Henrique de Azevedo*
Muito se falou nas últimas semanas sobre Interestelar, o novo filme do aclamado diretor Christopher Nolan (A Origem, trilogia Batman: O Cavaleiro das Trevas). Desde a sua concepção, tratou-se de um projeto de enormes pretensões, não apenas pela excelência na elaboração dos seus efeitos especiais – tanto ópticos quanto práticos – mas pela reflexão sobre a própria humanidade a partir do tema da exploração espacial, na esteira de clássicos como o pioneiro A mulher na Lua de Fritz Lang (1929), Solaris de Andrei Tarkovsky (1972), Alien, o 8º Passageiro de Ridley Scott (1979) e, principalmente, 2001: Uma Odisseia no Espaço de Stanley Kubrick (1968). A visão de Nolan para o universo, no entanto, aproxima-se da sua representação das camadas oníricas de A Origem: um realismo inexpressivo e desprovido de qualquer senso de beleza, onde tudo se justifica pela sua funcionalidade imediata.
No filme, assistimos um futuro próximo no qual a humanidade se encontra à beira da extinção quando uma praga vem assolando as plantações da Terra e tornando-a inabitável. Cabe então a Cooper (Matthew McConaughey), fazendeiro e ex-piloto da NASA, abandonar a sua família e partir numa última missão espacial em busca de um novo planeta. Para isso, ele e sua equipe viajam a bordo da Endurance através de um “buraco-de-minhoca” – uma fenda na realidade espaço-temporal que conecta a Via Láctea a uma galáxia desconhecida, onde está situada a maior realização visual do filme, o buraco negro “Gargantua”.
Interestelar de fato possui uma precisão científica poucas vezes igualada no cinema de ficção. O astrofísico Kip Thorne, consultor científico e produtor executivo do filme, declarou que o trabalho realizado pelo estúdio na representação visual do buraco negro a partir de sua teoria permitiu verdadeira descoberta científica sobre o comportamento desse fenômeno, a partir do qual poderão ser publicados até dois artigos acadêmicos[1]. Apesar disso, essa preocupação acabou se tornando o maior problema de Interestelar, agravando um vício habitual dos filmes de Christopher Nolan: toda a interação entre os personagens e o universo se dá de forma extremamente didática e meramente funcional. Se surge um buraco-de-minhoca, ele serve apenas para transportar a Endurance ao destino desejado. Uma anomalia gravitacional ocorre apenas para que os personagens sejam conduzidos até determinado ponto. A aparição de “Gargantua” significa somente a ocorrência dos eventos necessários para o avanço da tripulação. Durante todo esse tempo, os cientistas se revezam em quadros e gráficos explicando para a plateia tudo o que acontece ao seu redor e o que deve ser feito para que a missão possa prosseguir. Ou seja, todos os acontecimentos são reduzidos a ferramentas de roteiro que vão se sobrepondo incessantemente, enquanto não há um momento sequer de contemplação da beleza ali existente.
Essa é a grande falha não só de Interestelar, mas do cinema de Christopher Nolan em geral. Para ele, cada imagem serve ao único propósito de levar o espectador à seguinte, por meio de constantes explicações sobre a sua estrutura própria e um ritmo acelerado de acontecimentos, exaurindo qualquer espaço para a noção de mistério e tornando impossível a reflexão. Dessa maneira, forma-se o que o filósofo Roger Scruton caracteriza como “fantasia” – que em Nolan toma a forma de um realismo virtual onde tudo é calculado, desde a gravidade até o amor:
“Tanto a fantasia como a imaginação dizem respeito a irrealidades; no entanto, enquanto as irrealidades da fantasia penetram e poluem nosso mundo, as irrealidades da imaginação existem num mundo que lhes é próprio e no qual vagueamos livremente com um complacente desapego. (…) Um desejo fantasioso não busca nem uma descrição literária, nem a pintura delicada de um objeto, e sim um simulacro – uma imagem em que todos os véus da hesitação foram rasgados. Esse desejo se abstém do estilo e da convenção porque ambos impedem a formação do substituto e o submetem a um julgamento. A fantasia ideal é perfeitamente realizada e perfeitamente irreal – um objeto imaginário que nada deixa a cargo da imaginação” [2]
O subgênero da viagem espacial, mais do que qualquer outro, exige essa preocupação artística. O peso da revelação (seja o maravilhamento de Bowman em 2001 ou o horror de Ripley em Alien) está diretamente ligado ao “salto no escuro” que é a exploração do universo. Andrei Tarkovsky, em entrevista sobre o seu Solaris e a óbvia comparação com Kubrick, já fazia crítica semelhante a de Scruton sobre 2001: Uma Odisseia no Espaço, que agora alcança as máximas proporções quando temos Interestelar em mente:
“Por alguma razão, em todos os filmes de ficção científica que assisti, os cineastas procuram forçar o espectador a examinar os detalhes da estrutura material do futuro. Mais do que isso, em algum deles, como Kubrick, eles ainda chamam seus próprios filmes de premonições. (…) Para compor uma verdadeira obra de arte, toda a falsidade deve ser eliminada. Eu gostaria de filmar Solaris de uma forma que o espectador pudesse permanecer alheio a qualquer extravagância. Claro, me refiro à extravagância da tecnologia. (…) Isso significa criar psicologicamente não um ambiente exótico, mas real, rotineiro, que é transmitido para o espectador por meio da percepção dos próprios personagens. É por isso que uma “inquirição” detalhada dos processos tecnológicos do futuro transforma a base emocional de um filme, entendido como uma obra de arte, num mero esboço com apenas pretensões à verdade”. [3]
Enfim, ainda que seja visível o investimento maciço em efeitos visuais e a representação verossímil do que seria a viagem espacial, isso é feito a partir de uma preocupação obsessiva com a própria lógica interna – explicada incessantemente durante todo o filme. Desse modo, Interestelar usa seus recursos da pior maneira possível, privando o espectador da contemplação da beleza e do encanto na revelação ordem física do universo, substituindo-a por representações equacionadas e protocolares da realidade. O resultado é um filme que não transcende as próprias barreiras e, apesar de sua trama colocar em cheque a própria sobrevivência da raça humana, gera um sentimento de pura indiferença.
[1] http://www.wired.com/2014/10/astrophysics-interstellar-black-hole/
[2] SCRUTON, Roger. Beleza, trad. Hugo Langone. – 1ª ed. – É Realizações, Brasil, 2013, p. 114-115
[3] Tradução livre de: Naum Abramov: Dialogue with Andrei Tarkovsky about Science-Fiction on the Screen. From Ekran, 1970-1971, 162-165. Translated from Russian by Jake Mahaffy and Yulia Mahaffy. In Tarkovsky Interviews. Edited by John Gianvito. University of Mississippi Press, 2006, p. 36.
* Henrique de Azevedo é graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Muito bom. Gostei especialmente desse trecho aqui: “Desse modo, Interestelar usa seus recursos da pior maneira possível, privando o espectador da contemplação da beleza e do encanto na revelação ordem física do universo, substituindo-a por representações equacionadas e protocolares da realidade.”
O filme é fraco, rasteiro e passa longe de corresponder as expectativas que levantou. Entretanto, esta crítica não faz jus ao cinema de Nolan, pelo contrário, não passa de um arrazoado difamatório – ad hominem -, que não acerta nem o rumo da razão do fiasco do filme interestelar: uma fotografia maravilhosa não substitui um roteiro capenga; por si só não carrega nas costas atuações medíocres, como a do Matt Damon, e uma estória boba, mal planejada.
A crítica se limitou a difamar Nolan e atacar a sua maior qualidade: uma direção maravilhosa, sem frescuras, sem mimimis, que respeita o espectador, pois, as pessoas normais (ao contrário dos bajuladores de enganadores como Tarantinos, Lars e Scorseses da vida) apreciam o que entendem, o que faz sentido, o que tem coerência. Estas qualidades que fazem com que os telespectadores deixem as salas de projeção sem a sensação de que enfiaram a mão em seus bolsos.
Ieda, volta!