“Eu escrevo para o Leo Strauss…”

CRÍTICA AUTOBIOGRAFIA

Hitchens costura memórias com honestidade brutal

Em estilo que ecoa Orwell e Bellow, jornalista expõe contradições de sua carreira

MARTIM VASQUES DA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Enquanto divulgava “Hitch-22″, seu livro de memórias, Christopher Hitchens foi diagnosticado com câncer no esôfago.
“Quando isso acontece conosco, as pessoas se perguntam: por que eu?”, escreveu em sua coluna na revista “Vanity Fair”. “Apenas me perguntei: por que não?” Afinal, por que não? Em “Hitch-22″, Christopher (ele odeia ser chamado de Chris) mostra as contradições dos seus (até agora) sessenta e um anos de existência.
Com uma prosa que une a precisão de George Orwell e o virtuosismo de Saul Bellow (suas maiores influências), lemos com dentes trincados sobre o suicídio da mãe, a educação de contestador socialista, a herança judaica oculta por quase 30 anos e o momento em que Margaret Thatcher o chamou de “menino safado”.
Estão lá também as amizades com Salman Rushdie e Martin Amis -com quem, aliás, foi a um puteiro em uma visita desastrada. Tudo, é claro, em nome da arte e da língua inglesa.
Mas, de todas essas histórias, nada nos prepara para a de Mark Daily, um norte-americano de 19 anos, esquerdista, contra qualquer espécie de combate bélico e que, um belo dia, decide se alistar na Guerra do Iraque.
O motivo? Convenceu-se dos argumentos apresentados nos artigos de Hitchens, que, no melhor estilo “Ardil 22″ (o clássico de Joseph Heller emprestado para batizar essas memórias), antes era um jornalista que havia defendido Saddam Hussein e agora queria vê-lo fora do poder a qualquer custo.
A coragem de mudar de opinião é nada se comparável à de encarar os pais de um jovem por cuja morte você pode ter sido o responsável.

CRISTIANISMO
E é neste episódio pungente que Hitchens mostra a sua maior virtude: uma brutal honestidade, obrigatória para quem enfrenta os radicais da direita e da esquerda, incapazes de perceber que a vida só nos faz a seguinte pergunta: “E por que não?”.
É essa mesma honestidade que também nos faz pensar se, na verdade, Hitch (como ele gosta de ser chamado) não passa de um cristão “malgré lui”.
É claro que a ideia o faria espumar de indignação, graças à propaganda que o próprio pratica sobre o seu ateísmo militante. Mas, ao mesmo tempo, é intrigante imaginar que, para quem encarou a realidade no seu lado luminoso e sombrio, e acumulou tantas contradições, esse fato seria o mais perturbador de sua existência -justamente quando enfrenta uma terrível doença. E por que não? Afinal, não é para isto que os contestadores existem: para mostrar que a vida não é um armazém de secos e molhados?

MARTIM VASQUES DA CUNHA é editor da revista “Dicta&Contradicta” e doutorando pela USP


HITCH-22
AUTOR Christopher Hitchens
EDITORA Nova Fronteira
TRADUÇÃO Alexandre Martins
QUANTO R$ 69,90 (560 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

(Resenha publicada na Folha de São Paulo de 19 de fevereiro de 2011, no caderno Ilustrada.)

15 comentários em ““Eu escrevo para o Leo Strauss…”

  1. Uma bela curta resenha, Martim!
    Bom também ver que a FSP está chamando boas mentes como resenhistas.

    O que me – como colocar isso – espanta (na falta de melhor verbo) é gastar mais de 1/3 das linhas disponíveis para um problema que aparece obliquamente no livro.

    Parece que as “teses” defendidas por ti se sobrepuseram ao que um resenhista deve fazer…

    Enfim, parabéns por publicar na FSP!

  2. Não conheço o autor comentado, mas um cara que convence um jovem de 19 anos a ir morrer pra defender o banditismo rapace da gang do Bush, um indivíduo que sequer teve a dignidade de ir lutar no Vietnan quando convocado pelo exército do seu país, não merece encômios. Merece desprezo!

  3. Para um sujeito que lida com a história, o sr. faz julgamentos bastante duros sobre presente, caro Virgilio Campos. E, pior, toma a parte como sendo o todo.

    Então a Guerra é do Bush? Pertence a ele? Só há coisas ruins naquela guerra? Não houve benefícios? A liberdade de um povo da mão de um ditador sanguinário não conta?

    No mais, ele não convenceu o jovem a “ir morrer”, mas a “ir lutar” pelo que ele – Hitchens e depois Daily – julgava ser o correto. Mostra mais uma qualidade de Hitchens: a capacidade de passar idéias de uma forma clara, entendível, inteligível e, acima de tudo, convincente.

    No fundo, trata-se de uma decisão pessoal de Mark Daily que, como escreveu o Martim, afetou seriamente o escritor e cujos efeitos em Hitchens foram magistralmente descritos no livro.

  4. Jorge,
    Claro que a guerra foi do Bush e da sua gang. Já esqueceu o Colin Powell mostrando na ONU as instalações “atômicas” do Saddan? Depois o general deixou o cargo melancolicamente; até hoje tenta explicar “o logro” em que caiu e não consegue. Se o “motivo da guerra” foi libertar o povo de um ditador sanguinário, que os EE.UU. ajudaram a por no poder e financiaram na atroz guerra contra o Irã (morreram dois milhões de pessoas), então me explique por quê ao entrarem em Bagdá os tanques americanos não protegeram da molequeira hospitais, escolas, museus, bancos, lojas, o povo em geral, mas foram direto “proteger o Ministério do Petróleo”!
    Se literaturas e filosofias justificassem maucaratismo, o Céline, o Heidegger e o Sholokov estariam absolvidos.

  5. O motivo da guerra do Iraque foi libertar um povo das mãos de um ditador sanguinário?! Yeah, right!
    E eu que pensava que ninguém mais acreditava nesse conto de fadas…

  6. O José Guilherme Merquior escreveu uma vez: “Se me deu a honra de me ler, poderia acrescentar a gentileza de me entender.”

    E eu alguma vez insinuei que a guerra havia sido levada a efeito para “livrar o povo de um ditador sanguinário”?!
    Vamos ler com mais calma, gente!!
    A guerra teve seus motivos, como todas as outras guerras, públicos, publicáveis e os ocultos, impublicáveis.
    Um fato, contudo, é inegável: Sadam, o facínora que matava com gás tóxico os seus inimigos, saiu do poder e foi, num dos atos mais equivocados de toda a guerra, executado. Mas o fato continua: o Iraque está melhor sem ele e o mundo mais seguro. Ponto.

    “Bush e sua gang”? Pois é… Pode-se acrescentar, no mínimo, mais uns 15 países, muitos dos quais democracias consolidadas há séculos, que também participaram. Eles também pertencem a tal “gang”?!

    Novamente, caro Virgílio, para um sujeito que diz apreciar história, o sr. toma as coisas muito “preto no branco”, esquecendo que a realidade é muito mais cinza, e que raramente ela nos permite julgamentos definitivos dessa natureza.

    Tenho pouco contato com Céline e Sholokov, mas o Heidegger – e as suas idéias – continuam sendo bastante estudadas em muitos círculos filosóficos. No Brasil, Carl Schmitt tem voltado com muita vitalidade…

  7. Amigo Jorge,
    Gang teve e tem em todo canto, mas nos últimos tempos a pior foi a do Bush, que nem disfarçava o gangsterismo e causou males ao ocidente quase irreversíveis.
    Quanto aos 3 intelectuais citados, foi apenas um exemplo, pois a lista é enorme. O fato do Heidegger ser um grande filósofo até agrava a sua adesão à estupidez nazista e a sua pequenez como homem, pois a mulher que ele amava (ou fingia amar) era a judia Anna Arendt. Grande abraço.

  8. Virgílio, leia o texto do jovem militar Daily, “Why I joined”, e veja que ele considera essas simplificações da guerra, e que ele conhece a parte ruim do conflito, pois ele mesmo foi um humanista pacifista.

    http://www.latimes.com/news/local/la-me-daily16feb16_essay,0,3701231.htmlstory

    A mensagem dele é simples: males e más intenções alheias não escusam do dever moral de cada um de fazer o melhor possível quando há a oportunidade. E ele viu a oportunidade para agir.

  9. Rafael,
    Não duvido das nobres intenções do Daily, como não duvido das nobres intenções dos idealistas que se alistaram nas Brigadas Internacionais pra lutar na Espanha. O Orwell foi um deles e da sua experiência resultou o “Annimals Farm”. Outro foi o brilhante professor de economia de Berkley que morreu em combate e inspirou o “Inglês” de “Por Quem os Sinos Dobram” do Hemmingway. Tudo isso apenas comprova o velho ditado: “O caminho para o inferno está pavimentado por boas intenções”! Grande abraço!

  10. Muito boa a resenha. Já havia lido na FSP. Mas quando será que o “outro Hitchens” será lido no Brasil? Falo do Peter Hitchens, irmão conservador do Christopher. Ele aparece no ótimo documentário “Why Do I hate the Sixties”.

  11. Li um dos livros de Christopher Hitchens – DEUS Não É Grande, um texto corajoso cujo tema – o ateísmo – tem sido abordado por muitos outros. Um deles é o americano Sam Harris (Carta a Uma Nação Cristã), o britânico Richard Dawkins (Deus, Um Delírio), mais um outro americano, o filósofo Daniel C. Dennet (Quebrando o Encanto). Talvez não devamos nos esquecer dos franceses – o Michel Onfray (Tratado de Ateologia), Luc Ferry (Aprender a Viver) e Comte-Sponville (O Espírito do Ateísmo). Antes tivemos Bertrand Russell (Por Que Não Sou Cristão), o devastador Nietzsche (O Anticristo e outros), Voltaire (Cândido) e muitos outros.
    Em outro texto alguém perguntou se os crentes deveriam rezar por Hitchens, agora que está doente. As rezas são inúteis, a não ser por significarem que o alvo das orações está recebendo as atenções ou os pesares do rezador.
    Se Deus é uma criação nossa, iniciada a partir do momento em que tivemos nossa primeira angústia, a partir daí as divindades multiplicaram-se; criamos o Transcendente e um sem-número de instituições da mesma natureza.
    Mas, como já nos assegurara Nietzsche, a vida é terrena e única. Por isso mesmo precisamos celebrá-la por todos os instantes de nossa existência.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>