Por Jonas Lopes
Ainda sobre a decadência da alta cultura, assunto que abordei em texto anterior aqui no site da Dicta, outra razão para a derrocada dos padrões não abordada naquele artigo é a do empobrecimento das discussões acerca do gosto e do juízo estético. E poucos livros são tão úteis para o debate do tema quanto Estética Doméstica, do brilhante crítico americano Clement Greenberg (1909-1994). Sério concorrente ao posto de mais influente comentador de artes visuais do século XX, Greenberg fez fama na virada da década de 40 para a de 50, justamente o período de florescimento do expressionismo abstrato dos Estados Unidos, quando Nova York enfim desbancou Paris como capital mundial da arte. Naquele momento em que tantos nomes se consagraram – Pollock, De Kooning, Rothko, Newman (para saber mais, vale a pena correr atrás do ótimo New Art City, de Jed Perl) –, ele reinou como a principal bússola teórica, influenciado sobretudo pelo formalismo de Roger Fry, atento mais às implicações formais e puramente estéticas de uma obra de arte do que das relações histórias e sociais que ela envolve, embora fosse trotskista, ao menos no primeiro momento da carreira.
O que ajudou muito a popularizar Greenberg nos artigos para publicações como Partisan Review, Commentary e The Nation foi o estilo incisivo, quase autoritário, no qual exprimia as opiniões. Considerava, por exemplo, a abstração o único caminho possível para a pintura contemporânea depois do modernismo, um exagero típico. No entanto, com a chegada da pop art, que desprezava profundamente, e a propagação das ideias de Marcel Duchamp (idem), o crítico viu suas doutrinas serem substituídas por opiniões bem mais flexíveis sobre o que é arte: qualquer coisa que se disser arte, basicamente. Até hoje Clement Greenberg não conseguiu retomar a antiga reputação e é visto como um elitista que não tinha a joie de vivre necessária para compreender Warhol ou Duchamp. É nesse contexto que se encaixa Estética Doméstica. Publicado depois de sua morte, o volume reúne ensaios sobre gosto e juízo estético e também seminários dados por Greenberg no início dos anos 70, no Bennington College. São textos excepcionais, e somente em uma época de padrões tão medíocres como a nossa essas reflexões podem não receber a cuidadosa atenção que merecem.
Para Greenberg, um apaixonado leitor da Crítica da Faculdade do Juízo, de Kant, o gosto ganhou uma abordagem mundana e fútil, sendo mais relacionado às boas maneiras de uma pessoa do que às avaliações estéticas em si. E o que seria o gosto, então? Ele nasceria de uma experiência de intuição estética: gostar, não gostar, comover-se, irritar-se etc. Entramos em contato com uma pintura, uma melodia, um poema e isso tudo nos toca de uma determinada forma, influenciada, naturalmente, por nossas experiências anteriores, por nossa biografia, por aquilo que conhecemos, apreciamos e ignoramos. “O juízo estético de cada um, por ser uma intuição e nada mais, é acolhido, e não oferecido”, escreve Greenberg. “Não se escolhe gostar ou deixar de gostar de determinada obra de arte mais do que se escolhe ver o sol como luminoso ou a noite como escura”. A partir do juízo, alcançamos o prazer ou o desprazer: o gosto. E “o prazer da experiência estética é o prazer da consciência: o prazer que ela traz consigo. Na medida em que a experiência estética gera satisfação, a consciência revela seu próprio sentido”. O juízo, portanto, só pode ser alterado ou confirmado a partir do contato direto com a obra. “Certa pintura, certa passagem de um verso, certa peça musical podem fazer com que alguém não se sinta à altura dessa exaltação de conhecimento que o invade; aquelas são as obras supremas”. Irreparável.
Chegamos, nesse ponto, ao dilema central de qualquer discussão sobre o gosto. Como fazer uma diferenciação eficiente do que seria bom gosto e mau gosto? Num dos mais deliciosos tratados sobre o tema, intitulado simplesmente O Gosto e escrito para a Encyclopédie de Diderot e d’Alembert, o Barão de Montesquieu separa o gosto natural, que nos atinge e surpreende sem que raciocinemos sobre ele, apenas absorvamos, e o gosto adquirido, que, ao ser cultivado e desenvolvido em certa direção pode alterar o gosto natural, visto que nos tornamos pessoas mais judiciosas, com padrões distintos de valor, sejam eles maiores ou menores. Assim, anota Montesquieu noutra passagem, “pessoas delicadas são aquelas que a cada ideia ou gosto acrescentam várias outras ideias ou gostos acessórios”, enquanto a alma de uma pessoa grosseira “não acrescenta nem tira nada daquilo que a natureza oferece”. Por fim, “aqueles que apreciam com gosto as obras do espírito têm uma infinidade de sensações que os demais não conhecem”.
Clement Greenberg não cita Montesquieu em nenhuma passagem de Estética Doméstica – prefere concentrar-se em Kant e Croce –, mas afirma que “o gosto cultivado não é algo ao alcance das pessoas comuns”. E vai além ao explorar o que chama de objetivação do gosto. Ora, é claro que um juízo estético nunca pode ser objetivo no sentido literal do termo. Se uma obra pudesse ser dissecada e classificada, explica Greenberg, se pudéssemos dizer que ela possui tantas propriedades da classe “A”, mais tantas da “B” e um punhado da “Z”, arte seria uma fórmula matemática, poderíamos dizer que Bach é melhor que Beatles (ou vice-versa) por ter chegado a um resultado “X” e toda discussão estaria encerrada. Seríamos capazes inclusive de assimilar as grandes criações da humanidade sem de fato travarmos contato com elas. Não seria arte, com efeito, e sim matemática.
O que não quer dizer que todo gosto possua o mesmo valor. O modo como devemos falar dessa suposta objetividade do gosto, segundo Clement Greenberg, está “incontestavelmente provada pela presença de um consenso e por intermédio dele no decorrer do tempo”, algo desenvolvido também por juízos comparativos. A isso, chamamos de cânone: anos, décadas, séculos de reconhecimento de grandes criações, de características que perduram e se renovam, acumulando mais e mais admiração no percurso. A durabilidade cria o consenso e, afirma Greenberg, “o consenso do gosto afirma e reafirma a si mesmo pelas sólidas reputações de Homero e Dante, Balzac e Tolstói, Shakespeare e Goethe, Leonardo e Ticiano, Rembrandt e Cézanne, Donatello e Maillol, Palestrina e Bach, Mozart e Beethoven e Schubert. Cada nova geração considera que as anteriores estavam corretas ao exaltar certos criadores – e o fazem com base em sua própria experiência, em seu próprio exercício do gosto”. Não é por acaso que os grandes escritores, compositores e artistas visuais, no decurso do tempo, tenham avançado em termos estéticos sem nunca deixar de dialogar com a tradição. A Vênus de Urbino, de Ticiano, de uma beleza clássica, renascentista, gerou a Maja Desnuda, de Goya, que desaguou na Olympia de Manet, num contexto muito mais picante, já próximo do modernismo, mas, ainda assim, ligada pelo cordão umbilical ao classicismo de Ticiano. O próprio pintor da escola veneziana, no fim da vida, fez o caminho contrário ao apostar em camadas grossas de tinta (vide a estupenda versão de Tarquínio e Lucrécia que se encontra na Academia de Belas Artes de Viena), antecipa os últimos autorretratos de Rembrandt, Van Gogh e todo o movimento expressionista. Como não admirar o estilo tardio da Grande Fuga op. 133 ou da Sonata nº 32 op. 111, de Beethoven, que antecipam um século inteiro da história da música, embora façam uso das técnicas de fuga e contraponto de Bach? Greenberg acrescenta outros exemplos de gênios que só puderam romper com a tradição após dominá-la por completo: Joyce, Schönberg, Picasso.
Recapitulando, a história do gosto (e do legado do gosto) explica sua objetividade. Ainda assim, há uma diferença entre a história do gosto e a história da arte. Em 1900, Eugéne Carrière era mais famoso que Cézanne, porém “o tempo nivela esses desacordos”, sobrando apenas discussões dentro do próprio cânone (Ticiano ou Michelangelo? Mozart ou Beethoven?). Difícil discordar, a não ser que achemos que daqui a cinquenta ou cem anos Damien Hirst será mais lembrado do que Anselm Kiefer, Lady Gaga mais lembrada do que Arvo Pärt ou Paulo Coelho mais lembrado do que Thomas Bernhard; para tanto, a crítica teria que decair demais, ainda mais do que já decaiu no último século (importante lembrar que, na definição de Eliot, a função da crítica é, para retornar ao assunto principal, a “correção do gosto”…). Se o gosto fosse de todo subjetivo, uma experiência estética “privada e solipsista” (Greenberg), a permanência de Homero ou Bach teria dependido de coincidências absurdas ao longo de muitos séculos. Como chegaram até nós, algumas qualidades em comum precisaram ter.
O que Clement Greenberg lamenta é que as gerações pós-Duchamp tenham trabalhado tanto para anular as discussões acerca do gosto e do juízo estético: “foi a arte interior que cultivou a esperança de tornar os juízos de gosto irrelevantes pela força da demonstração”. Quando até um tubarão dentro de um vidro de formol ou o registro de uma relação sexual com Cicciolina podem ser chamados de arte, tudo o mais pode, e ao se tentar relativizar valores, esse hábito tão comum hoje, um retrato de Tintoretto pode ser colocado no mesmo patamar de um saco de arroz num cubo branco, ou uma ópera de Verdi está no mesmo nível de “Eu quero tchu, eu quero tchá”. Ao romper com o antigo método da inovação em contato direto com a tradição, essa vanguarda “transgressora” passou a advogar pela infindável sequência de rompimentos estéticos, a inovação pela inovação, simplesmente. Assim, a arte contemporânea (ou a música atonal) assumiu uma postura acadêmica, um reacionarismo (mal) disfarçado. Greenberg antecipa os detratores de seu suposto esnobismo ou exclusivismo: “acrescente-se a isso a questão do ‘elitismo’, isto é, o argumento de que o gosto não deveria mais ser determinante, uma vez que a arte exaltada por ele pouco diz respeito à vida tal como ela é vivida pelo homem comum”. De fato, cada um tem o gosto que merece, seja Austerlitz ou Fifty Shades of Gray.
Curioso é que, embora seja um livro dedicado acima de tudo ao receptor da grande arte, ou seja, nós, os donos do gosto, Estética Doméstica brilha e comove ainda mais quando Greenberg fala do outro lado, quando explica que “o transmissor – o artista, o escritor, o compositor, o ator ou o cantor – deve também objetivar a si próprio […] Precisa ser subjetivo para dar o primeiro passo; precisa de diversas coisas que lhe são singulares e peculiares: seu temperamento, sua autobiografia, sua privacidade”. Não basta o talento, entretanto, e o crítico arremata com precisão: “requer-se a disciplina e a pressão de um meio. Ao enfrentá-las o artista superior objetiva sua subjetividade, transcende-a sem esquecê-la – seja ele um entalhador de pedra gótico ou Keats, um pintor paleolítico ou Mahler. Dante escreveu poesia movido pelo rancor pessoal, entre outras coisas. No entanto, ao lado dessas, o rancor tornou-se para ele o meio da arte, e jamais existiu uma obra de arte mais ‘objetiva’ do que a Divina Comédia. Em última análise, o artista bem-sucedido aparta-se de seu Eu privado, supera-o, transcende-o tanto quanto o faz o amante ‘bem-sucedido’ da arte”.
Jonas, me lembrei bastante do A Grande Feira, que conheci por causa de seu antigo blog (onde você anda publicando suas resenhas?)
Você chegou a assistir Exit Through the Gift Shop, do Banksy?
Um dos melhores artigos que já li nesse site, que acompanho desde a 1a. edição da Dicta.
Ao Jonas, meus parabéns! Anseio ler mais de suas mãos.
Abraço,
Santini
Paulo, tenho publicado textos na própria Dicta, tanto online quanto na impressa. E não vi o filme do Bansky.
Li seus textos nas primeiras Dictas, e os do blog, mas sinto falta mesmo é daquelas breves resenhas críticas, como uma que me fez ir atrás do Hrabal, ou a que me fez buscar o Bouillier. Com a morte do Piza, nem sei bem quem anda fazendo isso, com os lançamentos no Brasil. Você indica alguém?
Sobre o filme do Banksy, é uma das melhores montagens destes últimos tempos. O tipo de filme que diverte estimulando certas reflexões; algumas delas se assemelham às que você também vem fazendo em seus últimos textos que li.
Penso que se formos nivelar de uma maneira bastante reducionista, a grande causa dos embates e conflitos perpetrados pelo ser humano advém desta pequena grande questão sobre o que é o gosto, seja ele bom ou mal, prejudicial à saúde ou que satisfaz as necessidades daquele que o demanda. Sobre a tônica da arte contemporânea que ora volta seus olhos para o passado a fim de sintetizá-lo de acordo com as transformações culturais na contemporaneidade, ora se infla de um exacerbado egocentrismo que renega a tudo e a todos numa tentativa de criar camadas de interpretação (e complicação), expondo a miséria de ser mais uma criatura feita à base de carbono que suga a natureza e seus recursos de forma impiedosa e irracional, não creio que tais convenções deixaram de cessar com o advento de uma classificação ou um apuro estilístico do gosto.
Arte requer abstração e admiração ao objeto que se apresenta aos sentidos; traz um quê de objetividade na utilização de materiais e na harmonia com que eles são reunidos na construção de uma obra, embora a subjetividade não fique desatrelada deste processo único. Arte também propicia que o sujeito que a contempla saia de sua zona natural de conforto, que seja provocado pela aberração na tela, pela estridência de um ritmo, pela profusão confusa de imagens e sons a enganar seus sentidos, fazendo com que ele se veja descobrindo algo novo, algo inpensado para si mesmo, algo que aliado a sua própria experiência de vida e ao que a obra lhe proporcionou ao contato, venha a lhe infundir o gosto pela Arte.
P.S.: Uma sugestão de filme que apresenta uma reflexão interessante sobre os meios da arte é o filme “Untitled” (2009, que aqui no Brasil recebeu o nome indigesto de “Unidos pela Arte”). É uma boa recomendação.
Paulo, confesso que não tenho lido nenhum blog brasileiro que cubra lançamentos literários recentes – acho que até porque os blogs já não possuem mais a força que tinham até pouco tempo atrás. Mas o Sabático, do Estadão, tem coisas boas de vez em quando.