Hobsbawm e o preço da utopia

Na Dicta mais recente, lançada em agosto de 2012, pedimos ao autor conservador inglês David Pryce-Jones um artigo, que na verdade ele próprio já queria escrever, sobre Eric Hobsbawm.

O resultado é um ensaio para lá de crítico. Posto que Hobsbawm faleceu hoje, por um lado há um aumento no interesse por sua obra; e nesse sentido mesmo artigos pesadamente críticos são relevantes. Por outro lado, há um louvável costume social que pede que não se fale terrivelmente mal daqueles que acabaram de morrer (exceção feita aos grandes monstros e tiranos da história da humanidade).

Sendo assim, como leve contrapeso ao artigo de Pryce-Jones, que publicamos abaixo (e que foi escrito meses antes da morte de Hobsbawm), cabem algumas palavras de matização. O artigo é eficaz em mostrar duas coisas: 1) o comprometimento pessoal de Hobsbawm com a causa soviética, algo verdadeiramente detestável; e 2) como esse comprometimento levou a algumas omissões em sua obra histórica.

Contudo, essas duas críticas não tiram seu mérito de pesquisador e intérprete da história moderna, algo que ele fez com maestria, e que explica por que recebeu tantos prêmios e títulos relatados no próprio ensaio. Sua matriz interpretativa da história – as teorias e premissas que ele usa para articular os fatos inicialmente desconexos que são a matéria-prima do historiador – pode ser altamente questionável, mas dentro de seus parâmetros, a obra tem um grande valor, por mais que em certos momentos (não todos) ela tenha deixado a ideologia falar mais alto do que os fatos (sem nunca, contudo, inventar falsidades; há uma grande distância entre aplicar pesos distorcidos e simplesmente mentir).

É curioso que, mesmo adotando uma matriz interpretativa falsa (parece-me seguro afirmá-lo acerca do socialismo soviético), ele tenha criado uma obra histórica de peso e alcance maior do que muitos outros contemporâneos seus que não se deixaram seduzir (ou deixaram-se mas depois mudaram de opinião) por uma ideologia tão destrutiva quanto a que Hobsbawm apoiou. 

Seja como for, segue abaixo o artigo de Pryce-Jones para a Dicta 09.

 

Hobsbawm e o Preço da Utopia

Eric Hobsbawm tem passado sua carreira de pelo menos sessenta anos ora justificando a existência da União Soviética, ora lamentando sua derrocada. Ninguém no Reino Unido poderia igualar semelhante recorde; aliás, nem na Rússia de hoje há alguém com uma carreira comparável. A culpa dos males do mundo é, argumenta Hobsbawm invariavelmente, do capitalismo e dos capitalistas. Ele gosta de se definir como um historiador profissional, mas isso não passa de rematada autoindulgência da parte de um apologista denodado da ideologia marxista‑leninista. Hobsbawm não tem qualquer interesse pelas normas habituais da historiografia, que é contar o mais objetivamente possível a verdade dos acontecimentos. No entanto, quanto mais distorcidas e perversas são as suas ideias, maior a reputação que angaria. Reitor do Birkbeck College, em Londres, professor universitário, membro da British Academy e da American Academy of Arts and Sciences, coleciona prêmios, títulos honoríficos e louvores muitas vezes negados a acadêmicos de verdade. É extraordinário que a defesa do totalitarismo e o desprezo pelas sociedades livres sejam recebidos com a aprovação de multidões.

Sir Keith Thomas, autoridade em temas da cultura britânica, por exemplo, chegou a dizer que Hobsbawm “é inigualável na sua profissão”. Numa resenha para o New York Review of Books, Tony Judt considerou‑o “o mais conhecido historiador do mundo […] um herói lendário da cultura. Sua fama é bem merecida. Ele controla vastos continentes de informação”. Um comentarista conservador, Niall Ferguson, criticou o comunismo de Hobsbawm, mas julgou inegável o fato de ele ser “um dos grandes historiadores desta geração”. Tampouco o New York Times viu algo de contraditório ou estranho em descrevê-lo como “um dos grandes historiadores britânicos da sua geração, comunista ferrenho e homem culto, cujas obras de história, escritas com erudição e estilo elegante, continuam a ser lidas nas escolas daqui e do exterior”. A revista The Nation foi muito além disso, elevando‑o a nada menos que a categoria de “um dos ‘homens virtuosos’ de Aristóteles”. O ex‑primeiro‑ministro Blair o elevou a membro da Ordem dos Companheiros de Honra, distinção rara que serviu para confirmar sua reputação. Um entrevistador da BBC, célebre por desbaratar pretensões, convidou‑o para um dos principais programas de entrevista e, de repente, entregou‑se à bajulação, chamando Hobsbawm de o maior historiador do século XX.

A experiência comunista – trata‑se de uma opinião já amplamente aceita – é responsável por cem milhões de mortes, e impôs ao século XX o estigma de uma das épocas mais assassinas da história. Já se descobriu que o marxismo‑leninismo é, na melhor das hipóteses, um devaneio acadêmico e um eufemismo para engenharia social; na pior, uma máquina infalível de guerra, conflitos e genocídios. Os condenados a aturar o comunismo livraram‑se agradecidamente dele assim que tiveram chance. Antigos fiéis da primeira hora – de Andrei Sakharov e Leszek Kolakowski a François Furet – viriam a explicar detalhadamente como pessoas inteligentes como eles próprios puderam estar tão enganados. Humanidade, liberdade, a simples compaixão pelo próximo: nada disso preocupa Hobsbawm. Para ele, a União Soviética caiu porque, infelizmente, não aplicou os métodos adequados para o verdadeiro comunismo. Todo o experimento deveria ser repetido a partir das diretrizes deixadas por Marx e Lenin, embora essa nova tentativa também suponha o uso da força e um grande número de mortos. Em 1994, Michael Ignatieff – então jornalista político, mas depois presidente do Partido Liberal do Canadá – entrevistou Hobsbawm para a BBC. Segundo o historiador, o Grande Terror de Stalin teria valido a pena caso tivesse resultado na revolução mundial. Ignatieff replicou essa afirmação com a seguinte pergunta: “Então a morte de 15, 20 milhões de pessoas estaria justificada caso fizesse nascer o amanhã radiante?” Hobsbawm respondeu com uma só palavra: “Sim”.

Certa vez, encontrei Hobsbawm na casa de um amigo em comum. Conversamos sobre a Guerra Fria, em pleno vapor à época. Para ele, o certo seria jogar uma bomba atômica em Israel. Era uma simples questão de matemática: melhor matar cinco milhões de judeus do que ver uma superpotência nuclear matar duzentos milhões de pessoas. “Goebbels foi a última pessoa a falar assim”, eu disse. Ele se levantou da mesa e foi embora.

É difícil e doloroso simpatizar com alguém tão disposto a ver o assassinato em massa como prelúdio da Utopia. É ainda mais difícil fazer‑lhe justiça. Hobsbawm pertence a um tipo de gente retratado numa memorável passagem de Ferdinand Peroutka, ex‑aliado de Tomas Masaryk, o primeiro presidente da Tchecoslováquia. Os nazistas o prenderam e os comunistas o exilaram.

“O tirano dos dias de hoje sempre envia dois tipos de emissários: homens armados e falsificadores de ideias; sujeitos robustos e homens magrelas de óculos e rosto chupado; capangas que espancam a nação e outros capangas que agradecem o espancamento em nome da nação. O policial é seguido – e às vezes precedido – pelo mentiroso.”

Capangas e brutos estão presentes em todas as sociedades. Despertam pouco ou nenhum interesse, com a possível exceção da polícia. A revolução marxista‑leninista ou qualquer outro colapso social dá a tais homens a licença de pôr em prática a brutalidade que é sua segunda natureza. Obedecerão a qualquer um que lhes mandar servir de guarda em um campo de concentração ou atirar na nuca de alguém. Os falsificadores de ideias e mentirosos são muito mais sinistros. Em busca de poder, distorcem a verdade e transformam crime em justiça. Por trás dos escritos de Hobsbawm, está a sombria silhueta de um comissário assinando penas de morte com a consciência limpa. Como pôde ter se tornado um dos magrelas de óculos e rosto chupado, um profissional da falsificação e da mentira de que nos fala Peroutka?

O primeiro lugar onde procurar a resposta é em Tempos interessantes, sua autobiografia. Ele nasceu em 1917, e eu um pouco depois, em 1936. Por coincidência, ambos temos raízes judaicas e vienenses. Sua mãe, escreve, dizia‑lhe para nunca fazer algo que pudesse sugerir certa vergonha de ser judeu. Uma ou duas gerações atrás, muitos judeus abraçaram o comunismo, que parecia oferecer‑lhes assimilação, a libertação completa de uma identidade que talvez lhes envergonhasse ou – pior ainda – desse margem a situações vergonhosas. O internacionalismo teórico do comunismo oferecia a libertação das exigências da identidade judaica, uma escapatória, uma promessa de igualdade com os gentios. Essa resposta a tantas aspirações foi forte o bastante para seduzir muitos judeus a se tornarem revolucionários marxistas. Hobsbawm foi um deles.

Perseguidos tanto por Hitler como por Stalin, o destino dos marxistas judeus não foi senão trágico. Sua identidade revolucionária adotiva só convencia a eles próprios. O sionismo, ou seja, o nacionalismo judaico, era outra escapatória possível, uma retirada, uma afirmação de alteridade, uma espécie de tribalismo até – também com seu elemento trágico. Sendo um judeu marxista revolucionário, Hobsbawm vê em Israel uma nação “imperialista”, e por isso negou‑se certa vez a tomar um voo que fazia escala em Tel-Aviv. Na sua autobiografia, despreza Israel, chamando‑o de “o pequeno Estado‑nacao militarista, frustrante na sua cultura e agressivo na sua política, que pede a minha solidariedade em termos raciais”. Noutra ocasião, visitou a Universidade Bir Zeit, na Cisjordânia, para dar seu apoio aos palestinos. Ficamos sem saber por que o nacionalismo palestino é válido, mas o judaico não. A proposta que uma vez o ouvi fazer – cinco milhões de sionistas deveriam ser mortos – representa a ideologia marxista judaica levada ao ponto de transformar a revolução em reação.

Depois de crescer em Viena e Berlim, Hobsbawm chegou à Inglaterra em 1933 e entrou em Cambridge três anos mais tarde. Naquela época, a cultura britânica era provinciana. Com o intuito de provocar uma mudança no público, formadores de opinião como H.G. Wells, Bernard Shaw, o casal Webb, Victor Gollancz – editor e iniciador do sucesso comercial Left Book Club – divulgavam o comunismo a pessoas que não tinham contato com o Partido nem com o movimento trabalhista. Acadêmicos, donos de terras, advogados, poetas e jornalistas, futuros ministros, clérigos, socialites, celebridades: todos se declaravam comunistas. Ano após ano, a Intourist levava milhares de visitantes ansiosos à União Soviética para passeios cuidadosamente escolhidos e supervisionados dos quais voltavam para casa empolgados, repassando desinformações sobre o país. Uma Gra‑Bretanha Soviética estava se formando, os acontecimentos mundiais talvez a fizessem surgir, assim como o regime colaboracionista de Vichy emergiu do blitzkrieg nazista de 1940.

Faltava uma cabeça cosmopolita no centro da batalha política do continente, seja nas barricadas, seja nas conferências; era preciso uma versão local de Malraux, Aragon ou Togliatti. Tipos como Arthur Koestler e Malcolm Muggeridge poderiam ter servido, mas disseram a verdade sobre o que viram e logo se tornaram inimigos do povo. É aí que entra Hobsbawm. Falante de alemão, podia ser admirado por ter visto as tropas de choque de Hitler. O fato de ser judeu e marxista aumentou a sua credibilidade. Em Cambridge, era rodeado de amigos e conspiradores como Kim Philby e Guy Burgess, ambos já agentes soviéticos. Outro membro desse círculo era Noel Annan, que me disse certa vez que Hobsbawm tinha tanto talento para a persuasão que espalhou o comunismo entre seus contemporâneos. Também estava com eles James Klugmann, futuro membro do Comitê Central do Partido e um dos pivôs no processo de manipulação a levar Tito ao poder na Iugoslávia. Quando Tito se revelou nacionalista, Stalin retirou seu apoio e ordenou Klugmann a iniciar uma polêmica contra o próprio homem que ele secretamente ajudara a chegar ao poder. Um pequeno episódio de Tempos interessantes mostra‑se especialmente revelador. Durante um dos ataques aéreos, uma mulher descrita como camarada Freddie ficou presa sob os escombros. Certa de que morreria, gritou: “Vida longa ao Partido, vida longa a Stalin”. A conclusão de Hobsbawm para essa tragicomédia foi: “O Partido era a nossa vida”.

Hobsbawm é sem dúvida inteligente e engenhoso; é capaz de manusear com facilidade as ferramentas de trabalho do historiador: pesquisar arquivos e fontes primárias e ser o mais objetivo possível no tema que tem às mãos. Um historiador marxista, porém, não pode seguir tais princípios; deve propor perguntas a respostas já dadas. Seu estudo orienta‑se pela obrigação de provar que os dogmas, teorias, especulações, gostos e repulsas de Karl Marx são confirmados em todas as sociedades em todas as épocas. A historiografia marxista nada mais é que um longo juízo de valores a priori que elimina necessariamente tudo o que não lhe dê sustentação.

O livro mais conhecido de Hobsbawm, A era dos extremos, com suas 627 páginas, alega ser uma síntese do século XX. É um ótimo exemplo de história escrita como um juízo de valores a priori, uma completa obra‑prima de distorção e omissão. Seriam precisas outras 627 páginas para apontar e esclarecer todas as suas duvidosas generalizações ex cathedra. Detenhamo‑nos pelo menos em alguns detalhes. Não há qualquer menção ao rearmamento secreto da Alemanha promovido pelos soviéticos durante o entreguerras. O argumento bastante convincente de que Hitler aprendera de Lenin e Stalin a estratégia da violência é descartado de antemão. Nenhuma menção a Beria e à polícia secreta NKVD, nenhuma análise do trabalho escravo nem da grande fome projetada na Ucrânia para roubar e matar camponeses infelizes. A única vítima do gulag a ser nomeada é Nikolai Vavilov. E quanto a Mandelstam, Babel, ou os milhões de vítimas que não merecem ser esquecidas no anonimato? Com um desdém particularmente hediondo, Hobsbawm diz que mesmo o anticomunista Soljenitsin teve a carreira de escritor “firmada pelo sistema”. As referências ao Terror de Stalin são esparsas e fortuitas. Da Pequena historia do Partido Comunista Sovietico, de Stalin, Hobsbawm diz, como se fosse incapaz de ver o seu erro de lógica: “não obstante as suas mentiras e as suas limitações intelectuais, é um texto pedagógico escrito com maestria”.

Muitos abandonaram o Partido diante do pacto firmado entre Hitler e Stalin em agosto de 1939. Hobsbawm não. Para ele, o Pacto marcou “a recusa da URSS em continuar opondo‑se a Hitler”. O Pacto trouxe consigo imensos ganhos territoriais, mas Hobsbawm acha lógico afirmar que por esse meio Stalin esperava ficar fora da guerra. Na verdade, em 1939 veio a invasão dos países bálticos, e quase metade da sua população foi deportada. Esse processo genocida é desprezado por Hobsbawm com o costumeiro desdém marxista por pequenas nações. Em uma imensa sequência de eufemismos, esses países foram simplesmente “adquiridos” ou “transferidos” por Stalin. Da mesma forma, em 1989 eles “viriam a se separar”. Aquilo que para todas as repúblicas aprisionadas pela União Soviética representou uma libertação, para Hobsbawm foi a criação de um “vácuo internacional entre Trieste e Vladvostok”.

O pacto entre Hitler e Stalin permitiu ainda que os soviéticos invadissem a Finlândia. O Partido teve que elaborar uma justificativa especialmente convoluta e mendaz para acobertar esse ato unilateral de agressão contra um país pequeno. Em dezembro de 1939, Hobsbawm e Raymond Williams, outro comunista, cumpriram com seu dever e escreveram um panfleto com a alegação de que Stalin enviara o Exército Vermelho ao país para proteger a Rússia de uma invasão imperial britânica. Ambos os autores viviam na Inglaterra do tempo de guerra e não podiam ignorar que seu país enfrentava uma invasão alemã que podia muito bem acontecer, de modo que os ingleses não estavam em condições de invadir a Rússia. Hobsbawm menciona esse episódio vexaminoso apenas na sua autobiografia e bem de passagem.

Segundo Hobsbawm, Stalin modernizou e industrializou a União Soviética; se assim não fosse, Hitler teria vencido a guerra. Não há menções à contribuição americana, sequer dos equipamentos que forneceu ao Exército Vermelho. Comparado aos salvadores da humanidade Lenin e Stalin, Hitler parece débil. Nada de menções a Treblinka ou Auschwitz. Esses crimes parecem quase secundários. O leitor deve ser poupado de qualquer coisa que possa conduzi‑lo à equação bastante aceita dos sistemas totalitários semelhantes.

Tampouco há menções à supressão do Partido Comunista polonês no final da década de 1930, ou ao massacre da elite polonesa em Katyn. A destruição de Varsóvia pelos alemães em 1944 – a que o Exército Vermelho assistiu, imóvel – não foi senão “o castigo pelos levantes urbanos prematuros”. Do leste e do centro da Europa ocupada, no qual o Exército Vermelho criaria o bloco soviético, Hobsbawm, em mais um incrível eufemismo, diz‑nos se tratavam de “países que romperam com o capitalismo na segunda grande onda mundial de revolução social”. Ao fim da guerra, “a URSS não era expansionista – e muito menos agressiva – nem esperava haver qualquer outra expansão da frente comunista”. Não há qualquer referência à prisão, deportação e assassinatos frequentes dos democratas e anticomunistas, ou à supressão dos partidos políticos. Tampouco se fala que os comunistas da Alemanha Oriental livravam‑se dos opositores pondo‑os nos campos de concentração deixados por seus precursores nazistas. A vitória da União Soviética foi “o triunfo do regime ali instalado pela Revolução de Outubro”. Hobsbawm afirma muitas vezes que a União Soviética trouxe estabilidade a diversos países, quando na verdade os estava invadindo e subvertendo. A globalização é apresentada como o ápice do mal capitalista e causa da falha do comunismo. E o mundo é quem sai perdendo, uma vez que há um “espaço moral vazio” no centro do liberalismo capitalista. A China mantém a chama acesa. Sob Mao Tse‑Tung, na opinião de Hobsbawm, “o povo chinês ia bem”, havia mais matrículas na escola primária e melhores roupas. A desumanidade nunca é desumana quando serve ao comunismo, mesmo que a realidade o estivesse destruindo.

As denúncias de Khruchev contra Stalin no XX Congresso do Partido em 1956 enchem Hobsbawm de horror. Khruchev maculou propositadamente a Revolução de Outubro. Disso podemos depreender que, se ele tivesse ficado quieto, os crimes de Stalin poderiam se repetir indefinidamente. Consequência imediata das declarações de Khruchev foi o levante húngaro daquele mesmo ano. Com sua habitual mescla de duplicidade e força bruta, os soviéticos debelaram o que fingiam ser uma contrarrevolução. Depois de garantir salvo‑conduto aos líderes da revolta, prenderam‑nos, julgaram‑nos num tribunal secreto e os enforcaram. Quase tantas pessoas abandonaram o Partido como quando da invasão da Finlândia pelo Exército Vermelho – inclusive amigos e colegas de Hobsbawm. Hobsbawm por sua vez escreveu uma defesa da carnificina soviética no jornal comunista Daily Worker: “Embora aprovemos, com o coração pesado, o que agora ocorre na Hungria, também devemos dizer abertamente que a URSS deveria retirar as suas tropas do país assim que possível”.

O caso de Eric Hobsbawm nos permite vislumbrar muita coisa sobre o desejo que os seres humanos têm de ser enganados. Nos vinte anos desde que a União Soviética se deparou com a realidade e desapareceu, ele tem implicado com os Estados Unidos, com as políticas e os aliados americanos, prevendo um desastre que só pode ser evitado por uma renascença marxista. Parece não haver limites para a capacidade da imaginação de crer no que se quer e racionalizar o irracional. A sua óbvia fé em mentiras e ideias falsas aproxima‑o mais das superstições dos curandeiros do que dos métodos de um historiador profissional. A condescendência extravagante que recebe da parte de pessoas que deveriam estudar mais é uma prova inequívoca do declínio intelectual e moral dos tempos modernos.

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David Pryce‑Jones é autor e comentarista conservador inglês. Seu livro mais recente é Treason of the Heart: from Thomas Paine to Kim Philby (2011).

Traduzido por Cristian Clemente.

 

63 comentários em “Hobsbawm e o preço da utopia

  1. Um texto realmente muito duro. Gostaria de ouvir a versão de Hobsbawm sobre a tal conversa do bombardeio nuclear a Israel — pena que jamais a teremos. Mas, seja como for, o autor não tem nenhuma boa vontade — sua alegação de que “Um historiador marxista, porém, não pode seguir tais princípios; deve propor perguntas a respostas já dadas”, é igualmente aplicável a muitos historiadores filiados a escolas teóricas ou ideológicas — e talvez Price-Jones, cujas preferências podem ser deduzidas pelas cobranças que faz a Hobsbawm, todas focadas na URSS. Terá o falecido Hobsbawm errado só nisso? Sim, ele não deu todos os detalhes das crueldades de Stalin e se mostra simpático em várias passagens, mas não é, como quem tenha lido o livro pode averiguar, um apologista descarado como Price-Jones sugere. Se não escreve sobre Stalin usando a linguagem de um Paul Johnson, como leitor, qualquer um poderia fazer a mesma cobrança a outros historiadores que também não são suficientemente minuciosos e enfáticos com o nosso monstro favorito — e a história contemporânea está cheia deles.

    No mais, finalmente, uma última ressalva: “A Era dos Extremos” é um longo ensaio de um autor que, já na introdução, diz que está fora do seu campo. A especialidade de Hobsbawm era o século XIX. Isso não justifica certos dos seus problemas, mas nem por isso a obra deixa de ser de grande interesse. Ela tem seus vieses, mas estes o autor, justiça seja feita, nunca escondeu.

    No mais, adoraria ver Price-Jones escrevendo sobre a obra de historiadores conservadores com a mesma dureza. Mas suspeito que isso não acontecerá jamais.

    Um abraço,
    R.

  2. Tendo lido Hobsbawm quando estava no ensino médio (de modo que agora não tenho uma impressão qualificada dele), Rodrigo, concordo com você. Isso que você apontou — “adoraria ver Price-Jones escrevendo sobre a obra de historiadores conservadores com a mesma dureza” — é um ponto extremamente importante. Precisamos muito de autores que sejam implacáveis com as próprias simpatias. Paul Johnson exercitou isso com certo sucesso ao escrever sobre a história do cristianismo, mas nem sempre conseguiu se segurar. Quando escreve do ponto de vista histórico, para citar outro exemplo (dessa vez de fracasso total), Russell Kirk consegue ser ainda mais parcial que Hobsbawm.

  3. Pois é, Julio. A crítica que se costuma fazer a Hobsbawm é muito mais motivada pela questão moral do que propriamente acadêmica. Não que isso não tenha seu mérito — podemos discutir, sim, por exemplo, a afirmação de que, se o socialismo tivesse cumprido suas promessas, ele teria valido a pena mesmo com as mortes de Stálin. (Uma analogia que me ocorre: as mortes na Segunda Guerra valeram a pena para evitar a hegemonia nipo-alemã?) Isso é válido. O problema é que muitas vezes eu tenho a impressão de que ela é motivada mais por sectarismo ideológico que por uma indignação realmente justa e imparcial. Paul Johnson, por exemplo, a quem li faz uns bons anos, era claramente a favor da tese de que a Guerra do Vietnã era justa e foi perdida por “fraqueza” do governo dos EUA. Ora, a guerra matou, segundo algumas fontes, 4 milhões de pessoas (o número oficial na época era de 1,5 milhão). Teria valido a pena tudo isso só para não deixar o país se unificar sob o comunismo? Cadê a autocrítica conservadora diante desse tipo de coisa? E, no fim, por ironia, foi o Vietnã comunista que deteu Pol Pot…

    Esse é só um exemplo. Um dos legados mais desagradáveis da Guerra Fria é quando usam o horror de um sistema adversário — que deve ser lembrado, sim — para encobrir as próprias chagas, e isso ainda repercute. Talvez ainda precisemos esperar um pouco para ver uma postura crítica mais consistente nesse aspecto por parte dos pensadores mais destacados do conservadorismo.

  4. Excelente, Rodrigo. Eu me pergunto porque essa honestidade é tão rara. No Brasil tudo isso foi prejudicado porque, há pouco tempo, não tínhamos um conservadorismo mais ou menos embasado teoricamente. Hoje temos um misto de analfabetismo com toques aleatórios de erudição: o jovem suburbano que lê Eric Voegelin e vai à sala de aula tentar convencer professores e colegas a respeito da baixeza moral do comunismo e de todas as teorias políticas rivais; o jovem de classe C que vira ‘aristocrata’ ou tradicionalista, longe de qualquer contexto; a dona de casa que lê o blog do Reinaldo Azevedo e parece até mais convicta que ele; e mesmo o intelectual bem formado, inteligente, mas tão imparcial e capaz de ver os erros ‘do lado de cá do balcão’ quanto uma mãe diante de um filho injustiçado. Bem, divago. Isso é para mostrar o contraste entre o debate aqui e nos EUA, por exemplo, onde já existe, ab initio, uma tradição conservadora ilustrada. Mas mesmo lá não costuma prevalecer esse senso crítico a que você se referiu, que deveria pairar sobre as simpatias pessoais.

  5. Quantos esquerdistas são “implacáveis com as próprias simpatias”? E o “suburbano que lê Eric Voegelin” (você tem algo contra nós, que não moramos em áreas nobres, sr. Lemos) foi grotesco. Ofensivo, inclusive.

  6. É justamente a reclamação nossa: nenhum dos lados é implacável com as próprias simpatias. Os esquerdistas lançaram a moda e agora a direita, especialmente no Brasil, a adotou e aperfeiçoou. “Sr. Lemos” foi ainda mais ofensivo, Luiz.

  7. Bom, já estou me acostumando, dificilmente vem algo verdadeiramente interessante destes blog’s. O pessoal esta se sofisticando nos: apelo a piedade, petição de princípio, ataque ao homem…

  8. O que falta é um historiador conservador recebendo todos os prêmios, condecorações, fama, prestígio, bajulações etc., que o Hosbawm recebeu. Aí sim, só depois disso a cobrança das críticas (supostamente “duras” – injustas?; acho que não), como as feitas por Price-Jones, seria justa. Por enquanto o quadro pró-marxista está muito desigual para cobrar uma igualdade nas críticas. E em termos de importância e amplitude, há obras de historiadores conservadores comparáveis à do Hobsbawm, como a de Paul Johnson.
    Além disso, nem todas as parcialidades citadas somadas, atribuídas aos conservadores, se equiparam sob qualquer aspecto (principalmente moral), nem de longe, com a defesa do stalinismo e do maoísmo, que o Hobsbawm sistematicamente fazia.

  9. Independente dos autores e obras citados no post, interpreto “prêmios, condecorações, fama, prestígio, bajulações” como sinais de um juízo crítico positivo que se fez sobre um autor ou obra. Daí, me parece um disparate sugerir eles sejam necessários, antes de se emitir uma crítica negativa, mesmo dura, a um autor, qualquer que seja.

    Penso que é possível, sim, cobrar igualdade nas críticas de um livro ou autor, seja milionário ou lascado, famoso ou obscuro, pois os prêmios e bajulações são fatores que nada acrescentam à sua compreensão.

  10. Esse discurso de “vira-latas” de alguns conservadores — “Oh, o marxista Hobsbawm recebe muito mais prêmios que o conservador X” — é bobo. Hobsbawm não ficou famoso por ser marxista, mas por ser competente naquilo que se propôs, mesmo que não se goste das bases filosóficas que ele adota, e por escrever obras de síntese eruditas e acessíveis. Dizer que prêmios são pré-requisito para uma crítica vinda do próprio campo é uma forma estranha de pedir privilégios, além de sugerir insegurança.

    No mais, mesmo na Era dos Extremos, Hobsbawm não defende o stalinismo (ele não era stalinista desde os anos 50) ou o maoísmo. Vê-se que quem diz isso não o leu nem conhece sua biografia. Ele pode até “pegar leve” com esses temas em comparação à expectativa dos leitores — que provavelmente esperam uma indignação ritual toda vez que se fala desses assuntos, o que é legítimo –, mas isso não equivale a uma apologia. Mesmo a tal declaração de as mortes sob Stálin se justificarem *se* a utopia socialista tivesse se concretizado, se formos pensar, equivale a um utilitarismo, não a uma defesa do stalinismo. Não é nada diferente, em essência, do raciocínio usado pelos Aliados para justificar Hiroshima e Nagasaki: uma tragédia valendo a pena para evitar outra ainda maior.

    Portanto, fato é que muitos críticos não atacam Hobsbawm por discordarem dessas premissas morais. Atacam-no por ser marxista/comunista. Se a mesma declaração fosse feita sobre o Vietnã, ou o Iraque, ou a escravidão, a colonização da África, ou qualquer outra coisa que não implicasse “defesa do comunismo malvado”, muitos diriam coisas parecidas. O que está em jogo para muitos, infelizmente, não é a moralidade, é o sectarismo político.

  11. RCaruso,

    “E em termos de importância e amplitude, há obras de historiadores conservadores comparáveis à do Hobsbawm, como a de Paul Johnson.”

    Em amplitude, sim, mas em importância? Até onde sei, na academia Johnson é simplesmente ignorado. Você já viu “Modern Times” ser citado por historiadores relevantes?

  12. Estudei filosofia na UFSC, com gente como Newton da Costa e Decio Krause. Gosto de Lógica e sou conservador, respeitando o outro lado. Mas, aqui na UFSC, entre os estudantes de filosofia em geral (e os estudantes de História, também) não há um que não conheça SOMENTE Hobsbawn. Se você fala em Toynbee, Huizinga, Will Durant, você sempre ouve um “QUEM?”. Le Goff? Um “chato anti-marxista”. É triste, mas é verdade. Penso que alguns aqui não tem a infelicidade de conviver com essa esquerdada tosca. Por isso, já não estão mais sentindo o perigo. Cuidado, rapazes.
    Foi só um desabafo. Obrigado e abraço a todos.

  13. Luiz,

    Talvez isso se dê, em parte, pelo fato de alguns desses autores terem teses consideradas ultrapassadas (Toynbee e, creio que em parte, Huizinga também) ou terem escrito obras mais narrativas para o grande público não-acadêmico (Durant, um dos meus ídolos). Mas não só eles sofrem disso. Lembro-me, por exemplo, de não ter lido Caio Prado Jr. quando fiz História, o que seria considerado uma lacuna terrível algum tempo atrás.

    Sem desdenhar a responsabilidade dos docentes por suas indicações bibliográficas, acho que há uma questão a mais: comodismo. Muita gente, mesmo em Humanas, não gosta de ler autores fora das leituras obrigatórias de seus cursos, a não ser durante a monografia. Não raro, a monoglossia e a falta de dinheiro também limitam o universo bibliográfico.

    Dei aula no Instituto de História da UFRJ por dois anos (2010-2011) e, curiosamente, vi muito poucos marxistas por lá, pelo menos entre os alunos. Acho que esse ranço de uma esquerda burra está decrescendo.

  14. O duro é ter de ler, pouco acima, que Jacques le Goff, membro do Partido Comunista Francês, é anti-marxista. Quando o mesmo começa *Os Intelectuais na Idade Média* glosando Gramsci.

  15. Hobsbawm? Quase dez dias se passaram e nenhuma palavra nesta revista sobre o Eugene Genovese.

    “Talvez isso se dê, em parte, pelo fato de alguns desses autores terem teses consideradas ultrapassadas (Toynbee e, creio que em parte, Huizinga também).”

    Cômico ler isto num post que trata de um marxista.

  16. Reconheço que as críticas ao meu comentário foram merecidas. Não quis dizer que prêmios são pré-requisito pra nada, nem pedi privilégios. O que me motivou foi a impressão, passada pelos posts iniciais, de que o Hobsbawn estava sendo injustiçado pela crítica do Price-Jones. Mas o fato é que aquele é o historiador mais prestigiado do mundo, mesmo sendo tão enviesado ideologicamente. Achei mais do que natural que fosse alvo preferencial de críticas no mínimo “duras”. Exagerando para ficar mais claro, acho muito natural ter maiores exigências e ser mais crítico com eruditos renomados do que com recém-doutores. A partir daí dei um “salto” de reivindicação, mas com sinal invertido: se “exigiam” igualdade nas críticas, “exigi” igualdade nos elogios. O meu post foi uma manobra retórica, muito mais para provocar. E também para questionar: será que os supostos méritos do Hobsbwam não se devem muito mais à sua filiação ideológica?
    Tendo a pensar que sim.

    O Rodrigo diz que os alunos (citados pelo Luiz) só conhecem Hobsbawm em boa parte porque só lêem o que os professores recomendam. Permanece a pergunta: por que é só ele que os professores recomendam?
    Suponho que o Rodrigo diria: não é “por ser marxista, mas por ser competente”. “Paul Johnson não tem importância”, “Toynbee e Huizinga estão ultrapassados”. Christopher Dawson deve estar também (mais uma vez supondo)… E o Le Goff, presta?
    Faço a pergunta: existe algum historiador conservador que chegue pelo menos aos pés do Hobsbawm, que tenha importância e não esteja ultrapassado?

  17. Caro R Caruso:

    Vc pergunta:

    Existe algum historiador conservador que chegue pelo menos aos pés do Hobsbawm, que tenha importância e não esteja ultrapassado?

    Eis a resposta:

    Há pelo menos três:

    Modris Ekstein (Rites of spring)

    Michael Burleigh (The Third Reich, Earthly Powers, Sacred Causes, Blood and Rage e Moral Combat)

    Richard Landes (Heaven on Earth).

    Todos são acadêmicos respeitadíssimos em seus meios, e pelo menos o Burleigh (junto com o Andrew Roberts, autor de Masters and Commanders e The Storm of War, este um historiador mais jovem) são assumidos discípulos de Paul Johnson.

    E afirmar que Toynbee e Huizinga estão ultrapassados – bem, o que dizer disso? Que não sabe do que está falando?

  18. Olá, RCaruso.

    “O meu post foi uma manobra retórica, muito mais para provocar. E também para questionar: será que os supostos méritos do Hobsbwam não se devem muito mais à sua filiação ideológica?”

    O marxismo está em baixa faz já um tempo razoável. Como você explica esse sucesso de Hobsbawm entre especialistas e leigos, que só cresceu nesse tempo, sem considerar qualquer mérito por parte dele?

    ““Paul Johnson não tem importância”, “Toynbee e Huizinga estão ultrapassados”. Christopher Dawson deve estar também (mais uma vez supondo)… E o Le Goff, presta?”

    Sinto muito, mas ao falar desses autores não estou dando minha opinião pessoal, só constatando fatos. Por exemplo, gosto de Johnson, apesar dos vieses e partes questionáveis de “Tempos Modernos”, e adorei sua “História do Cristianismo”, mas ele realmente não é levado em conta na academia. É um divulgador. Já até prescrevi capítulos dele para meus alunos, como contraponto a Hobsbawm e pela riqueza factual, mas nunca soube de mais ninguém fazendo isso. Mesma coisa com Durant, meu favorito: uma obra antiga, brilhantemente redigida e grande riqueza factual, que ninguém mais lê nas universidades.

    Sobe Huizinga e Toynbee, mesma coisa. Não fui quem os considerou ultrapassados, só constato o fato. Do primeiro, soube pelo meu professor de medieval, que nem por isso deixou de recomendar a obra; quanto ao segundo, bem, a grande tese dele, à parte um Samuel Huntington, sequer é mencionada hoje em dia. (Obras históricas também envelhecem e não custa lembrar que eles escreveram no começo do século XX.)

    Dawson, segundo um amigo meu conservador que está trabalhando com traduções comentadas dele, ainda vale muito a pena, embora exija algumas atualizações pontuais. Mas eu mesmo não conheço sua obra.

    Finalmente, Le Goff. As “história das mentalidades” da geração dele dos Annales foi trucidada nas últimas décadas como um conceito vago demais, mas suas obras ainda são muito elogiadas e utilizadas. Sem falar que são agradáveis de ler, o que ajuda a fidelizar os leitores. E vc dirá: “Mas isso não é porque ele tem uma base marxista?” E eu direi, no começo poderia ser *também* isso (ele começou a ascender aí pelos anos 60/70, e na França), e o grupo a que ele se filia, os Annales, tinha grande poder de fogo editorial e, por ser francês, influência no Brasil. Então, dá para fazer uma “sociologia dos historiadores franceses publicados no Brasil”. Mas se vc vir aí *mero* jogo de poder, sem considerar também os méritos do autor e sua resistência a críticas, pode acabar esbarrando em teorias da conspiração.

    Quanto a conservadores *identificados como tal* (qual a ideologia de Peter Gay e Joachim Fest? Não sei.) que tenham certo peso acadêmico, não me ocorre nenhum com a fama de Hobsbawm. Mas John Lukacs não é nenhum anônimo.

  19. “E afirmar que Toynbee e Huizinga estão ultrapassados – bem, o que dizer disso? Que não sabe do que está falando?”

    Eu disse que são considerados como tal (mais o primeiro que o segundo), e dei a fonte no caso de um deles. Eu gosto de Gibbon, nem por isso vou dizer que ele está atualizado.

    Sobre Toynbee, curiosamente, acabo de constatar que até a Wikipedia (em inglês) reconhece que ele é pouco citado. Viu como não sou só eu?

    Sobre a pergunta do RCaruso a respeito de historiadores conservadores, eu imaginei que se tratasse daqueles conhecidos por aqui e com alguma chance de uso em cursos de graduação. Então, vale mais um que acho que se encaixa: John Keegan.

  20. Rodrigo, talvez o motivo de historiadores conservadores não terem peso acadêmico é que o serem conservadores não contribui para a sua fama e, além disso, a ideologia atrapalha sempre, como atrapalhou Hobsbawm.

    Sobre a questão ideológica — o historiador tem de estar pronto a retratar o que aconteceu, mesmo que isso implique provar, acidentalmente, a tese de algum inimigo ideológico. Vamos pensar nos historiadores de Roma (envolvidos no meu doutorado). Mommsen era um liberal, com muitas inclinações políticas, e Robert von Pöhlmann era um comunista de carteirinha. No tema do surgimento da propriedade privada entre os romanos, Pöhlmann dizia, por pura convicção histórica, que ela surgiu bem cedo; Mommsen sustentava, com sua monstruosa erudição, que o coletivismo imperava nas origens (séc. VIII aC). Pöhlmann diz em certa passagem (infelizmente o livro ficou na biblioteca do instituto em que fiquei em Munique, na LMU, e não é fácil encontrar por aqui) que a tese de Mommsen seria muito útil para aqueles que, como ele, queriam provar que o comunismo era o estado original dos povos, mas que ele preferia a verdade à projeção ideológica sobre a realidade histórica. Ambos, assim como Niebuhr, estão ultrapassados, mas eram firmes defensores de uma visão histórica cortante, implacável com as próprias simpatias. É impossível fazer história sendo conservador ou marxista full time (eu mesmo, que prego isso, me peguei projetando meu conservadorismo de adolescente sobre minha pesquisa; como não sou competente como um Pöhlmann, para mim é mais difícil); é preciso trabalhar com os fatos, mesmo que isso seja difícil. Se o ideal é abandonado sob a alegação de que é impossível ser imparcial, pronto, aí é que fica impossível investigar os documentos. Quem diz que o conservadorismo não é ideologia, mas ‘realismo’, está mentindo para si mesmo. Em teoria isso seria possível, mas na prática todo conservador que assim se denomina age como o esquerdista; e é muito difícil dominar a hybris na hora de ver e escrever sobre as coisas quando o que nos inspira é uma visão de mundo doutrinal ou excessivamente assertiva.

    Quanto a serem ultrapassados Toynbee e outros, isso é muito óbvio para qualquer um preocupado com história feita com documentos (ou seja, história de verdade, e não doutrinação marxista ou conservadora). Não significa que não devemos mais ler esses autores — como o Mommsen citado. Mas precisam de uma rigorosa e extensa atualização: a cada dia surgem novos documentos, análises, monografias e artigos, e é preciso sopesar tudo isso. Toynbee não está mais vivo para fazê-lo. A história é implacável com os autores antigos. A primeira coisa que se aprende com história de Roma antiga, por exemplo, é deixar de lado Mommsen e, mais ainda, Gibbon — esses mestres quase insuperáveis no estilo e na erudição passada –, e ler reports de expedições arqueológicas de 1900 a 2012, os tratados de Gjerstad, Momigliano, Ampolo e os ingleses mais recentes, além de inscrições e milhares de artigos sobre arqueologia, filologia e história publicados nos últimos 60 anos.

    O mesmo acontece com outros períodos da história: se você diz que sua tese sobre Renascença italiana se apoia essencialmente em J. Burckhardt, não reclame se os especialistas vierem a se afastar de você. História é, para começo de conversa, análise de documentos. Hoje temos muito mais do que Burckhardt tinha à sua disposição nos anos 50 do século XIX; por mais que fosse um gênio — e continua sendo um clássico –, não podia fazer milagres. O mesmo ocorrerá com Toynbee: um historiador sério sabe que é um clássico, mas que não se faz história se apoiando nele.

    Experimente ler um medievalista que escreveu no século XIX… Todos, absolutamente todos os medievalistas ‘clássicos’, pré-Régine Pernoud e outros, estão ultrapassados e a sua leitura é até prejudicial, a não ser para um historiador experiente.

  21. Julio,

    Perdoe-me minha ignorância sobre a ‘ciência História’, mas, se não estou errado, vejo a ideologia marxista invariavelmente escolhendo e interpretando os fatos de maneira a “caber em sua forma” pré-estabelecida de explicação do mundo (luta de classes, modo de produção, etc).

    Se a ideologia conservadora faz o mesmo, quais são as principais características dessa sua “forma pré-estabelecida”‘? A pergunta não é retórica. Eu não sei a resposta.

    E, Rodrigo, não entendi direito o que você falou com a comparação da visão conservadora de Hiroshima e Nagasaki com a visão marxista do “genocídio” stalinista. Os dois fatos ou as duas interpretações são igualmente condenáveis? É isso?

  22. Muito obrigado. Ao Martim, e principalmente pelas últimas explicações do Rodrigo. Os dois posts superaram em muito o que eu poderia esperar do meu 😉

    Sobre o Toynbee, deve ter parecido que eu estava indignado por ele ser considerado “ultrapassado”. Mas não é verdade. Não tenho como julgar. Nunca li nada dele, apenas comentários sobre. Entretanto, penso que o fato de estar ultrapassado pode revelar mais sobre quem o considera assim do que sobre o valor das suas teses. Teses, em todas as áreas do conhecimento, frequentemente ficam ultrapassadas não por terem sido refutadas, mas por terem saído de moda. E a saída de moda às vezes é o mais difícil de explicar.
    Faço essas considerações porque li em algum lugar que nos anos 50 ou 60 o Toynbee afirmara que a URSS não chegaria ao século XXI. Vale lembrar que ela era considerada o modelo e o futuro para humanidade por grande parte da intelectualidade mundial. Previsão acertada. Seguindo o raciocínio, também previu que o principal conflito no mundo do século XXI seria, não entre capitalismo e comunismo, mas entre cristianismo e islamismo. Parece que vai acertar também.
    Ora, o que evidencia o valor de qualquer conhecimento ou teoria? Fazer previsões acertadas. Se as citações do Toynbee forem verdadeiras (forem dele e forem as que estão acima), sua teoria, ou matriz interpretativa, tem valor. Notem que afirmo que tem valor, não que o autor não tenha cometido erros.
    Nem Marx, nem os marxistas conseguiram acertar previsões, o que mostra o valor da teoria marxista.

    P. S. – Não sou formado em História, nem em nenhuma ciência humana. Sou apenas muito interessado.

  23. Wagner, é difícil dizer quais seriam as principais características da “forma pré-estabelecida” à qual os conservadores tentam encaixar os fatos.

    Parece-me indisputável que o fazem, e em parte — trivialmente — porque todo mundo o faz. Os marxistas têm um agravante: a ideologia é francamente assumida, e às vezes até se declara que, se a realidade não corresponde à ideia, pior para a realidade, etc. Em parte, essa declaração faz sentido. Se ninguém mais quase se casa ou é fiel no casamento, isso não é desculpa para abraçar a realidade e dar adeus ao casamento. Mas isso vale mais em moral do que em utopias; com o segundo agravante de que utopias, por definição, são irrealizáveis, e padrões morais, desde que em acordo com as limitações do homem, são plenamente factíveis.

    Deixando de lado a disputa sobre quem é e quem não é conservador, eu diria que costumam cair muito menos no erro de projetar doutrinas fáticas sobre a realidade do que os marxistas. Especialmente aqueles que, de fato, são realistas, “matter-of-fact people”. O problema é que, ao levarem a bandeira adiante, costumam automaticamente desprezar dados que desabonam teses conservadoras — por exemplo, de que a experiência do passado é sempre útil. Muitos chegam à insanidade de abominar o progresso tecnológico, como talvez até Russell Kirk em “The Conservative Mind” — tacitamente, louva os homens do campo sobre os quais escreve e desconfia até da luz elétrica. Quando a ciência ajuda, fazem uso de pesquisas recentemente divulgadas; quando prejudica, desabonam os resultados ou dizem desconfiar de pesquisas científicas. Não era melhor jogar fora a bandeira e julgar cada fato ou grupo de dados com o mínimo de respeito pelas próprias simpatias possível? É difícil fazer isso, e raramente o colocamos em prática. Mas em vez de aconselhar os seus leitores a serem implacáveis, reforçam essas tendências ironizando tudo aquilo com o qual estão em desacordo ex cathedra. Se um marxista acaba por dizer a verdade, provavelmente está mentindo, por ser marxista. Isso é tão frequente quanto o nascer e o pôr-se do Sol.

    O único conselho que me parece razoável é abandonar as escolas e as bandeiras. Se alguém disse algo que nos parece razoável, ou se um fato foi provado ou estabelecido até prova em contrário, let us stick to it. Se os conservadores fizessem isso, eu não estaria reclamando. Mas fazem o contrário quase que por definição. Para eles, o mundo moderno está errado; provindo de uma árvore envenenada, todos os frutos são envenenados. E isso é clássico do pensamento gnóstico, que imanentiza o transcendente. Por isso são mais católicos que o Papa, mais protestantes que Calvino, mais tradicionalistas que a própria tradição ou, então, mais realistas e anti-ideológicos que o próprio Deus (ouviu essa, Julio Lemos?). Períodos históricos e lugares concretos (como Oxford ou Washington) viram fetiches; textos e autores de má qualidade são lidos e aprovados, ou pelo menos tolerados, porque são “de Deus”. Tudo o que um conservador escreveu é visto com compaixão. Um deslize do companheiro de esquerda é motivo de fuzilamento. Por isso, entre esquerdistas, procuro mostrar-lhes sua parcialidade, e sou acusado de reacionário; entre conservadores, sou acusado de ser esquerdista. Isso é novidade? Não! Qualquer mané pode fazer isso. Pensar por conta própria — o que não significa pensar que você é o centro do universo, e que pode criticar com base qualquer coisa — não é assim tão difícil quando se detecta o problema na raiz. O primeiro passo é queimar bandeiras e demolir escolas; a começar pelas que mais se tem simpatia. É manifestamente “conservador”? Então desconfio — porque provavelmente, ou até prova em contrário, foi escrito ex schola e não em nome da razoabilidade. Lerei esse autor porque ele foi citado por um conservador? Por que lê-lo é sentir-me parte da aura conservadora? Péssimos motivos; o fetichismo é sempre um péssimo motivo. Há milhares de autores que colocaram esse senso crítico em prática. Examinam um assunto e esquecem as filiações. Será obrigado a dar razão a ateus, sendo ele mesmo cristão, e vice-versa, e isso vai doer; mas ao menos não estará se submetendo à mediocridade dos conservadores, esquerdistas, liberais, libertários, etc.

  24. Resumindo o que o Julio disse: o sujeito não está errado só porque é marxista, nem certo porque é conservador. Sectarismo e tendenciosidades são forças que acompanham a humanidade desde sempre, e acometem qualquer corrente ou escola. Usando uma imagem cristã, o tribalismo intelectual é uma “porta larga” que facilmente leva ao ódio e à falta de autocrítica; manter uma postura mais desapaixonada e “fria” é difícil, mas necessário. Daí a importância, entre outras coisas, da revisão dos pares e de uma certa abertura mental que não se vê em ideólogos e gente ansiosa por um guia infalível.

  25. Wagner, pedindo permissão para me intrometer na conversa, eu diria que há alguns tipos de pensamento, que podem vir juntos ou não, que recebem o nome de “conservadorismo” e que cometem alguns lugares-comuns que me são particularmente irritantes (talvez por eu mesmo tê-los cometido no passado? Somos sempre mais intolerantes com aquilo que abandonamos…).

    Um deles, e que tenho visto cada vez mais, é um certo tipo muito preguiçoso de filosofia da história, ou da história das ideias: uma narrativa de como, de um passado dourado, o pensamento decaiu na modernidade até o nadir dos dias atuais, em que se nada no mais negro mar de niilismo e relativismo, e o povo não tem mais rumo na vida. No passado remoto, uma linha gloriosa e coesa, embora com variabilidades internas, levava de Platão até S. Tomás de Aquino. Depois dele, contudo, veio o pecado original, com vários possíveis culpados: Duns Scot, Ockham, Francis Bacon, Descartes. Qual deles é o pai verdadeiro, biológico, da Modernidade, fica a critério do freguês, mas o fato é que (segundo a leitura conservadora preguiçosa padrão) desde algum deles o homem perdeu sua conexão com o Uno e agora se refastela no múltiplo, os transcendentais do ser brigaram entre si, o homem passou a dominar tiranicamente a natureza com a tecnologia e a matemática e não mais a conviver de forma harmônica com ela, a cultura foi dessacralizada, a máquina substituiu o espírito, as mulheres enlouqueceram e não mais desejam seu santo papel de mães castas, etc Sem falar, é claro, da mais evidente e óbvia consequência de toda a filosofia moderna: o nazismo e o comunismo. Enfim, você entendeu o espírito da coisa: vivemos em tempos tenebrosos, o fundo do poço da História, e nossa única chance de sair dele é resgatar a visão integral e espiritual de S. Tomás / Platão / Shakespeare / S. Agostinho (são todos a mesma coisa).

  26. Julio e Joel,

    Não tenho como discordar de nada do que vocês escreveram. Convivo, virtualmente, com algumas pessoas que julgam (ao menos assim agem na prática) como se a filosofia tivesse acabado em Tomás de Aquino.

    Não sei se ajuda em algo, mas tendo a achar que o liberal (no sentido de oposto a conservador) é aquele que trabalha, como pano de fundo, com a ideia de que o homem é um constructo social (e nesse sentido até mesmo Ortega y Gasset seria um deles) e, portanto, o pai desse liberalismo seria o Rousseau e os filósofos que o Joel citou seus avós.

    Já os conservadores teriam como pano de fundo a existência de um “Areté” (esse artigo muito me impressionou: http://www.hottopos.com/videtur16/gilda.htm) para o Homem e, normalmente, o buscam nas tradições.

  27. Ô, seu Joel: tá certo, o perenialista é o pagodeiro da filosofia e tu é o sutilzão – mas tu esqueceu o Kurt Godel: ele também é a “mesma coisa”.

  28. Haha, ô esquerda feliz, criticar algo não é a mesma coisa que se auto-exaltar. Ver erros no que os outros já fizeram ou disseram é muito mais fácil do que construir ou propor algo sem erros!

    Pior que o verdadeiro perenialista adotaria ainda outra leitura da história: de fato a filosofia morreu na Modernidade, mas o pecado original estava lá em Aristóteles…

    Enfim, toda leitura da história do pensamento como um processo é problemática, e por mais que seja impossível abster-se completamente de interpretações desse tipo, elas deveriam sempre ficar em segundo plano: se não acontece isso mesmo: Platão, Aristóteles, Husserl, Dostoievski, Godel: tudo a mesma coisa!

  29. Só um adendo, Joel e Esquerda Feliz (rs): como sabem, Gödel era um matemático. Os resultados que ele provou estão provados para sempre, enquanto teses filosóficas sempre serão disputáveis (ainda bem!). Só não misturar as coisas.

  30. O debate a essa altura já esfriou, mas eu não resisto em deixar isto aqui:

    “Eric Hobsbawm, who died Monday at 95, was the last of the sentimental Stalinists. He was one of the most famous British historians of the twentieth century, and his books sold worldwide by the hundreds of thousands. In Brazil, for example, he achieved an astonishing celebrity.”

  31. Uma provocação meio maliciosa, mero exercício de cáklculo moral: se Hobsbawm teria um caráter duvidoso por ter feito parte do PC britânico apesar de ter largado o stalinismo, o fato de Pryce-Jones ser colaborador da National Review — apoiadora, ao longo da história, da segregação racial, da livre intervenção americana em países que se aproximassem do socialismo, do Vietnã e da Guerra no Iraque — diz o que sobre ele?

  32. Eu queria ter lido mais sobre a obra de Hobsbawn nesse artigo. Ele só fala do militante comunista, mas não faz nenhuma análise da obra.
    Afinal, vale a pena ler Hobsbawn? Sua obra não passa de propaganda ideológica travestida de história? Ou ele é realmente um dos grandes historiadores do século XX?

  33. Marcos Fontoura,

    Vale, sim, ler Hobsbawm, do contrário não se falaria tanto dele. Questões ideológicas à parte, ele é um dos grandes da história social no século XX — e escrevia terrivelmente bem.

    Um abraço,
    Rodrigo.

  34. As mostras de relativismo absoluto aqui apresentadas obrigam-me a explicar o óbvio, infelizmente.
    O que diferencia o stalinismo, maoismo, pol-potismo e qualquer regime baseado no marxismo (que o Hobsbawm jamais largou) não são as guerras e invasões, que eles praticaram bastante, principalmente o primeiro. Sempre houve e sempre haverá guerras e invasões. A característica específica dos regimes marxistas são as medidas tomadas contra a própria população, em tempos de apz, para instalar o Paraíso na Terra e criar o “novo homem”. São os Gulags, os campos de “reeducação”, os expurgos periódicos, as execuções em massa, as cotas de extermínio etc.
    Comparar essas medidas com atos contra inimigos em uma guerra é absurdo. Na época da Guerra do Vietnã o stalinismo e o maoismo já tinham produzido seus genocídios. É muito fácil entender que alguém quisesse impedir que o mesmo ocorresse em mais um país. Mais fácil ainda sabendo que o Vietnã do Sul não queria este destino. Pode-se ser contra a guerra, mas a comparação é absurda.
    As bombas atômicas sobre o Japão, que também já mencionou para comparar com o stalisnismo foram um ato de guerra contra um inimigo, para terminar com a guerra. Pode ser criticado (força excessiva?), mas não pode ser comparado com o que os regimes marxistas faziam contra a própria população em tempos de paz.

    As bombas jogadas pelo Enola Gay sobre as duas cidades japonesas durante a guerra não são a mesma coisa que o Enola Gay jogá-las sobre Baltimore e Atlanta na década de 50, para instalar o Paraíso.

    Todos os lados estavam (e estão) dispostos à guerra, mas só um lado queria instalar o Paraíso e criar um “novo homem”. E é precisamente esta estupidez atróz que foi usa para defender a posição do Hobsbawm como “utilitarista”. Ninguém consideraria normal a argumentação de que SE eu tivesse conseguido chupar cana e assobiar ao mesmo tempo, então tal ou qual ato teria valido a pena.

    Falta saber quê valor podem ter supostas “interpretações” baseadas numa teoria totalmente falsa. O marxismo é totalmente falso. Sua intrepretação histórica, sua análise econômica, sua antropologia – tudo falso.

  35. “Falta saber quê valor podem ter supostas “interpretações” baseadas numa teoria totalmente falsa. O marxismo é totalmente falso. Sua interpretação histórica, sua análise econômica, sua antropologia – tudo falso.”

    Como uma das grandes correntes de pensamento do século XIX, e ainda viva (decadente, talvez, mas viva), muita coisa se fez e faz sob sua inspiração. Sua afirmação é ampla demais, e de qualquer forma, bons trabalhos ainda são feitos por marxistas. Se você toma por “marxismo” uma espécie de religião secular destinada a explicar toda a história dos primórdios ao futuro idílico, concordo com você — enfim, uma ideologia utópica –, concordo com você. Mas se com isso você diz que todos os marxistas, de todas as subcorrentes, devem ser jogados fora, eu sou forçado a discordar veementemente, mesmo eu mesmo não sendo marxista. Essa é uma visão apriorística, tanto quanto a dos comunistas que rejeitavam teorias a priori tachando-as de “burguesas”. Ir caso a caso dá trabalho, é certo, e todos temos direito a nossas prevenções e filtros intelectuais, mas não sejamos dogmáticos.

    Um abraço,
    Rodrigo.

  36. Colegas, saindo um pouco do tema, gostaria de pedir um auxílio. Há historiadores sérios que situam nazismo como ideologia de esquerda?

  37. Prezado Ramos,

    Uma pergunta (e não me entenda mal, por favor): faz alguma diferença que alguém considere o nazismo uma ideologia de esquerda (ou de direita)?

    Pergunto de forma sincera.

    Abraços,
    Horácio

  38. M. Ramos, há o Paul Johnson, que não está bem cotado por aqui. Pelo pouco que li até agora, após a indicação do Martim, Michael Burleigh deve situar também. Parece que ele é bem conceituado e segue a linha do Voegelin. Este último e Rothbard (salvo engano), que não são historiadores em sentido estrito, mas se enveredam pelo campo, também situam o nacional-socialismo na esquerda.
    Na verdade, apesar das idiossincrasias, é bastante evidente que situar o nacional-socialismo à direita é muito mais forçado e artificial do que à esquerda. Não precisa de historiador, os objetivos e metas de governo falam por si. Dê uma olhada: http://avalon.law.yale.edu/imt/nsdappro.asp

    Tirando o elemento antissemita, que não é útil para o “enquadramento ideológico”, pois apresenta-se à esquerda ou à direita, dependendo da época e do lugar, o resto é um programa tipicamente esquerdista.
    Além do próprio nome, os nacional-socialistas fizeram aliança com os comunistas (Pacto Molotov-Ribbemtrop), não com os conservadores ou liberais.

    Mais útil do que o enquadramento à esquerda ou à direita, é a identificação dos movimentos messiânicos ideológicos modernos (antitradicionais, anticristãos, estatizantes, caráter de religião secular, violência em massa contra a própria população, promessa de um futuro idílico etc.). Neste grupo, nazismo e comunismo indubitavelmente estão juntos.

    Abaixo seguem algumas das diretrizes do Programa do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (o programa original contém 25 pontos), contidas no link acima:

    11. Que toda renda não merecida, e toda renda que não venha de trabalho, seja abolida.

    13. Nós exigimos a nacionalização de todos os grupos investidores.

    14. Nós exigimos participação dos lucros em grandes indústrias.

    15. Nós exigimos um aumento generoso em pensões para idade avançada.

    16. Nós exigimos a criação e manutenção de uma classe média sadia, a imediata socialização de grandes depósitos que serão vendidos a baixo custo para pequenos varejistas, e a consideração mais forte deve ser dada para assegurar que pequenos vendedores entreguem os suprimentos necessários aos Estados, às províncias e municipalidades.

    17. Nós exigimos uma reforma agrária de acordo com nossas necessidades nacionais, e a oficialização de uma lei para expropriar os proprietários sem compensação de quaisquer terras necessárias para propósito comum. A abolição de arrendamentos de terra, e a proibição de toda especulação na terra.

    19. Nós exigimos que a lei romana, que serve a um arranjo materialista do mundo, seja substituída pela lei comum alemã.

    20. A fim de tornar possível para todos os alemães capazes e industriosos obter educação mais elevada, e assim a oportunidade de alcançar posições de liderança, o Estado deve assumir a responsabilidade de organizar completamente todo o sistema cultural do povo. Os currículos de todos os estabelecimentos educacionais serão adaptados para a vida prática. A concepção da idéia do Estado (ciência de cidadania) deve ser ensinada nas escolas desde o início. Nós exigimos que crianças especialmente talentosas de pais pobres, quaisquer que sejam suas classes sociais ou ocupações, sejam educadas às custas do Estado.

    21. O Estado tem o dever de ajudar a elevar o padrão de saúde nacional fornecendo centros de bem-estar maternal, proibindo trabalho infantil, aumentando aptidão física através da introdução de jogos compulsórios e ginástica, e pelo maior encorajamento possível de associações relacionadas com a educação física do jovem.

    23. Nós exigimos que haja uma capanha legal contra aqueles que propaguem mentiras políticas deliberadas e disseminem-nas através da imprensa. A fim de tornar possível a criação de uma imprensa alemã, nós exigimos:
    (a) Todos os editores e seus assistente em jornais publicados na língua alemã deverão ser cidadãos alemães.
    (b) Jornais não-alemães deverão somente ser publicados com a permissão expressa do Estado. Eles não deverão ser publicado na língua alemã.
    (c) Todos os interesses financeiros em, ou de qualquer forma afetando jornais alemães serão proibidos a não-alemães por lei, e nós exigimos que a punição por transgredir esta lei seja a imediata supressão do jornal e a expulsão dos não-alemães do Reich.

    25. A fim de executar este programa, nós exigimos: a criação de uma autoridade central forte no Estado, a autoridade incondicional pelo parlamento político central de todo o Estado e todas as suas organizações.
    A formação de comitês profissionais e de comitês representando os vários estados do país, para assegurar que as leis promulgadas pela autoridade central sejam executadas pelos estados federais.
    Os líderes do partido assumem a responsabilidade de promover a execução dos pontos agora mencionados a todo custo, se necessário com o sacrifício de suas próprias vidas.

  39. O argumento que situa o nazismo à direita não é tão fraco como parece pela argumentação do RCaruso. É verdade que o programa deles tinha esse tipo de medida socializante, mas lembremos que a) eles estavam numa Alemanha em crise profunda disputando votos de uma população empobrecida; b) Hitler, em Mein Kampf, é específico em se apropriar de símbolos esquerdistas para fins de propgaganda, desde cores de bandeira e slogans; c) o nazismo não tem um componente básico das esquerdas, que é o igualitarismo. Este se dá apenas na dimensão de nacionalismo ariano, dentro de um Estado racial, mas não vai além. Não custa lembrar ainda que ele era reconhecido como de direita pelos próprios contemporâneos — conservadores nacionalistas inclusos — que viram nele um aliado barulhento contra a verdadeira ameaça (aos seus olhos), o comunismo. No mais, cabe ver também o quanto desse programa os nazistas realmente puseram em prática.

    Não é válido usar a aliança com Stálin como indicativo de um esquerdismo nazista. O nazismo era feroz e explicitamente antibolchevique e essa aliança foi puramente utilitária, por razões táticas.

    Seja como for, é uma discussão que depende muito de como se definem “direita” e “esquerda”. Para uns, o fato de o nazismo ser estatista já o poria na “esquerda”; para outros, e aí eu me incluo, os fins da ideologia nazista pesam muito mais, e estes eram muito hierárquicos para serem esquerdistas.

  40. Uma última coisa, que acho importante: muitas vezes essas discussões de rótulo implicam uma espécie de culpa por associação. Se algo terrível como o nazismo é de esquerda/direita/whatever, então toda a esquerda/direita/whatever seria perigosa/abominável. É mais ou menos como nos EUA, onde, em círculos sectários, \”conservador\” = ultracapitalista reacionário e \”liberal\” = comunista ateu mal disfarçado. Ou seja, não há distinções e o inimigo é parte de um grande monolito satânico. Ora, mesmo o mais saudável saudável princípio político ou moral, levado ao último grau e na base do custe o que custar, pode gerar uma catástrofe.

    Um abraço,
    R.

  41. Bem,

    (1) Eu não conheço uma única página do Voegelin em que ele diga que o Nazismo foi um movimento de esquerda. Na verdade, não me lembro de nenhuma página em que ele use os termos direita/esquerda para fazer análise histórica. Se você souber alguma, por favor, me informe.

    (2) Continuo querendo saber qual a relevância de alguém assim considerar o nazismo um movimento de esquerda.

    Basicamente, concordo com o último comentário do Rodrigo. Parece que o intuito de afirmar que o Nazismo foi de esquerda ou de direita é simplesmente condenar a direita ou a esquerda por ele. “Você é um esquerdista, os nazistas também eram”. Isso é um argumento ruim, na melhor das hipóteses.

    Se estamos falando de historiadores sérios, acredito que estamos atrás de historiadores que descreveram de forma precisa os fatos e os interpretaram de forma coerente, persuasiva e bem fundamentada. Se ele chamou o movimento de “movimento de esquerda/direita” que diferença faz? Se após uma descrição precisa e uma interpretação suficientemente boa o autor concluir que o nazismo foi um movimento de esquerda, em que isso irá depor contra o trabalho historiográfico que ele realizou?

    No final das contas, tudo depende de como você define direita e esquerda. Como duvido muito que há uma única descrição possível e aceitável dos dois termos, duvido muito que essas categorias tenham alguma relevância para um trabalho histórico sério (ou para qualquer trabalho sério).

  42. Horácio,
    pergunto por curiosidade mesmo, pois vejo esquerdistas jurando de pés juntos que qualquer um que aproxime nazismo de socialismo é biruta.

    Ex: http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2012/05/direita-respeitavel-e-seu-embaracoso_25.html#comment-form

    Obrigado, Caruso e Rodrigo.
    Cheguei a outros autores, nem todos historiadores, não sei quão respeitáveis no que tange o assunto, que colocam o nazismo à esquerda: Leo Strauss, Alain Besançon, Ernst Topitsch, Erik von Kuehnelt-Leddihn, Norman Cohn, Pierre Chaunu, Hermann Rauschning.

    Se conhecem, podem me dizer algo sobre eles?

  43. O caráter hierarquico do nazismo era racial. O hierarquismo conservador se refere mais a uma suposta sabedoria maior de alguns, não? O conservadorismo pode até estar equivocado. Mas é diferente do racismo nazista. Um conservador aceitaria um judeu governante, desde que apegado à valores platônico-cristãos, digamos. Para um nazista, um judeu deveria ser um escravo simplesmente por ser judeu. Não é uma diferença muito sutil.

  44. Rodrigo e Horácio, compreendi melhor a preocupação de vocês. Os termos que usei sofreram desgaste e esvaziamento.

    Se me permitem reformular um pouco, meu intuito é simplesmente saber de historiadores (ou outros autores) dignos que notam especial semelhança ou associação entre o nazismo e o comunismo soviético, pois muitos socialistas negam este vínculo até a morte.

    Não pretendo panfletar que movimentos atuais auto-denominados de esquerda são próximos do nazismo, mas somente compreender se a ligação histórica de que falei é pertinente e até que ponto.

  45. M. Ramos,

    Desses, confesso que, desses que você cita, o único que conheço como historiador profissional é o Chaunu, embora só lembre dele tratando de história moderna, não contemporânea. Strauss está mais para filósofo político, e é normalmente lembrado como um dos inspiradores intelectuais dos neocons. Até onde sei, sua obra é pouco conhecida fora dos círculos da direita americana e algumas de suas teses, controversas.

    Kuehnelt-Leddihn era um aristocrata monarquista austríaco que colaborou com o pessoal da National Review, a principal revista conservadora americana nos anos 50 e 60. Nunca ouvi falar dele como um historiador de fato, e estou certo de que o grosso de suas obras tende mais para uma espécie de filosofia política conservadora e engajada. Cautela com ele. Acho muito difícil que você veja suas obras sendo tratadas como históricas no sentido acadêmico, mesmo sendo ele um dos proponentes do nazismo como esquerda.

    Bem, leia-os. Mas apenas tome cuidado, porque nesses temas há historiadores e “historiadores” — isto é, aqueles que recorrem à história para defender suas teses, mas não têm compromisso com filtros acadêmicos. É relativamente fácil arregimentar uma dúzia de autores afirmando uma tese largamente ignorada ou mesmo refutada pela Academia, mas que serão lidos como canônicos em certos meios. Então, minha sugestão é que procure saber alguma coisa sobre quem está escrevendo, às vezes pode fazer a diferença entre ter uma informação verdadeira e outra distorcida.

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