber isso tudo isso, ou seja, se temos consciência de viver no mundo dos acusadores e dos acusados, por que conseguimos nos pôr de lado e à parte? O que nos poupou para termos adquirido consciência dessa situação? (Pelo menos quando não estamos nos fazendo de bacanas, à frente dos outros ou para nós mesmos com o “olha como não acuso ninguém”.)

Modernos e irados

O livro Violência e modernismo: Ibsen, Joyce e Woolf tenta encontrar respostas para questões semelhantes na obra dos três grandes autores modernistas. William A. Johnsen, professor de inglês na Michigan State University,  toma por base os trabalhos de Northrop Frye e de René Girard. De Frye, Johnsen utiliza a concepção de “literatura como um todo”. De, Girard os conceitos de desejo mimético e do mecanismo do bode expiatório. Johnsen observa como ambos perseguem um paralelo entre os escritos seculares e os textos da tradição judaico-cristã.

O livro de Johnsen é parte da Biblioteca René Girard, projeto da É Realizações com o apoio da Fundação Imitatio, think tank que promove a divulgação dos trabalhos sobre a Teoria Mimética nas ciências sociais. Seguindo a hipótese mimética, Johnsen faz um close-reading das obras dos três autores e analisa a trama e a construção dessas obras percorrendo suas versões sucessivas e confrontando-as com a situação de cada autor no momento da composição (conferindo também diários, palestras e conferências, ensaios publicados nos jornais e informações biográficas).

Se tivesse de dar uma imagem do modernismo que seja capaz de demonstrar como estamos imersos nele, talvez a mais acessível seria comparar os modernistas com os blogueiros, fenômeno recente antes do twitter e do Facebook: uma turba raivosa contra tudo o que aí está e que se apresenta na maioria das vezes como órfãos, como pessoas aparentemente autocriadas, sem pai, mãe ou irmãos, desfiliadas de tradições. Johnsen parte da impressão bem moderna (e modernista) do artista como ente autossuficiente, como pessoa que gerou a si mesmo, e elege três autores que, à sua maneira, não deixaram de reconhecer a relação de irmandade e de paternidade em sua formação. Se foram críticos, e foram imensamente, não deixaram de reconhecer as bases e dons que receberam da geração anterior (como se observa no Retrato de um artista quando jovem de Joyce e no Rumo ao farol de Woolf).

Em Ibsen, Johnsen investiga a compreensão do dramaturgo acerca da rivalidade entre irmãos (em O inimigo do povo) e a questão do auto-sacrifício (principalmente na peça Os pilares da sociedade) e como a preocupação com a vítima é deformada na busca por prestígio social e consenso (nas duas peças). Em Joyce, a compreensão do escritor sobre viver numa sociedade que cria heróis e poetas e que depois os convida ao autossacrifício, e do fato do herói joyceano recusar esse sacrifício e preferir viver a morrer pela Irlanda. Por fim, Johnsen investiga uma questão essencial para o pensamento de Virginia Woolf: como, tendo nascido numa sociedade machista, foi possível uma criatura como a própria Virginia? A resposta reside no reconhecimento do que há de benéfico do poder do patriarca e no desenvolvimento de pensamento que faz a crítica do patriarcado, mas não consente em guardar raiva dele, que resiste em se tornar acusatório, e propõe um feminismo sem rivalidade e sem violência.

Mas não é possível fazer essa leitura sem René Girard?

Johnsen afirma que não quer tomar a teoria mimética de Girard como se fosse mais uma teoria literária, ou seja, como um modo de procurar na obra apenas o que a teoria já “sabe” ou prescreve que será encontrado, procedimento corrente que termina por tornar irrelevante o estudo da obra e do seu autor. Portanto, seria menos ler como Ibsen, Joyce e Woolf, cada um a seu modo, descobriram teorias girardianas, mas como intuíram, como antropólogos (e os três autores pesquisaram a sociedade em que viviam para compreender a situação dela), mecanismos semelhantes aos que o antropólogo Girard (e seus sucessores) descobriria décadas depois.

O livro Johnsen traz 350 páginas de alguns parágrafos brilhantes e muitos nem tanto, mas que se revelam uma leitura estimulante, difícil de resumir exatamente pelas reflexões que sugerem depois da leitura. A reação, aliás, de muitos leitores, às obras de Girard é uma espécie de espanto e de enxurrada de “coisas para refletir e pesquisar”. Sem pretender reproduzir as descobertas de René Girard ou manter o rigor de sua conceituação, seguem alguns pontos que vão do pensamento de Girard ao livro de Johnsen:

1. A sociedade é movida por conflitos miméticos. Em resumo, você deseja o que o outro deseja. O desejo segue estruturas triangulares.

2. Do lado positivo: se o outro é seu professor, você pode querer ler os livros que ele leu, saber o que ele sabe, buscar o conhecimento que ele detém. Esse seria o resultado da rivalidade positiva.

3. Do lado negativo, já sabemos, são as brigas e a violência. Dois homens disputam a mesma vaga no estacionamento do shopping center.

4. A disputa, que já resultou em morte (segundo o noticiário), indica como a rivalidade cria identificação entre os disputantes: o conflito os tornam iguais. (“Two households, both alike in dignity” é como Shakespeare indica a rivalidade entre Montéquios e Capuletos no início de Romeu e Julieta.)

5. A impressão de que a posse daquilo que o seu rival anseia ou já detém (medalha, o amor da morena, um cargo público, o sabor do sucesso) poderá tornar pleno o seu ser incompleto cria ou possibilita o desejo. Fica claro que essa impressão é falha, a satisfação do desejo irá trazer frustração e a reafirmação da incompletude. Todos gostariam de ser como as imagens autossuficientes de tantos artistas modernistas. E de tantos blogueiros.

6. Um exemplo de como esse mecanismo se dá, nas palavras do próprio Johnsen sobre a obra de Woolf: “A rivalidade metafísica transforma necessidades em desejos. Enquanto Mary Breton [de Um teto todo seu] não dispunha de um quarto e uma renda independente, seus desejos acompanhavam a irracionalidade dos advogados que trabalhavam em lugares fechados para ganhar muito dinheiro, ao passo que com quinhentas libras é possível viver ao sol.” Não é preciso dizer como esse fenômeno é comum.

7. Para evitar o contágio da violência (expressões de rivalidades), que ameaça a sociedade, numa situação de crise (a peste que assola Tebas) as autoridades e representantes buscam um culpado, apontam uma vítima que será sacrificada (o bode expiatório).

8. Essa vítima seria culpada de todos os males da tribo (portanto, inimiga de todos) e sua destruição traria a paz (também derivada da união, já que todas as outras rivalidades são substituídas pela rivalidade de todos contra um único inimigo).

9. A sociedade é fundada no sacrifício e a busca por bodes expiatórios se torna o mecanismo para garantir a coesão da tribo.

10. René Girard reconhece na tradição judaico-cristã um corpus de textos preocupados com o sacrifício, a violência e as vítimas. A origem remontaria ao sacrifício (não-consumado) de Abraão do seu primogênito e seu ponto mais alto são os Evangelhos.

11. A vinda do Cristo, como nos Evangelhos, traz uma novidade positiva em relação ao mecanismo do bode expiatório: a crucificação de uma vítima que é inocente.

12. O cristianismo é uma força desestabilizadora. A crucificação de uma vítima inocente rompe com o ritual do bode expiatório. Se o Cristo aponta que a culpa da vítima reside apenas na acusação dos perseguidores, também revela que não há inocentes entre os acusados e os acusadores. (“Atire a primeira pedra…”) O Cristo propõe o perdão em vez do sacrifício da vítima. A percepção crescente de que as vítimas podem ser inocentes (pelo menos do que são acusadas) torna cada vez menos eficiente e suficiente a busca por culpados.

13. Se desde Abraão aparece a preocupação com a vítima, que se torna crescente, hoje vivemos numa época inédita na humanidade: as vítimas têm direitos. Chegamos inclusive a um momento em que a própria posição de vítima pode ser buscada, como na situação de autossacrifício, de “inimigos do povo”.

14. O pensamento girardiano indica que Shakespeare teria descoberto a rivalidade mimética (Shakespeare: teatro da inveja). Ele seria o primeiro moderno (e um dos primeiros a recusar a violência do autor, já que não aponta o dedo à platéia nem a acusa de buscar a violência). Johnsen observa no 1984 de George Orwell um narrador que prefigura o conhecimento do leitor sobre o que é narrado, que oferece uma teoria de como ler. O autor buscará no modernismo autores que oferecem ao leitor suas próprias teorias. (É uma proposta de deslocamento em relação às abordagens tradicionais das teorias literárias.)

13. O livro de Johnsen elege Ibsen, Joyce e Woolf como representantes, entre dois modernos (Shakespeare e Orwell), que pesquisaram a violência da comportamento humano e que a recusam em suas obras.

14. À essa altura, é inevitável pensar no que está sendo tomado por violência. Na falta de uma definição, girardiana ou não, proponho o senso comum de “violência é tratar alguém como objeto”. Proposta que também retirar questões de moralidade e da violência contra si associadas a outras definições. (Tanto esse alguém pode ser o outro como a si mesmo, o que responde ao “problema”, entre aspas porque falso, do masoquismo e da violência contra si.)

Mas como essa patacoada faz sentido?

Numa aula de antropologia na USP, tive meu primeiro contato com os textos de René Girard, com capítulos do A violência e o sagrado. Recordo o fascínio com a idéia de ligar um e outro e de quão econômica e óbvia era a proposição antropológica de que a sociedade utilizava da violência, conferindo um caráter sagrado e um uso ritualístico dela, para conter outros tipos de violência, das violências com potencial de se alastrarem e de pôr em jogo a própria sociedade. Anos mais tarde, em 2000, a Topbooks lançou Um longo argumento do princípio ao fim, diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello, séries de entrevistas em que Girard fala de suas descobertas. Por algum tempo, foi a grande obra de divulgação de Girard, e uma conceituação mais simples, sem o rigor acadêmico, de elementos como o mecanismo do bode expiatório e do desejo mimético, começou a circular. (Até então, poucos, como Olavo de Carvalho, falavam de Girard fora da academia.) Com essas leituras, tinha diante de mim recursos para formular e tentar responder três questões, duas pontuais e corriqueiras, outra mais abstrata:

Acontece com qualquer pessoa, você sai para almoçar com amigos ou colegas do trabalho e, de repente, talvez por falta de assunto, alguém propõe o tema da violência: “você viu que fulano foi assaltado?”, e antes que o mal-estar se estabeleça e cada um caia em seu respectivo ruminar (dissolução do grupo), todos à mesa se obrigam a comentar a notícia e a incluir um relato de violência sofrida nas mãos do bandido ou o testemunho de algum conhecido em situação semelhante. Cada um oferece um sacrifício ou se oferece como sacrifício. A rememoração do ultraje e da humilhação sofrida, compartilhada como relato, apazigua a tribo. Essa sugestão de távola redonda ao contrário, em vez de cavaleiros contando suas façanhas, assalariados reclamando da “situação brasileira”, ecoa certas idéias de Frye e de Girard, sobre os heróis modernos não serem mais deuses, semideuses ou mesmo heróicos, são pobres coitados, como nós.

Quem tem idade suficiente para ter experimentado a era dos listas de discussão (no começo da WWW no Brasil, em meados dos anos 1990) teve experiência direta do que acontece na imprensa e na opinião pública desde os tempos de Ibsen: o linchamento da reputação. Diante de um comentário que possa soar ofensivo fora do seu contexto, comentário possivelmente exposto no calor da discussão, geralmente tipificado como machista, racista, preconceituoso, os participantes da lista passam a “dar suas opiniões” sobre o comentário e sobre o autor do comentário, e à revelia deste, aliás. Seguem-se rodadas sucessivas de “mas fulano não quis dizer exatamente isso” ou “fulano errou, mas estava nervoso na hora”, enquanto a reputação de fulano é questionada, deturpada, destruída, reconstruída e, por fim, reabilitada, até a crise passar ou até outro participante da lista se tornar a próxima vítima com um comentário infeliz. Há algo dos heróis e das heroínas ibsenianas em buscar o autossacrifício no comportamento dos flamers, os que entravam nas listas de discussão para inflamar debates e, invariavelmente, serem linchados.

Que o linchamento seja feito em nome de vítimas ausentes e hipotéticas, torna mais difícil resistir ao papel de ser mais um acusador e apontar o dado para todos e denunciar a hipocrisia do bando. Essa é uma tentação diante das idéias de René Girard, a vontade de se apossar de um mecanismo para desnudar e denunciar o procedimento alheio, apontar a culpa alheia. Girard e os girardianos são acusados também de vender uma teoria geral de tudo, panacéia para todos os conflitos humanos, dada a capacidade (ou facilidade) de se encontrar “desejos miméticos” e conflitos baseados na inveja em qualquer situação e problema. Uma terceira acusação recai o conceito de inveja e imitação, como tentar fundamentar uma teoria positiva da sociedade a partir de um vício e um pecado?

Em vez de uma resposta, aqui entra minha terceira questão: o que fazer quando a violência do criminoso parece superior à da punição oficial do Estado? (A situação em que a justiça com as próprias mãos parece preferível ao encarceramento. Ou a fantasia das celas e das torturas medievas parece mais razoável que a fantasia das celas infectas e dos estupros corretivos e “suicidamentos” por parte dos colegas de cela e carcerários modernos?) Diante de crimes horrendos, como resolver essa crise? A resposta fica para o leitor, como convite às obras de Girard a à publicação da Biblioteca René Girard, para a necessária crítica e reconhecimento da hipótese mimética ou a impugnação dessas idéias. Se o preço dos livros ou o texto de um Johnsen não são muito estimulantes a princípio, as leituras são.

Marcelo Ferlin Assami é escritor e já publicou contos e textos nas coletâneas Wunderblogs, Imaginários e Dicta&Contradicta.

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