Merquior, 70

Por Fabio S. Cardoso

Na última sexta-feira, dia 19 de agosto, uma reportagem veiculada no canal a cabo GloboNews atraiu minha atenção. Escrevi reportagem? Fui generoso: em verdade, a jornalista fazia uma passagem de texto de pouco mais de 60 segundos sobre a exposição em homenagem ao pensador José Guilherme Merquior na Academia Brasileira de Letras. Infelizmente, a passagem em questão se destacou, a meu ver, por um aspecto negativo: a repórter insistia em chamar Merquior de Melquior, ajudando, sem querer, a manter esquecido um dos mais argutos críticos culturais da segunda metade do século XX.

Com efeito, José Guilherme Merquior foi um dos principais pensadores do País no breve período em que viveu, entre 1941 e 1991. Doutor em Letras pela Universidade de Paris e PhD em Sociologia pela prestigiosa London School of Economics, Bacharel em Direito e licenciado em Filosofia, Merquior ingressou na Academia Brasileira de Letras em 1982. Não chegou aos 50 anos, morto precocemente em decorrência de um câncer, mas deixou obra vasta, escrita em português, francês e inglês, sobre os mais variados temas: da política à filosofia, passando, evidentemente, pela literatura e pela estética. Merquior foi diplomata de carreira e durante muitos anos colaborou com a imprensa, mesmo antes de o termo “jornalismo cultural” ter a pompa e circunstância que hoje dá minutos de fama aos quase famosos resenhistas de música pop.

Um curto relato é ilustrativo de seu talento: consta que, certa feita, foi à redação do então grande Jornal do Brasil entregar ao editor seus textos para o suplemento de cultura da publicação. Na saída, o editor, Reynaldo Jardim, pediu que avisasse a seu pai para aparecer no jornal. Ao que foi surpreendido pela resposta do jovem resenhista: “Mas eu sou José Guilherme Merquior”. Assim, na década de 1960, assumiu a cadeira de crítica literária do JB, que à época contava com outro gigante, o poeta Mario Faustino.

Com efeito, Merquior não surpreendia apenas pela sua juventude. Tratava-se de um intelectual como poucos o Brasil veria nascer depois, capaz não apenas de incorporar as leituras (algo que os estudiosos brasileiros fazem com algum talento, nem sempre citando a fonte), mas também de, uma vez de posse dos conceitos, elaborar conclusões originais e arrojadas. Aqui e ali, alguém podia até torcer o nariz quanto às suas observações, porém poucos tiveram capacidade de debater em público contra Merquior – ao que parece, uma filósofa bastante conhecida tentou, mas foi desmascarada em praça pública. Claro que quase ninguém menciona esse detalhe hoje em dia.

A análise do diplomata se destacava, essencialmente, por sua interdisciplinaridade, mesmo antes de essa ideia ser seqüestrada pelos educadores e pelo establishment da pedagogia. Em Merquior, essa interdisciplinaridade não representava, como em muitos casos hoje em dia, a diminuição do conteúdo à disposição para o debate. Antes, significava que o pensador lançava mão de mais referências para comentar o liberalismo, apontar a supervalorização do estruturalismo, acusar os vícios do marxismo, bem como para conceber críticas renovadoras em relação à obra de escritores do porte de Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade – para citar alguns dos exemplos caros à obra do pensador.

O homem e sua obra

Num espaço de tempo de 25 anos, Merquior conseguiu o feito de publicar quase um livro por ano. E o leitor que tentar esboçar alguma comparação com algum candidato a Midas da política brasileira não poderia ser mais equivocado. No caso do diplomata, a sabedoria não vem envolvida pela proto-espiritualidade da linguagem de auto-ajuda. Seus livros, infelizmente fora de catálogo das grandes editoras, oferecem o que de melhor há no sentido de problematização da cultura e do debate intelectual, sem que isso reflita hermetismo barato ou pernosticismo da linguagem. Em outras palavras, ao contrário daqueles que precisam esbanjar erudição, Merquior simplesmente era autêntico: sua ilustração era cristalina, e ele possuía verdadeiramente intimidade para com as palavras.

Exemplo disso pode ser constatado no livro “De Praga a Paris – o surgimento, a mudança e a dissolução da ideia estruturalista”.  Publicado em português em 1991, ano da morte do pensador (a obra foi elaborada originalmente em inglês), traz à baila uma espécie de acerto de contas de Merquior acerca do estruturalismo. Corrente de pensamento hoje vagamente citada, durante as décadas de 1960 e de 1970 o estruturalismo não apenas correu o mundo, mas fez os corações e mentes de jovens estudantes e candidatos a intelectuais – muitos deles, inclusive, são chefes de departamento das universidades no Brasil contemporâneo e não se esqueceram dos ensinamentos de seus grãos-mestres. No livro, o ensaísta resgata as origens, analisa a proposta teórica, rebate os fundamentos, atenta para alguns de seus principais formuladores (como Ferdinand de Saussure, Émile Benveniste e Claude Lévi-Strauss), além de dedicar um trecho especial para comentar o estilo tardio de Roland Barthes:

Como crítico, Roland Barthes começou escrevendo sobre Gide e terminou com uma análise simpatizante de Sade. Os componentes imorais e perversos das formas mais ousadas do libertinismo sempre estiveram entre suas preferências literárias. Para ele, a idéia de que a literatura é transmissora de contramoralidades chocantes não era uma possibilidade improvável – era algo de se esperar. Na verdade, um dos traços mais conspícuos do seu perfil intelectual era a capacidade de combinar este aspecto de conteúdo – sua lealdade ao libertinismo perverso – a uma longa fidelidade à poética formalista de vanguarda. Ora, reunir essas duas linhas – contracultura libertina e formalismo modernista – equivalia a uma considerável inovação na crítica literária francesa, pois todos os críticos anteriores, mesmo quando solidários às áreas-chave do cânon modernista, se tinham afastado das técnicas vanguardistas mais radicais (MERQUIOR, 1991, p.189)

Embora seja essencialmente conceitual, a obra traz as características elementares da prosa analítica de Merquior, visto que o autor não se restringe a repetir os esquemas pré-elaborados ou mesmo certa fortuna crítica que celebra essa corrente de pensamento. Em vez disso, ao mesmo tempo em que dá crédito aos méritos de seus formuladores (“Émile Benveniste foi um dos melhores intérpretes da lingüística estrutural”) é capaz de rebater suas premissas de forma direta (“se as coisas pudessem ser deixadas dessa forma, o estruturalismo poderia ser melhor descrito como uma higiene da explicação”).

Em outro livro, “A Natureza do Processo”, Merquior se propõe a refletir sobre a ideia de progresso, à luz das correntes ideológicas e do pensamento econômico. Logo na abertura do livro, lê-se que o autor retoma o sentimento de fastio da humanidade com o que ele chama de progressismo. Segundo o pensador, não foram poucos aqueles que rechaçaram o sentido da evolução, aqui livremente traduzida por progresso, mesmo antes dos conflitos mundiais. Como assinala o autor:

Chesterton disse que se tratava de um comparativo cujo superlativo ainda não fora estipulado; com menos humor, o sexólogo Haverlock Ellis o reduziu a uma simples “troca de um incômodo por outro”. Depois da guerra, a dúvida quanto aos benefícios do progresso se tornou uma espécie de padrão ideológico. Na Inglaterra, T.S.Eliot pintou o mundo moderno como uma “terra devastada”; na França, Paul Valéry, confundindo o declínio da supremacia européia com o colapso da civilização, “descobriu” a perecibilidade das civilizações. (MERQUIOR,1990, p25)

Mais do que apresentar citações como se fossem argumentos de autoridade, Merquior traz as referências como maneira de constatar o que as mentalidades nessa época diziam sobre a questão do progresso. Ao mesmo tempo, é como se as leituras lhe fossem naturais que as menções eram o óbvio ululante. Nada óbvia, por sua vez, é a análise que o autor faz do marxismo. Ainda na mesma obra, ao refletir sobre o pensamento de Karl Marx, Merquior parecia não temer ser professoral – até mesmo porque suas leituras garantiam também essa qualidade. “Foi a Karl Marx que coube, no dizer de Jean Jaurès, casar o princípio socialista com o movimento operário”, explica. E adiante é taxativo: “a convicção de que o socialismo não é um ideal, mas algo profundamente enraizado na própria evolução histórica é a evolução marxista da historiografia de Hegel – a ideia de uma lógica da história que caminha para uma época de redenção e de completa realização da liberdade”.

Sobre a ideia de liberdade, aliás, o pensador enfatizou a distinção dos direitos, numa teorização que mais tarde pareceria monopólio da esquerda, a saber: a questão da liberdade política e da liberdade civil. Acerca da primeira, Merquior enfatizou o quanto a perspectiva clássica pesava no tocante ao seu significado: “a liberdade antiga, pública e política, residia na autonomia, no fato de tomar parte na determinação da vida coletiva”, enquanto a liberdade civil “residia no não-impedimento, no gozo de uma esfera indeterminada de ação”.

Se na interpretação das idéias políticas e no comentário das correntes culturais, a pena era arguta e certeira, nos chamados estudos literários Merquior parecia estar mais do que à vontade. Na coletânea “Crítica”, obra que traz uma seleta de seus ensaios entre 1964 e 1989, lemos um Merquior talvez ainda mais arrojado em se tratando das interpretações de escritores e de correntes estéticas. Chama a atenção, em particular, a leitura que o autor faz das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Ainda que alguns dos mais formidáveis conceitos sobre a obra machadiana já tenham sido repassados à exaustão, é bastante curioso observar quando uma interpretação erudita aparece. Assim, na contramão do consenso, Merquior comenta que, perto do travo acre e angustiante da galhofa de Machado, o texto de Laurence Sterne mais parece um licor amável. E mais à frente o autor arremata: “a natureza inquietadora do humor machadiano deriva justamente de sua propensão inquisitiva e filosófica, de sua qualidade de visão problematizadora”.

Assim como Machado de Assis, a visão de mundo de José Guilherme Merquior também problematizava os temas dos quais o autor tratava. Em síntese, um intelectual com recursos literários e repertório sofisticado, à frente de seus pares, ainda que fosse precoce. Não custa lembrar que, à época em que muitos sequer conquistaram autonomia intelectual, Merquior já escrevia obra de fôlego, sem se escorar nessa ou naquela corrente de pensamento para defendê-lo das críticas. Em vez disso, foi Merquior que, no fim de sua trajetória, foi visto como um conservador recém-convertido, exatamente porque defendia os valores da corrente liberal, e daí ele passou a ser alvo de inúmeras tentativas de desqualificação intelectual – mais ao final de sua vida, o pensador esteve associado a Fernando Collor de Melo, ao ensaiar para o então político em ascensão um texto sobre um partido social-liberal, o que lhe valeu a pecha de collorido e adesista.

Em 2011, quando completaria 70 anos, a obra e o pensamento de José Guilherme Merquior necessitam de mais espaço para debater essas e outras questões, para além de certo ranço ideológico de um lado e de outro. Só assim evitaríamos que jornalistas de TV confundissem o pensador com um nome que sequer faz sentido.

Fabio S. Cardoso é jornalista e professor universitário.

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