Feliz aniversário, Hitchcock

Hitchcock, a esposa Alma no centro e a filha Patricia à esquerda da foto.

Segunda-feira, dia 13 de agosto, completaram-se 113 anos do nascimento de Alfred Hitchcock. Por razões óbvias, seria muito melhor se a data tivesse caído numa sexta. Mas Deus foi bom e, pelo menos, o poupou dos horrores estéticos da década de 80. Morreu justamente em 1980, aos 80 anos. Seus dois filmes da década anterior (Frenesi e Trama Macabra), apesar de bons, já parecem deslocados, estranhos. Em Frenesi, o herói se assemelha a um ator pornô, com o bigode típico da década de 70. As mulheres não são mais tão bonitas e até os figurantes empobrecem o visual das cenas. Não adianta. As tramas de Hitchcock não combinam com roupa informal, com barba por fazer ou cabelo por cortar. É preciso ser acusado e perseguido como Cary Grant em Intriga Internacional (1959), com o terno de corte impecável, ainda que um pouco sujo, mas altivez intacta, buço e maxilar livre de pelos.

Do início dos anos 40 até o final dos 60, o diretor teve, com certeza, a sua melhor fase (se é que se pode chamar de “fase” três décadas inteiras). Mas os seus filmes britânicos das décadas de 20 e 30 também não são dispensáveis. Já em 1927, com The Lodger, notavam-se esboços do que se tornaria recorrente em seu universo: um homem acusado de crimes que não cometeu, auxiliado por uma mulher que acredita, mesmo sem provas, na sua inocência. O mesmo tema se repete em Jovem e Inocente (1937), Sabotador (1942), Quando Fala O Coração (1945)… Como Nelson Rodrigues, Hitchock era uma “flor da obsessão”, não só porque tratava dos mesmos temas com frequência, mas porque queria entender a obsessão em si mesma. É por isso que Um Corpo Que Cai (1958) tomou o lugar de Cidadão Kane como o melhor filme já feito, de acordo com pesquisa recente feita pela Sight and Sound, porque lida magistralmente com as obsessões que tomam controle do personagem de James Stewart (o medo de altura, a paixão por uma mulher misteriosa, o desejo de reavê-la, de reconstituir o passado) e também de nossas vidas.

Hitchcock disse que a única forma de se livrar de seus próprios medos era fazer filmes sobre eles. Em A Sombra de Uma Dúvida (1943), o pai da personagem principal se diverte com o amigo imaginando formas de se cometer o crime perfeito. Durante o jantar, comentam sobre envenenamento; a filha se irrita com o assunto mórbido e a mãe responde que essa é a forma de o marido relaxar. É através da fantasia, seja assustadora ou não, que podemos escapar do tédio e da rotina muitas vezes acachapante. Assistindo a um filme de suspense, podemos experimentar a emoção de algo que seria terrível demais se vivenciado. Hitchcock não se importava, afinal, com a realidade (o que não quer dizer que não se preocupava com verossimilhança), já que não achava que os filmes deveriam ser pedaços de realidade, mas pedaços de bolo; que era preciso dar prazer ao espectador – o mesmo prazer que temos quando acordamos de um pesadelo. Dizia também que um filme bom deveria valer o preço do jantar, dos ingressos e da babá.

Hitchcock compreendia o cinema em suas devidas proporções, sem grandes firulas. Não o dispensava como mero mercado, mas também não fazia como alguns diretores que, ainda hoje, acreditam que a sétima arte deva flutuar soberana muito acima do simples entretenimento, sem dever nada ao público. O cinema só se torna arte quando preocupado em contar uma história. Em sua essência está, desde o início, o fantástico – o que torna o cinema tão maravilhoso justamente porque tem a capacidade de nos afastar da realidade. Hitchcock disse que drama era a vida com as partes chatas deixadas de fora. François Truffaut, por sua vez, falou que sempre preferiu o reflexo da vida em vez da vida por si só.

Desde Hitchcock, não consigo pensar em outro diretor que compreendesse tão bem o cinema, que combinasse tão harmoniosamente o entretenimento e a arte. É um dos melhores exemplos de como a separação entre alta cultura e cultura popular é boba e ultrapassada. Em Hitchcock, é tudo a mesma cultura; o humor, a diversão, o refinamento, o retrato sincero de medos e anseios humanos. Confesso que pensei em Tarantino e imaginei uma dúzia e meia de conservadores torcendo o nariz. Aos detratores de Tarantino, digo que Kill Bill foi claramente baseado em A Noiva Estava de Preto (1968) de Truffaut, que era uma homenagem à obra de Hitchcock. É verdade que Tarantino às vezes abusa das referências, mas há sinceridade na forma com que ele trata seus personagens e suas circunstâncias (por mais bizarras que elas possam ser). Mais importante ainda, seus filmes são divertidos.

Entendam, por favor, que o verdadeiro cinema não é aquilo que os cabeçudos de Cannes fazem, mas o que Hitchcock fez com tanto sucesso por tantos anos: um entretenimento refinadíssimo, mas, acima de tudo, um entretenimento. E, nesse sentido, parece que Hitchcock ainda reina sozinho.

5 comentários em “Feliz aniversário, Hitchcock

  1. É uma pena que não existam mais diretores que compartilhem este mote hitchcokiano de entreter as plateias com uma boa dose de ação, suspense, drama e humor, todos estes ingredientes no mesmo caldeirão. O que se vê – principalmente quando se volta para o cinema mainstream – é um excesso extremo entre a diversão descrebrada ou uma prepotência em inserir um teor mais filosófico, religioso, psicológico nas tramas a fim de que o espectador tais informações de forma mastigada e se sinta um pouco mais inteligente após passar duas horas no cinema. Falta leveza e sutileza para os cineastas de hoje em lidar com a alta e a baixa cultura como Hitchcock fazia. Bom texto, que outros mais como este venham a agraciar os leitores da Dicta & Contradicta.

  2. Ieda,

    Seus textos sobre cinema são, em sua maior parte, pérolas de concisão e entendimento. Mas parece-me que você está escrevendo no lugar errado. Tenho certeza que a maioria dos leitores deste blog prefeririam um texto enorme, com o máximo de referências highbrown possíveis.

  3. Ieda,
    acho que entre os mais jovens há a tentativa de juntar esses “extremos”. No momento, Chris Nolan é o exemplo que vem à mente.
    Mas podemos pensar nos Irmãos Cohen, em Terrence Malick (exceção ao The tree of life, uma baboseira pretensiosa) e, invertendo a ordem, Errol Morris, que faz documentários que entretêm. Aliás, este último consegue fazer em The Thin Blue Line e The Fog of War muito mais entretenimento do que muito filme premiado na França, no Canadá ou Berlim.
    Dúvidas permanecem em relação a Paul Thomas Anderson, Ang Lee, Lars von Trier e David Fincher. Poucas dúvidas em relação a Almodóvar, Wes Anderson, Spike Jonze, David Cronenberg e quase a totalidade dos diretores brazucas com mais de 35-40 anos.

  4. “Segunda-feira, dia 13 de agosto, completou-se 113 anos do nascimento de Alfred Hitchcock.”

    Não é engraçado como essa nova direita gosta de chamar todo mundo de analfabeto, mas depois me vem com “completou-se 113 anos”? Volte para a escola, dona Ieda!

  5. Gerson, o erro não é tão simples quanto parece. Usa-se mais comumente “completou-se”; isso se justifica pragmaticamente pelo hábito do falante brasileiro de tomar o substantivo ‘tempo’ como uma espécie de metonímia implícita: “completou-se [o tempo de] x anos”. A norma culta, no entanto, até onde sei, é pela concordância entre “completar” e “os anos”, no plural. Por isso você está correto; os revisores, principais culpados, agradecem. De ‘nova direita’, ressalvo eu, estamos todos cheios.

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