Flores plásticas

Flores do Oriente (por que a mudança de The Flowers of War, ou As Flores da Guerra, um título tão mais apropriado?) é o filme mais caro da história da China. Dirigido por Zhang Yimou, de Herói, Clã das Adagas Voadoras, A Maldição da Flor Dourada (e diretor também de parte das cerimônias das Olimpíadas de Pequim, em 2008), conta a história de um americano, interpretado por Christian Bale, em meio ao Massacre de Nanquim. Em dezembro de 1937, o exército imperial japonês atacou a então capital da China, executando não só militares, mas também civis, incluindo mulheres e crianças. Estima-se que mais de duzentas mil pessoas tenham sido mortas, mas tal número ainda é debatido entre China e Japão. Fato é que os chineses dificilmente fazem filmes sobre a ocupação em que os japoneses sejam algo menos do que monstruosos. O Grande Mestre (Ip Man, 2008) é um bom exemplo disso. Zhang tentou dar complexidade a pelo menos um militar japonês, fazendo com que ele gostasse de música (e por isso bonzinho, é claro), mas não deu muito certo. No filme, os japoneses são bestas cruéis que não cedem por nada, nem mesmo ao apelo de um suposto padre tentando defender meninas de treze anos dentro de uma igreja, o que me faz perguntar como atores japoneses aceitam tais papéis. Os chineses, por sua vez, são ou heróicos ou pobres vítimas. Nesta guerra, que ainda repercute fortemente na memória do povo chinês, o que faz Christian Bale?

Bale é John Miller, um agente funerário que chega a Nanquim durante um bombardeio para enterrar um padre, chefe de uma escola católica para meninas. Chegando lá, descobre que não há corpo, pois o padre foi atingido por uma bomba. Mesmo assim, faz questão de ser pago pelo serviço e pelas circunstâncias perigosas, revira a igreja em busca de dinheiro e acaba se hospedando no antigo quarto do padre, já que a catedral é, em teoria, uma zona neutra. Quem o mandou, mesmo sem corpo para enterrar, sem dinheiro para receber e no meio de uma guerra, nunca sabemos. Sabemos que John não se importa muito com o que está acontecendo do lado de fora e que prefere passar o tempo se embebedando com o vinho da missa. Lá, além das estudantes, há também um grupo de prostitutas escondidas no porão. Há conflitos, é claro, entre as meninas educadas na igreja e as mulheres que passam os dias arrumadas, usando maquiagem e vestidos chamativos, mesmo com a falta de clientes. Aqui é visível a falta que faz a habilidade de um Wong Kar-wai. Zhang tenta mostrar Yu Mo, a mais bonita e inteligente das prostitutas (a de melhor coração também!), pelos olhos de Shu, uma das estudantes que se esconde pelos cantos da catedral para observá-la com um misto de aversão e fascínio. Mostrar uma moça bonita em câmera lenta, contudo, não é o suficiente para criar um momento cinemático como aqueles de 2046 e Amor à Flor da Pele. É preciso haver alguma intenção mais concreta por trás da cena, das expressões dos atores, e também do gesto do diretor.

Alguns dos filmes de Zhang Yimou sofrem com um excesso de preciosismo plástico que, em ação ou intenção, são quase sempre rasos ou vazios, como comerciais com imagens magníficas, ideais para passar em loja de televisão. A trama em si, ou os personagens, não são suficientemente marcantes – assisti Herói, Clã das Adagas Voadoras e Maldição da Flor Dourada e, no entanto, não consigo me lembrar da história de nenhum desses filmes, apenas de imagens bonitas, coloridas – importa mesmo vender a televisão hipotética. Flores do Oriente é um pouco diferente, trata-se de um filme que aposta mais na história sendo contada do que tanto na fotografia, mas que não chega a ser um abandono completo da superficialidade em nome da estética. O militar japonês (o bonzinho, porque gosta de música) avisa John que irá levar o coral das meninas para se apresentar em uma celebração das tropas, da qual provavelmente não voltarão vivas. Baseado em fatos reais, o filme conta a história das prostitutas que tomaram o lugar das alunas para permitir que fugissem.

Percebem como tento falar do Christian Bale e logo acabo em outro assunto? É porque sua participação é de fato estranha. Seu personagem serve apenas para auxiliar os outros, suas habilidades como agente funerário possibilitam a transformação das mulheres em adolescentes, sua nacionalidade é uma desculpa que permite com que ele transite ileso – seu personagem é quase que meramente funcional, como um martelo ou uma chave de fenda. Há, novamente, uma tentativa de multidimensionalidade ao apresentá-lo como um babaca bêbado que depois se redime e realmente se preocupa com os outros, mas tal evolução parece forçada até para um ator como Bale. Cínico de início, John acaba vestindo a batina de padre e defendendo as garotas de soldados japoneses que invadem a catedral. Mais tarde, ele revela uma possível motivação para tal, mas sua mudança abrupta de postura ainda não cai bem, e sua história de fundo é apenas retórica, não efetiva. A forma com que o diretor desenvolve o personagem é tão frouxa que parece que seu verdadeiro intuito foi utilizar um grande nome do cinema americano para dar mais visibilidade e aceitação ao filme, como se não fosse possível nos identificarmos com os personagens chineses. Em alguns momentos, é a perspectiva de Shu que prevalece e fica claro que o filme teria muito mais impacto se fosse todo contado do ponto de vista da menina. Interessante também é o soldado chinês que leva um companheiro ferido até a catedral e logo retorna, sozinho, ao combate. Há força e consistência por trás de suas atitudes e é uma pena que sua participação no filme seja tão breve.

Há boas cenas de batalha, como as desse soldado chinês que enfrenta um batalhão de japoneses. Mais adiante, há um plano-sequência em um bordel destruído que, infelizmente, não surte muito efeito porque a câmera treme demais, tornando a ação muito fragmentada para ser sentida como uma só duração de tempo – a intenção, contudo, foi boa. Mas o filme peca pelos momentos de superficialidade. Shu, sempre que confrontada pelas colegas, sai correndo chorando. Quando Yu Mo avisa John para tomar cuidado para não se apaixonar, ele responde, é claro, que já se apaixonou. E assim por diante.

Flores do Oriente foi a escolha chinesa para concorrer às nomeações do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, mas não conseguiu ficar entre os indicados. A pena é que, se tal história fosse tratada por um diretor de mais substância, talvez o filme fosse realmente digno de prêmio.

3 comentários em “Flores plásticas

  1. Marcelo, bobagem minha copiar um trecho supostamente crítico, mas:

    “A forma com que o diretor desenvolve o personagem é tão frouxa que parece que seu verdadeiro intuito foi utilizar um grande nome do cinema americano para dar mais visibilidade e aceitação ao filme, como se não fosse possível nos identificarmos com os personagens chineses.”

    Se você quer leituras aprofundadas de filmes rasos, desculpe, não é comigo.

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