Os Homens de Verdade em Albert Nobbs

 

Indicadas ao Oscar por Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante, Glenn Close e Janet McTeer, respectivamente, representam mulheres que vivem como homens na Irlanda do século XIX, no filme Albert Nobbs. Empregada como garçom em um hotel, Nobbs (Close) parece viver tranquilamente, atendendo aos hóspedes mais variados, sem nunca levantar suspeitas. Com a chegada do pintor de paredes Hubert Page (McTeer), contudo, seu segredo é ameaçado, pois, ao dividirem o quarto, Hubert vê a cinta que ela usa para esconder os seios. Desesperada, pede que não conte nada à dona do hotel, suplicando que não lhe tire seu ganha-pão, mas logo Hubert não só revela ser, ele próprio, uma mulher, como também é casada com outra. A possibilidade de se casar e de não viver mais sozinha com o seu segredo faz com que Albert comece a se interessar por Helen, empregada do hotel. Mas, enquanto considera se seria melhor contar a verdade antes do casamento ou na noite de núpcias, Helen começa a se envolver com um outro funcionário, não muito bem-intencionado.

Muitas são as histórias de mulheres que se passaram por homens para adentrar meios profissionais exclusiva ou predominantemente masculinos, como, por exemplo, as mulheres que lutaram disfarçadas na Guerra Civil americana. Esta não é uma delas. Albert Nobbs (quando Hubert lhe pergunta seu nome real, ela responde simplesmente “Albert”) é um mero garçom, onde trabalha há também mulheres empregadas em cargos semelhantes. Por que, então, ela se passa por homem? Não é, portanto, em nome de uma carreira ou profissão proibida. Felizmente, o filme sequer tenta falar sobre como as mulheres são capazes de executar os mesmos trabalhos que os homens. Tal conclusão é tão óbvia que sequer precisa ser mencionada. E, assim, o grande mérito do filme acaba por ser justamente a falta de distinção, positiva ou negativa, em favor de um sexo ou outro. De acordo com o filme, a verdadeira distinção reside nas personalidades, nos objetivos de vida, e não nos sexos.

Mas o mistério de Albert Nobbs persiste. Ela não parece se vestir como homem porque vê prazer nisso. Há uma cena em que, depois de anos, volta a usar um vestido em público e, após um certo receio inicial, demonstra total realização. Sua feminilidade não lhe é abjeta (como parecer ser para algumas lésbicas ou transsexuais) mas teve de ser sacrificada em prol de uma vida mais decente (“a vida sem decência é insuportável!”, ela diz). Quando adolescente, ela fora abusada e, para sair do local em que vivia, precisou se disfarçar de homem e começar a trabalhar. Mesmo assim, ela não cogita voltar a viver como mulher, pois viver como homem acabou se tornando a única forma de decência e de honestidade que ela conhece. Há uma complexidade revigorante no filme, no que se refere a diferentes escolhas de vida. Não é possível explicar sua trajetória com meros impulsos sexuais. Albert Nobbs não é simplesmente homossexual; ela não deseja sexo, mas um relacionamento duradouro. Em seu hotel, se hospeda um casal de gays (acompanhado por duas mulheres, para disfarçar) e seu comportamento é muito mais imoral do o que de Nobbs cortejando Helen ou o de Hubert com a esposa, pois fica claro que naquele caso não há nada mais além de sexo (um dos gays retorna ao hotel mais tarde, com um par diferente). Nobbs, por sua vez, sonha com uma esposa com quem possa abrir uma tabacaria, trabalhar por mais alguns anos e passar a aposentadoria com ela perto do litoral. Ela deseja, portanto, intimidade, amor.

Para alguns conservadores extremistas, não há diferença significativa entre homossexualismo e promiscuidade, leviandade, etc.. Parte deste preconceito é compreensível dado que um grande número de homossexuais age de forma promíscua e leviana, mas uma grande parcela dos heterossexuais se comportam da exata mesma forma, com a diferença de que não sofrem grandes julgamentos por isso. O filme mostra que tais características não estão restritas apenas a um determinado grupo ou gênero. Tudo depende, afinal, do que elegemos como força motora em nossas vidas, dos impulsos que escolhemos obedecer e que acabam por definir nosso caráter, apesar de nossas circunstâncias. Nobbs parece preferir ser homem, não para seguir uma carreira em específico e obter realização pessoal ou por conta de algum fetiche sexual (tais objetivos só trariam mais solidão), mas para poder viver de forma decente, para trabalhar, para conseguir, finalmente, sustentar e cuidar de outra pessoa – e tal desejo é o que a torna um homem melhor do que muitos homens nascidos e criados como tais.

6 comentários em “Os Homens de Verdade em Albert Nobbs

  1. Interessante! Estava com uma ideia de que o filme era propaganda de cunho ideológico – mas parece que ele tem coragem de pensar mais fundo, ir além das aparências. Agora estou com vontade de ver!

  2. Decência independe mesmo de gênero e orientação sexual; e requer, sim, um desejo de fundo bem ordenado. Coisa difícil, porque a vida é cheia de circunstâncias difíceis .

    Os cristãos tipicamente recordarão, aliás, a) haver muitas prostitutas (por exemplo) bem próximas do Criador, porque b) na sua perspectiva também esse desejo ou “força motora” é um dom a ser recebido, e não decorre da submissão legalista a supostas normas de conduta.

    Ainda um “caveat”: não assisti ao filme, de maneira que ignoro quão aplicável é o link abaixo às questões que sugere, ou ao modo como as apresenta.

    Em face do “post”, porém, o texto linkado poderá talvez servir para lembrar o debate sobre a desconexão contemporânea entre a) moralidade, linguagem e afetividade e b) a noção de que há uma ordem criada, finalística, irredutível a “a” e que lhe dá sentido real.

    Aí vai: http://www.catholicworldreport.com/Blog/1177/on_a_new_norm_of_morality.aspx

  3. Ricardo, você entendeu bem o que eu quis dizer. Apesar da prática “condenável” dela de se passar por homem e querer se casar com uma mulher, ela ainda é moral (mais moral até do que aqueles que sequer podem ser repreendidos, já que suas práticas são socialmente aceitas, apesar de erradas).

    E, ah, excelente texto.

  4. Quando eu tinha lido sobre o filme antes tinha a impressão dele ser daqueles que querem provar que uma mulher pode ser como um homem também, no espírito de um desafio feminista com um meio apelativo. Mas boa a perspectiva desse post pra pelo menos se pensar com maior otimismo o que se pode fazer com o enredo – acho que o post habilita o filme a muita gente que ainda não o viu.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>