Literatura ruim, mídia vendida, crítica rasa

por Thiago Blumenthal*

Nesta semana assisti, com bastante atraso, ao excelente documentário Os EUA X John Lennon. O filme já tem uns seis anos — deixei de vê-lo na Mostra em que foi exibido, em 2006 –, e descreve a complicada situação do ex-beatle no período em que morou nos EUA, principalmente em NY. Todos conhecem a postura anti-guerra assumida por John no fim de sua vida, com protestos musicados e algumas manifestações meio bizarras, como o Bed-In, em que ele e Yoko se refugiaram na cama em nome de paz. O que muita gente não sabe é da perseguição política sofrida pelo cantor, com grampos telefônicos, ameaças reais e um longo e cansativo processo para permanecer no país (o FBI e, em última medida, Nixon, havia imposto uma data limite para que eles saíssem do país).

Não venho aqui para falar do filme, porém. Mas em duas passagens dele notei algo digno de nota. No primeiro momento, um repórter inglês (foge-me o nome do jornal para o qual ele trabalhava) conversa com John em sua cama. Ele diz algo parecido com:

— John, você não acha que é muito fácil protestar na cama de um hotel de luxo em Amsterdam? E você não teme perder fãs por esse ato meio tolo, meio vergonhoso? E essa barba toda? Pra que isso?

O ex-beatle, conhecido por sua verborragia, safa-se da pergunta, que fica, todavia, no ar. Em outro momento, já em NY, John concede uma entrevista a Gloria Emerson, do New York Times, que já havia sido correspondente de guerra no Vietnã, nas dependências do jornal. Ela o pressiona com palavras duras, não reveladoras de um conservadorismo barato, mas de um espírito de contestação que tem que estar no sangue de cada jornalista. Ela considera a atitude de John infantil, inútil, constrangedora. E John responde que ele cresceu, que tem outra mentalidade agora, que não é mais o mesmo rapaz que cantava “I wanna hold your hand”.

— Você tem certeza de que cresceu mesmo, John? Você está fazendo um papel ridículo. Você não sabe do que está falando, vive na Terra do Nunca.

Veja o vídeo aqui.

Gloria Emerson tinha a credibilidade de uma das maiores repórteres dos Estados Unidos. Viu o horror de Vietnã de perto, diferentemente dos hotéis de luxo ou do Dakota, no Upper West Side, de John Lennon. Não o critico, mas o ponto de Gloria tinha fundamento.

A questão é: a mulher, mesmo considerada uma das mais modernas e respeitadas em Nova York, quase uma Susan Sontag, enfrentou e colocou na parede ninguém menos que John Lennon. Por onde anda a coragem do jornalista, especialmente daquele que cobre cultura, nos dias de hoje?

Jorge Luis Borges visitou o Brasil em 1984 e nenhum repórter questionou seu posicionamento político, considerado controverso, confuso e, tal qual o de John Lennon, até infantil, ingênuo. Foi uma babação de ovo sem fim na reportagem de Junia Nogueira de Sá, que dizia, entre outras pérolas: “Visto de perto, Borges é fatalmente Borges. Separando-se ética e estética, é Borges mesmo, o maior escritor vivo deste planeta. Que, da janela do carro, vendo alguma coisa que ele deve entender como um vulto chegar-se, acena e despede-se polidamente. Sorrindo, apesar de todo o cansaço imposto pela vida entre os mortais”.

Minha opinião é de que, se a pessoa não é Kafka ou Proust, é uma blasfêmia tratá-la como maior escritor, vivo ou não. E olha que gosto de Borges. Mas esse tipo de texto me parece mais release de lançamento do livro do autor argentino.

Corta pra quase 30 anos depois, 2012. Daniel Galera, que não é nem John Lennon, nem Borges, recebe uma capa enorme da Ilustrada nesta quinta-feira (8). Não questiono a capa. O autor é badalado — o lançamento de seu novo livro está sendo aguardado faz um tempo. O autor, não vamos nos esquecer, está na lista dos mais importantes jovens brasileiros da atualidade, de acordo com a Granta. Goste ou não dele, tenha ele ou não méritos literários, está em evidência. Semelhantemente a John em 78, a Borges em 84. Pobre Brasil. Mas o que temos é Daniel Galera. Diferentemente do futebol, em que para se ter destaque, é preciso ser craque, o mesmo não ocorre com as artes no Brasil. Ganha quem é melhor relacionado, quem é bonitão, quem sai bem na foto, quem tem uma tatuagem cool no braço esquerdo.

Foto de Jefferson Bernardes para a Folhapress

A Ilustrada chamou um especialista em teoria literária (o professor Alfredo Monte) para resenhar o seu novo livro. E o livro foi detonado; levou um “ruim”. Achei corajoso o caderno ter publicado uma crítica negativa a Galera, em meio a uma semana de verdadeira comoção em torno do lançamento do romance. Mas aí eles dão uma capa, a matéria do repórter, cheia de elogios, sem qualquer isenção e relação com a crítica escondida no meio do caderno. Quem lê a matéria de capa, acha que o romance é ótimo, que Daniel Galera é demais. Se tiver a sorte de chegar na crítica lá no § 4, perguntará: “opa, não era bom esse Daniel Galera?”

Se não é esquizofrenia editorial, uma zona no caderno de cultura da Folha de S.Paulo, é uma clara demonstração em que a opinião do repórter tem mais importância que a crítica do professor de literatura. Antes de supervalorizar a opinião do professor e desmerecer a opinião do repórter, é preciso esclarecer que repórter não tem que ter opinião nenhuma. Ele não é crítico. Ele está lá para descrever um fato, não para falar bem ou mal de qualquer coisa, seja um lançamento cultural ou um crime na calada da noite.

Cito as palavras do repórter Fabio Victor, com grifos meus:

“Ao longo das 424 páginas, surgem sobejos narrativos, mas o romance cativa por uma voz autoral refinada, pela tensão intermitente, pela construção detalhista de cenas, diálogos e personagens e pela tessitura sensível das tramas familiares e amorosas. Dica ao leitor: alcançado o ponto final, vale reler o prólogo, que só então poderá ser totalmente compreendido.”

Não é fácil separar a mera descrição de um trabalho artístico de um ponto de vista crítico; sabemos disso. Mas, desculpa, “tessitura sensível” e “voz autoral refinada” são termos saídos do vocabulário do especialista, isso sem mencionar o elemento vazio, que no panorama teórico de uma inspeção literária não quer dizer nada. O que é uma tessitura sensível afinal de contas?

Ademais, é difícil confiar nas palavras de um professor, de um acadêmico. Como Julio Lemos destacou em uma notinha antiga aqui nesta mesma Dicta, faz-se pouca ciência ainda na área de Humanas no Brasil. Especialmente em literatura. Sem contar o fato, ainda que um pouco banal, que críticos costumam mesmo não saber de nada.

O caso é que a discussão não segue aqui. Tem pouca saída. Estamos perdidos e, até uma revolução com armas na cabeça de ambos os lados (a mídia vendida e o academicismo tatibitate e raso) ocorrer de fato, Daniel Galera, cujo sobrenome talvez realce a vulgaridade de sua fama, continuará sendo ora aclamado por sua tatuagem ora massacrado por uma crítica escroque e manca.

* Jornalista e mestre em literatura judaica pela Universidade de São Paulo.

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9 comentários em “Literatura ruim, mídia vendida, crítica rasa

  1. Comentários bastante pertinentes, Thiago.

    Quer me parecer que Galera foi abençoado por ter nascido quando nasceu. Ele hoje surfa (um verbo e atividade muito caros ao autor) num vácuo de escritores que sabem escrever e contar uma história. Há décadas o Brasil procura preencher esse vácuo e, acredito, ele ainda tem espaços a serem preenchidos.
    Entre autores que não sabem contar uma história, os que lançam panfletos (enorme maioria de esquerda) em forma de romance/conto, e aqueles que trazem da academia todos os maneirismos, manias e pedantismo com a língua, sobram poucos que realmente nasceram para a literatura.

    E Galera é um desses. O fato de ser considerado um grande escritor aos 30 e poucos diz muito mais, infelizmente, sobre a nossa atual situação cultural do que sobre as qualidades literárias – inegáveis – de Galera.

    E, para o meu gosto, o Galera contista do “Dentes Guardados” e do “Contos da Oficina” é bem superior ao Galera romancista.

  2. Concordo que a crítica literária jornalística brasileira é muito ruim (a ilustrada, em particular, é horrorosa), e que a exposição recente do Galera é excessiva e constrangedora

    Mas achei esse texto vago, muito mal escrito e mal argumentado, apontando os motivos errados para se criticar, e apontando da forma errada.

    é verdade que ha um HYPE em volta do Galera, e todo hype é imbecil, mas de que forma que esse HYPE brasileiro é tão pior assim do que aquele em volta do Franzen, nos EUA? (que foi, nesse ultimo romance, incensado as alturas de um MELVILLE por parte do jornalismo cultural americano)

    oudaquele feito em volta de escritores menores ainda, como Tao Lin, Safran Foer, Teju Cole, Junot Diaz, etc?

    publicar uma reportagem grande sobre livro e uma crítica negativa do mesmo livro não constitui ESQUIZOFRENIA editoral.

    cadernos culturais não se consideram, na esmagadora maioria dos casos, publicações de cunho academico que precisem ter esse tipo de preocupação editorial.

    em qualquer lugar do mundo, reverberação jornalística é dada a qualquer artefato cultural que já contenha seu hype garantido.

    (um livro de um autor badalado americano vai, SIM, ser coberto por todos cadernos culturais americanos, pode ter certeza, mesmo se as resenhas do livro forem ruins)

    por mais que eu odeie a Ilustrada, o fato da resenha ter sido negativa dentro desse hype criado em cima do livro pela Cia das Letras foi até positivo, eu acho (pra desencorajar nossas paranoias mais robustas).

    o problema é que a resenha é mal escrita, e em parte ela é mal escrita porque não há espaço na ilustrada para um texto minimamente complexo e decente.

    você tem todo o direito de achar o Galera um romancista sem talento nenhum (eu discordo, acho “Mãos de Cavalo” um bom romance, talvez até muito bom).

    mas faz pouco sentido dizer que a sua carreira foi feita simplesmente “sendo relacionado” e tendo tatuagem cool.

    pelo que sei, Galera se autopublicou novo e ganhou exposição, primeiro, através de sua atividade na internet. ganhou boas resenhas e elogios de escritores respeitáveis (Bernardo Carvalho)

    se ele passou a ganhar mais exposição pelo povo achar ele cool e bonitinho é outra história. mas isso tb nao acontece com a Zadie Smith, por ser negra e bonita? não acontece com DFW por ele ter se matado? isso não diminui o talento deles.

    é claro que existe apadrinhamento e “contatos” na nossa (e em toda) indústria cultural. o autor desse texto está publicando nesse site porque conhece alguém, afinal.

    claro que devemos ter consciência desses contatos, não achar que as coisas acontecem por um interesse puro em cultura. mas é facil isso virar paranoias de máfias paulistas e gaúchas que não são tao organizadas e nem tao influentes assim.

    O texto ainda reclama da crítica de maneira geral, mas não dá pra entender se a sua reclamação é só com a crítica academica, só com a critica brasileira ou com a atividade crítica como um todo.

    Eu também odeio o jornalismo cultural e a crítica brasileiras, e acho que eles *devem* ser criticados.

    Mas para uma reclamação como essa merecer nossa atenção além dos clichês tolos de mídia-vendida, algum juízo crítico minimamente inteligível devia ser oferecido.

    Isso não acontece. O texto só tenta espumar-se em polêmica, e acaba funcionando como o outro lado da mesma moeda, do mesmo tipo de agitação vazia se passando por crítica.

    Não basta apontar que está ruim. Isso qualquer conta no twitter faz (e com menos caracteres).

  3. “…notei algo digno de nota…” Cyril Connolly já dizia que para detonar é preciso ter estilo melhor do que o do detonado.

    Sem contar que suspeito que zero por cento dos ensaios de crítica de Eliot ou de Auden ou de Manuel Bandeira pode ser chamado de “científico”.

    (Quem mais se preocupou em ser “científico” na crítica brasileira foi o Antonio Candido. É a aplicação do método estrutural, a busca do “sistema” da literatura brasileira etc. Deixo as conclusões a cargo do leitor.)

    O cara publica um romance e tem de imediatamente ser julgado pela régua de Proust? Peraí, não?

  4. O Vinícius Castro disse tudo.

    Só acho que o autor deste artigo devia ter colocado a reclamação “faz-se pouca ciência ainda na área de Humanas no Brasil. Especialmente em literatura” no início do texto, porque aí eu não teria que esperar até o final para ver de vez que você realmente não entende nada de literatura. Ciência em literatura?

  5. Vocês estão pegando muito pesado com o rapaz! E olhe que estou quase saindo no tapa com a Ieda no que se refere a categorização de filmes! Só não vamos as vias de fato por causa da Lei Maria da Penha… hehe – e pq não a conheço pessoalmente, não sei onde ela mora, não sei o que faz da vida e não tenho interesse em nada disso!

    Achei muito relevante a advertência levantada pelo Thiago sobre a esquizofrenia dos jornais. Acho isso uma verdade. É claro que o jornal não pode ser pausterizado, mas fica meio difícil ver um editorial dizendo que votará no Serra e os jornalistas fazendo campanha, travestidos, para Haddad.

    Aliás, os jornais precisam de um verdadeiro escrutínio! É um bom tema para um post, viu Joel! A adesão vergonhosa ao lulo-petismo precisa ser escancarada. O pior dos mundos é justamente a Folha, que se faz de independente. Ora, o que adianta o dono ser independente – e sinceramente acredito nisto – se a redação é feita de progressistas de quinta?

    Vejamos a cobertura jornalística sobre a violência ou as ações contra o crack. É ridícula a diferença com que tratam diferentes governos. Como se deixam engabelar pela pauta de alguns iluminados progressistas. Mas o editorial está lá a destacar o mensalão e os acertos nas condenações.

    Nosso jornalismo reflete a sociedade ou a sociedade reflete o jornalismo? É um bom debate!

  6. Ieda,

    E enveredar para o conservadorismo fez o John Lennon menos ingênuo, bobo? Segue que é comum o sujeito ficar mais conservador mais velho, mas velhice não é igual à sabedoria nem virar ~conservador~ traz qualquer redenção.

    E pela notícia que você linkou, ele só era um fã do Reagan nos últimos anos de vida e isso vem no contexto da presidência sem pulso lá do Jimmy Carter. Eu acho meio neurótica essa coisa aí de gastar tempo numa categorização de “conservador x progressista” quando não há uma verdadeira prova de que o bicho ficou menos ingênuo, bobo… Além de dizer que queria votar no Reagan — que, né, francamente.

  7. Lenon quis ser Jesus. Ele levou o proprio comentário – de que ambicionava ser mais conhecido que Jesus e mais poderoso que o Cristianismo – a sério demais.

    Beattlemaniacos sempre souberam que McCartney é muito mais artista. Nunca precisou de encenações e canções rastejadas e coitadistas como Imagine.

    Salve McCartney.

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