História, honestidade e autoria

por Felipe Pimentel

No parágrafo oitavo do Livro I[1] das “Histórias” de Heródoto temos a seguinte passagem (é preferível evitar qualquer qualificação da passagem como anedota ou enigma antes de examiná-la com demora e cuidado):

Heródoto está a contar a história de Candaules, filho de Héracles (da família dos Heracleidai) e governante de Sardis, cidade da antiga Lídia. Candaules escolhera entre seus lanceiros um que especialmente lhe agradou, chamado Gyges (da família dos Mermnadai), a quem confiava não só os negócios mais importantes, mas também seus maiores segredos. Entre tais confidências, constava especialmente os insistentes elogios de Candaules à beleza de sua própria esposa. Mas Heródoto nos diz que Candaules desiste de somente falar a Gyges sobre este último tema e parte para uma estratégia mais audaz: “Gyges, acho que você não acredita em mim quando lhe falo da beleza de minha esposa, pois acontece que os homens confiam menos em seus ouvidos que em seus olhos. Imagine como poderias vê-la nua.” Gyges protestou veementemente e disse: “Mestre, que espécie de palavras néscias são as que afirmas, licitando-me a olhar sua mulher nua? Quando uma mulher desvenda sua túnica, ela também desvenda sua modéstia. Além disso, de velhos tempos temos aqueles justos ditos descobertos pelos homens, dos quais retiramos alguma sabedoria; e destes, um é que ‘cada homem deveria considerar por si próprio. (…)’”

Apesar dos pudores de Gyges, Candaules explica-lhe a situação: quando sua esposa chega em casa, ela tira suas roupas e as joga uma a uma em uma cadeira na entrada do quarto. Da cadeira até a cama, ela percorre o quarto nua. Segundo o rei, Gyges poderia esconder-se no quarto e espreitá-la neste curto, mas crucial trajeto. À noite, Candaules preparou a emboscada para sua própria esposa. Gyges escondeu-se no quarto e, conforme havia relatado o rei, assistiu à rainha retirar as vestes lentamente e caminhar lentamente até seu leito.

(Nada nos diz Heródoto sobre a nudez da rainha.)

Ocorre que Gyges tenta escapulir do quarto com os devidos pés de lã, mas um pequeno estalido faz a rainha ouvi-lo e vê-lo sair do quarto. Mas Gyges, por sua vez, não nota que ela o percebe. Percebendo que a entrada de Gyges em seu quarto era uma trama de seu marido, a rainha nada faz, mantém silêncio, cai no sono, esperando o próximo dia.

Na manhã seguinte, a rainha manda seus lacaios chamarem Gyges, e este, sem saber da ciência da rainha, vai a seu encontro e ouve: “Há dois caminhos abertos para você, Gyges, e eu lhe deixo escolher o que preferir. Ou você deve matar Candaules e possuir a mim e ao reino da Lídia, ou você deve aqui mesmo ser morto, de forma a que não possa no futuro, por obedecer a Candaules, ver o que não deveria.” Na encruzilhada entre a morte e um reinado (e aqui percebemos já um primeiro indicativo da distinção entre a história e o épico), Gyges escolhe viver. Refinando a vingança, a rainha exige-lhe que mate o rei pela mesma emboscada que dera origem à vingança: escondido no mesmo lugar, na mesma hora, no mesmo quarto. Armado com um punhal, na mesma noite, Gyges vinga a rainha da traição do rei, na qual ele próprio era partícipe. Termina Heródoto: “Assim, os Mermnadai obtiveram o governo ao usurpá-lo dos Heracleidai.”

Essa passagem conta a primeira história do livro de Heródoto. De forma que, sendo Heródoto, desde a denominação ciceroniana, o pai da História, essa é a primeira história do mundo. Ironias à parte, é o relato que Heródoto utiliza para ilustrar, trágica ou comicamente, sua metodologia da história:[2] o privilégio do olhar (opsis) sobre o ouvir (akoë)[3] e a articulação dessas ferramentas dos sentidos com a inteligência (gnomë) na formulação do saber histórico. É um conto que coloca em jogo a inovação que Heródoto buscava trazer neste lento caminho percorrido pelos gregos pelos discursos que buscam a verdade:[4] a história como disciplina e sua difícil relação com suas fontes.

A história, tal como deseja escrever Heródoto, partilha da mesma intenção que a poesia épica cultivava entre os gregos, a saber, a preservação de um patrimônio cultural no qual os homens reconheciam sua identidade ao mesmo tempo em que espelhavam seus comportamentos e ideais. Mas ele se distancia do épico à medida que busca relatar os fatos do tempo dos homens,[5] quando, em vez de de proclamar o célebre “Canta, ó musa, a cólera de Aquiles…”, ele proclama:

            “Eis a investigação de Heródoto de Helicarnassos, para que os feitos dos homens não possam ser esquecidos pelo lapso dos tempos, tampouco possam as obras grandiosas e maravilhosas produzidas algumas pelos gregos, outras pelos bárbaros perderem seu renome; e especialmente que se possa lembrar a causa que pôs em guerras uns contra os outros.” (Herodotus, The Histories, Livro 1, p.3)

Mantém-se o objetivo da preservação dos feitos gloriosos (klea andrön) e também da apresentação de um repertório de comportamentos e dinâmicas, fazendo a história herdeira da poesia épica e aparentada de outras modalidades de apresentação de feitos paradigmáticos,[6] tais como a tragédia, a oratória ou a retórica. Ou seja, como afirma Dosse, trata-se não somente de relatar o feito dos grandes heróis, mas de tratar dos valores coletivos dos homens comuns nas pólis.[7] O historiador somente se afasta, na medida do possível, do maravilhoso que caracteriza sobremaneira o épico (ainda que em Heródoto este afastamento seja muitas vezes pequeno – o que lhe rendeu a fama de mitólogo por dezenas de gerações -, especialmente após a condenação impiedosa de Plutarco em Sobre a malignidade de Heródoto; fama que será inicialmente aplacada pelo livro de Henri Estienne, no século XVI, a favor do historiador de Helicarnassos). É esse afastamento que faria do relato histórico algo menos voltado para o prazer da audiência que para a busca do verdadeiro[8]. E que também fez com que Políbio tenha suposto que seu relato não cairia no gosto de nem mesmo uma classe de leitores; e até Tucídides tenha suposto que a falta do elemento místico lhe retirava todo o sabor… Mas resta a questão: se o historiador não fala, tal como o aedo, pela musa, fala através de quem? Qual a confiabilidade de seu relato?

Para respondermos esta questão, teríamos que investigar a singularidade da história grega diante das outras histórias produzidas na Antiguidade. Muitos antes de Heródoto (ou mesmo de Hecateu de Mileto), temos uma série de textos cronográficos no Oriente próximo, como as crônicas do período acadiano (as Crônicas da Monarquia), os anais egípcios (como a Pedra de Palermo ou os Anais das guerras de Tutmés III), ou mesmo as histórias dos domínios assírios (como a Crônica de Esarhaddon).[9] Em que esses textos históricos se diferenciam dos textos dos historiadores gregos da época clássica? Há alguma singularidade da história que os gregos elaboraram que legitime a paternidade da disciplina?

A inovação grega, tal como demonstrou Wilamowitz, é a colocação do historiador como autor (Wilamowitz, 1908), ou como afirma Hartog: “Os gregos são os criadores, a partir de Heródoto, não da história, mas do historiador como sujeito” (Hartog, op.cit., p.46). Quer dizer, ao mesmo tempo que a historiografia grega se distancia do documento sem autor, ela exige a colocação do historiador como aquele que escreve não a história, mas uma história. Como afirma Nicolai: “A verdade da história antiga reside mais na imparcialidade e honestidade do historiador. “(Nicolai, op.cit., p.17).[10]

E a honestidade e imparcialidade do historiador estão colocadas no modo como ele apreende as evidências daquilo que relata. Heródoto sabe que o ver e ouvir têm de ser acompanhados pela inteligência (gnomë); caso contrário, são evidências cegas. Isto é, a teoria antiga da história foca-se nos ‘meios subjetivos’ (para usar a expressão de Schepens) entre as principais atividades de investigação do historiador. É como se os gregos tivessem intuído (ou mesmo reconhecido da forma mais profunda) a fragilidade do objeto histórico. A questão é sobre como o historiador estabelece contato com a realidade que examina. Quão próximo da coisa em si ele está?[11] (Shrimpton, 1997). É necessário que ele esteja in propria persona?

Não é necessário que o historiador suponha que ele domina o passado, como se fosse alguma espécie de mnemon, função que exerceu um tal Espensítio na Creta Antiga, um homem-memória que prestava seus serviços em julgamentos; ou mesmo como se fosse algum histor, um homem-história, que detém o relato verdadeiro sobre o que aconteceu. O historiador grego flutuava em algum espaço intermediário e corajoso entre essas funções. E é este espaço que pode orientar a tarefa de historiar nos dias modernos. Por quê?

Por um lado, temos o fracasso do hegelianismo e do marxismo como teleologia histórica, apesar de sua predominância na disposição de espírito e mesmo na orientação política de muitos praticantes nas academias. Seu corolário tímido normalmente é a simplificação dos eventos históricos através de conceitos abstratos que agem como homens grandiosos ou, até mesmo, heróis (em muitos livros de historiadores marxistas, às vezes, não há um só fato histórico). Já seu corolário audaz trata-se da mais direta ideologização do curso histórico, como alguma suposta evolução da história dos homens – moral, social, política ou econômica.

Por outro, a ameaça de a tão propalada “crise dos paradigmas”, que assola as humanidades, conduzir a história como disciplina ao relativismo radical (já defendido por alguns), permitindo o efeito torto da fragilidade epistemológica da disciplina: a falsificação (vem à mente o clichê exemplo de 1984). Diante do reconhecimento da dificuldade da história falar por si mesma, anuncia-se e propaga-se a multiplicação de versões históricas, que servem ora para a legitimação de qualquer ideologia política, (e pior) ora para nada.

E é do intervalo entre estes extremos – a ilusão da verdade histórica em terceira pessoa e o deserto de todas as verdades – que retiramos uma lição dos antigos: que a impossibilidade de dominar o passado, esse objeto para sempre perdido, não conduza o historiador ao desprezo dos rastros que o passado nos lega, pois, como afirma Huizinga, temos uma necessidade civilizatória de acertar contas com o passado. E que o historiador diante destes vestígios tenha a dignidade de os respeitar e acolher, para postar-se, acima de tudo, como autor.

            ***

            Se a verdade do historiador trai algum reinado é tema para as conjecturas de cada um.



[1] A divisão em livros não consta no original.

[2] Heródoto, como sói acontecer na antiguidade, não chega a possuir uma teoria da História, ainda que discuta claramente uma metodologia da história. A exceção a tal é Posidônio. Para tal, ver Nicolai, 2007.

[3] Para tal, ver Schepens, 2007.

[4] Para tal, ver Dosse, A História, 2012.

[5] Para tal, ver Hartog, Evidência da História: o que os historiadores veem. 2011.

[6] Para tal, ver Nicolai, 2007.

[7] Para tal, ver Dosse, op.cit.

[8] Para tal, ver Hartog, 2011; e Dosse, 2012.

[9] Para tal, ver Daniel Woolf, 2011.

[10] Para tal, ver Woodman, 1988; Vercruysse, 1988; e Nicolai, 2007.

[11] Para tal, ver Shrimpton, 1997.

7 comentários em “História, honestidade e autoria

  1. Esse assunto é atualíssimo, importantíssimo e inadiável. A partir dele e usando essas mesmas fontes, deveríamos discutir liberdade de expressão e de imprensa e a Comissão da Verdade, por exemplo. Todo mundo tem o direito de escrever história – a sua ou a de outros – usando os vestígios que quiser, sejam eles documentais, orais, visuais, vivenciais. A honestidade vem de declarar a que vestígios se apegou. E “se a verdade do historiador trai algum reinado é tema para as conjecturas de cada um”. Parabéns, Pimentel, quem sabe você se anima a vinteprimeirosecularizar o seu texto?

  2. Estimada Shirlei Horta, você captou exatamente o que eu tinha em mente, a saber, as problemáticas com a escrita da história no mundo contemporâneo – seus desvios e ideologias. Este texto é introdutório, a princípio, de uma série que escreverei sobre historiografia (tema raro nos blogs e revistas em geral). Pretendo sim chegar mais claramente neste ponto que você levantou. Muito obrigado pelo comentário. Um abraço, Felipe Pimentel

  3. Neste momento, a História está dando de 10 a 0 na imprensa e em outros redatores que se querem “oficiais”… A aula está sendo nas ruas, mas há gente demais querendo ensinar, poucos se empenhando em aprender. Ah!, e antes que me esqueça: eu AMO a classe média.

  4. Um mês sem post no site da Dicta.
    UM MÊS!

    Silêncio sepulcral sobre a nova Dicta impressa.

    As coisas não são mais as mesmas por aqui…
    Uma pena. Uma pena mesmo.

  5. Olá, Felipe.

    Tínhamos iniciado uma conversa há uns dois meses no fb a propósito deste texto por causa de um comentário que eu tinha feito sobre ele no status de um amigo teu. Bem, retomando-a por aqui agora: tuas referências continuam ininteligíveis. Você citou os autores e datas, mas não os livros. Fiquei curioso, por exemplo, para saber ao certo quem é o Schepens, 2007. Entendi que você tirou dele tua percepção da metodologia da história de Heródoto, mas ela me parece discutível. Eu gostaria de tentar ler o autor, no entanto, antes de comentar sobre isso.

    Que historiadores você tinha em mente ao escrever que “(em muitos livros de historiadores marxistas, às vezes, não há um só fato histórico)”?

    Conhece o “Relações de Força”, de Ginzburg? Acho que você iria gostar dele. Lá, tem a lembrança de outra lição que um grego deixou para nós. Talvez você a conheça, mas como me disse que assuntos de teoria não costumam ser discutidos em blogs, talvez ela possa ser útil aos teus leitores: Em História geralmente as teorias relativistas costumam reduzir a historiografia à sua dimensão retórica. Nos ensaios do livro, Ginzburg mostra que há basicamente duas formas de se fazer isso: ou você se alinha a uma tradição que remonta ao Górgias de Platão, ou à vinculação que Aristóteles faz entre retórica e prova. Parece uma simplificação, mas, assim, praticamente tudo que é apresentado como moderno já foi dito por algum grego. As teorias de Foucault, por exemplo. Lembro que enquanto lia naquele “a ordem do discurso” uns parágrafos sobre a ação política se fazer por meio do discurso, lembrava de que para os gregos isso já era óbvio: não era cousa de sujeito da pólis se impor pela força. A vinculação da verdade ao poder também é cousa de Tucídides, no mínimo. Acho que é mais ou menos como o Olavo disse uma vez: só se impressiona com autores modernos quem ignora completamente o que existiu antes (aqui imagino o Julio Lemos dizendo que só se impressiona com o Olavo quem ignora outros autores etc). Mas, divago.
    Os sofistas entendiam que a retórica servia para você convencer alguém por meio dos afetos. Quem faz isso desde sempre? Poetas, romancistas. Aqui está um dos ataques ~modernos~ à possibilidade de verdade em História: supostamente o historiador usaria essa mesma retórica literária. Alguns argumentos para sustentar isso: historiadores criam enredos segundo certos modos literários; explicações históricas universalistas se transformam em mitos ou metáforas; historiadores criam um mundo textual autônomo e autoreferencial que nada tem com a realidade; a História é um constructo pessoal; uma cousa é o acontecimento, outra o relato dele.
    Para Aristóteles há três tipos de retórica: deliberativa (futuro), epidíctica (presente) e judiciária (passado). E as provas são técnicas (exemplos [paradeigma]; entimemas [são o núcleo da prova) – ou seja, indução e silogismo no âmbito dialético) ou não-técnicas (testemunhos, confissões feita sob tortura, documentos escritos e similares). Os entimemas derivam de: signo (semeion), exemplo (paradeigma), de prova necessária (tekmerion), do que é verossímil (eikos). Por que isso é importante para a História? Porque Aristóteles identifica na prova o núcleo racional da retórica. E a retórica histórica é a que lida com eventos passados, logo, é a judiciária. O que constitui o núcleo racional dessa retórica? A História pode ser reconstruída a partir de indícios (semeia) que implicam numa série de conexões naturais e necessárias (tekmeria), que tem caráter de certeza até que se prove o contrário; fora dessas conexões, o historiador se move no âmbito do verossímil (eikos). Agora observe a conexão com a linha acima sobre o que constitui o entimema. Ergo: historiadores podem provar argumentos; não estão no nível de retórica sofista que se lhes atribui.

    É por aí.

    Abraço.

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