Moral sem Deus

Com a instauração praticamante inevitável do secularismo — acredito que para o bem –, insistir em assentar a moralidade sobre proposições religiosas não é apenas um erro filosófico, mas um ato irresponsável.

Como a certeza absoluta não é critério prático de ação, agimos com base na prudência. A prudência nos parece recomendar que, embora a existência de uma realidade transcendente que dê fundamento à moralidade seja possível, a sua inexistência também o é. Fosse necessário o conhecimento sobre essa realidade, ou autoevidente, não haveria debate sobre ele. (É possível encerrar um debate infrutífero usando apenas algumas palavras: “não aceito a sua premissa, e muito menos sou obrigado a aceitá-la”. E aqui o fundamentalismo prova-se sectário, porque finge poder dialogar com premissas que não são, e não devem ser, necessariamente, aceitas.) Mas sempre houve. A crença ou descrença nesse fundamento, ademais, não afeta a nossa existência, e portanto não afeta a substância de nossos atos. Isso é incontroverso.

Podemos adotar, portanto, qualquer uma das três premissas: 1) Deus existe; 2) Deus não existe; 3) “Deus existe” é uma proposição sem sentido, porque impassível de demonstração (o que é equivalente, sob certa perspectiva, ao agnosticismo). Substitua “Deus” por “um fundamento transcendente” e teremos uma formulação mais próxima da moral.

(1), (2) e (3) são legítimos, por problemáticos que sejam de acordo com o juízo das mais variadas escolas; são, todavia, mutuamente excludentes. Se são legítimos e mutuamente excludentes, a sua conjunção é falsa, e não serve para fundamentar a moral, já que do falso podemos concluir qualquer coisa (ex falso quodlibetur); e essa consequência não nos interessa, por absurda.

O problema central é que não podemos obrigar ninguém a adotar qualquer uma das posições (1), (2), (3). Logo, se é nosso interesse promover alguma espécie de critério moral (ou ético, como queira), precisamos fundamentá-la em premissa que deva ser aceita *independentemente* do estabelecimento da verdade de uma das três proposições mutuamente excludentes. Kant, por exemplo, afirmou muitas vezes que a proposição (1) é indemonstrável (ou: não é necessariamente demonstrável), e que os argumentos em favor da existência de Deus dados pelos filósofos estão todos furados; mas que a moralidade tem necessidade prática de uma fé em Deus.(*) Nietzsche apoiou a moralidade (heróica, aristocrática) na verdade de (2): não há Deus, e por isso não só somos livres para, mas também devemos, transmutar todos os valores(**) — abster-se de criar valores é próprio de uma civilização decadente, como a oriental e, em grande parte, a civilização francesa e alemã do final do século XIX. Wittgenstein sustentava, na sua obra escrita,(***) a proposição (3); mas dizia agir, tal como confessava em seus diários,(****) com base em (1).

Há seiscentas escolas que procuram explicar a moralidade sem (necessariamente) recorrer a uma base transcendente: biologismo, evolucionismo, tradicionalismo, positivismo, personalismo, contratualismo, sentimentalismo humeano, emotismo, ética das virtudes, neurocientificismo, pragmatismo, utilitarismo, atavismo, egoísmo (Max Stirner), etc. Cada uma dessas escolas procura defender como central algum aspecto da nossa tendência em ver e pautar as coisas em valores e a formular normas para a conduta. Esses aspectos nos parecem todos aplicáveis, sem exceção. Visamos o útil; somos orientados pela tradição e por impulsos atávicos; firmamos contratos, e invocamos um contrato imaginário como base da paz social; somos presa dos instintos; explicamos comportamentos recorrendo a sinapses; padecemos de emoções que nos impedem de cometer atrocidades (ou ao menos nós, que não somos psicopatas ou sociopatas); abominamos o vício; queremos a felicidade e sabemos que a virtude custa esforço; desejamos formar o caráter nas dificuldades, e reconhecemos a preguiça e a inveja. Todas as teorias morais dizem alguma coisa de relevante sobre o fenômeno moral. Só não sabemos dizer se existe uma mais adequada; ou se uma delas descreve o núcleo do agir moral, devendo as outras ser objeto de descarte.

Penso que as escolas citadas — são algumas entre muitas — constituem uma prova cumulativa de que a moralidade é inseparável do homem. Somos seres morais. Construímos regras; submetemo-lhes à abstração, mas também as sentimos em nós; tendemos a fins que sabemos, nós, os aborígenes e os fanáticos e os descrentes, nos trarão benefícios genuínos em semanas, meses ou anos; desmascaramos, sob a capa da virtude, a vontade de cair bem dos religiosos e dos sábios deste mundo; contemplamos a vaidade dos intelectuais; a soberba dos “estudantes de humanas que não ganham dinheiro”; desmascaramos também as virtudes (!) dos que antes nos pareciam perversos e egoístas; desbancamos santos e admiramos ladrões; tentamos descrever a prudência usando um sutil modelo matemático; preocupamo-nos com o livre arbítrio em robôs.

Mesmo que o único consenso seja uma mera ordem jurídica, ou uma tradição odiosa aos olhos dos habitantes do futuro, ou a evolução — porque é difícil afastar o argumento de que a virtude é uma vantagem evolutiva –, teremos prestado homenagem ao caráter moral do homem. O fato de que a moral é inescapável é o único ponto que precisamos conceder. Sem essa concessão, caímos em um absurdum practicum. Essa premissa é o próprio fundamento da moral: a sua inescapabilidade. Mesmo que você rejeite essa premissa, você estará a afirmar que ela deve ser rejeitada por esse e aquele motivo; nesse mesmo ato, você proporá uma nova moral: a da inescapabilidade da escapabilidade da moral. A refutação do relativismo absoluto, que é circular e contraditório, se aplica também à sua nova moral. E mesmo que você, em resposta, afirme a contradição, não estará muito longe de Nietzsche, que propõe uma moral forte e vinculante, e até um moralismo semelhante ao puritano (não é por outro motivo que novas éticas, como o politicamente correto, são extremamente intolerantes, sujeitos às mesmas críticas a que se sujeita a inquisição: estatal, católica e protestante).

Restaria dizer por que é irresponsável rejeitar a inafastabilidade da moral, tout court, dizendo, por exemplo, que é necessário crer em um Deus ou em um fundamento transcendente para sustentá-la. Mas creio que isso tenha ficado claro. Se não, basta uma frase atribuída (porque recortada, e dita por um personagem) a Dostoievsky, a meu ver bastante apropriada para um psicopata: “Se Deus não existe, tudo é permitido“. Basta fazer os cálculos.

 

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(*) Em Vorlesungen über die philosophische Religionslehre (Leibzig 1830), Kant afirma que “existe um absurdum practicum, pelo qual se demonstra que qualquer pessoa que negue isto ou aquilo deve ser um crápula [ein Bösewicht seyn müsste]; e esse é o caso da fé moral”. Bösewicht também se traduz como “vilão”. Uma coisa sabemos, sobre Kant: nem Tomás de Aquino era tão carola.

(**) A expressão é na verdade Umwertung aller Werte, “transvaloração de todos os valores”. A ética de Nietzsche, bastante conhecida, afirma a vida contra o sofrimento e o derrotismo cristão (pietista); a liberdade contra a escravidão; a autonomia contra a vida de ovelhinha, etc etc etc. Sua valorização da aristocracia é tão evidente quanto a picaretagem dos nietzscheanos de esquerda: “Die ritterlich-aristokratischen Werthurtheile haben zu ihrer Voraussetzung eine mächtige Leiblichkeit, eine blühende, reiche, selbst überschäumende Gesundheit, sammt dem, was deren Erhaltung bedingt, Krieg, Abenteuer, Jagd, Tanz, Kampfspiele und Alles überhaupt, was starkes, freies, frohgemuthes Handeln in sich schliesst” (Genealogie der Morale I, 7). Nada mais longe da moral nietzscheana que a indolência, a indiferença e o desprezo pós-moderno pelas virtudes. Nesse sentido, a ética das virtudes (defendida teoricamente por Aristóteles) está muito mais próxima de Nietzsche do que de um escolástico pudico como Duns Scoto.

(***) Lectures on Religious Beliefs, in Lectures and Conversations on Aesthetics, Psychology and Religious Belief, Oxford, 1966; A Lecture on EthicsPhilosophical Review, XLVIII, 1972.

(****) Comentados amplamente na biografia de Ray Monk, The Duty of Genius, Random House, 2012. Cf. os diários: Denkbewegungen: Tagebücher 1930-1932, 1936-1937 (MS 183) .

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41 comentários em “Moral sem Deus

  1. Júlio,

    Gostei do texto e concordo com seu ponto. Acrescentaria na lista de teorias morais uma que é freqüentemente associada ao que poderíamos chamar de “tese da dependência”, mas que poderia (ainda que os fanáticos não aceitem) ser defendida de um “ponto de vista secular”: o direito (ou lei) natural.

    Penso aqui, claro, em John Finnis (um católico fervoroso) que ainda que sustentando uma relação “metafísica” entre Deus e a moral, defendeu que para agirmos moralmente (ou corretamente ou — como ele prefere — razoavelmente) não precisamos de nenhum conhecimento a respeito de Deus. É sintomático que ele termine (e não comece) seu Natural Law and Natural Rights com um capitulo sobre Deus e a Natureza.

    Em suma: nem mais a boa teoria da lei natural está disponível para quem pretenda defender a “tese da dependência”.

    Abracos,
    Horácio.

  2. Excelente artigo, Júlio!
    Creio que tenha apontado brilhantemente a inescapabilidade da moral.
    Você acha que existem preceitos morais absolutos que podem ser provados da mesma forma que a moralidade é inseparável do homem?

  3. Eu não sei dizer, Rodrigo. O artigo é um esboço, e se eu fosse deitar ao papel todos os argumentos, ninguém teria paciência de ler. É como um atalho para uma intuição mais ou menos clara. Procurar a prova de preceitos morais absolutos certamente, ademais, criaria o conveniente de ignaurar uma nova teoria moral, ou então de especificar uma outra já existente.

    Uma coisa é o fenômeno moral, e outra uma determinada moralidade, com regras ou potencialidades claras e distintas (como a “regra de ouro”). Acho que é possível explicitar preceitos quando existe uma base ‘revelada’, que é pressuposto, ou positiva (como o direito). Mas com base na razão pura, a priori, a tarefa talvez esteja destinada ao fracasso. Difícil determinar.

  4. Excelente, Julio. Fazia tempo que não lia uma reflexão tão inspiradora na Dicta. São posts assim – tanto na forma, quanto no conteúdo – que mantem o blog da Dicta como um destino freqüente. Abs, PH

  5. Júlio,

    Você aceitaria como resumo ou conclusão desse seu texto que ‘o homem é um ser moral, mas não sabemos o porquê’?

    Você tem alguma preferência entre as diversas teorias morais?

  6. Pode ser, Wagner, embora o texto tenha várias nuanças que um resumo não captaria. É mais não sabermos qual o fundamento central da moralidade do que não sabermos o porquê do ser o homem um ente moral. Pessoalmente gosto da ética das virtudes, que é pragmática e tira as suas evidências da experiência (Aristóteles fala da observação empírica de ‘como age um homem virtuoso’), e não da razão pura. Repare como a ética das virtudes não explica o que é o bem, a não ser que é uma tendência, uma finalidade; e repare que um ato é virtuoso porque é praticado tendo a ‘excelência’, ou seja, o próprio ato, como fim. É um indício de que a moralidade tem um caráter quase tautológico, circular; e que portanto dizer que o fundamento da moral é a sua própria inescapabilidade não está longe da concepção clássica. Como certos intérpretes de Aristóteles, todavia, não acredito na tese da unidade das virtudes. (Os tomistas levam muito longe as observações de Aristóteles, canonizando-o e dizendo o que ele não disse.) Isso torna difícil, se não impossível, encontrar uma nota central, uma ‘essência’ da ética. Além disso, a ética das virtudes não permite entender o direito, por exemplo.

  7. Caro Júlio Lemos, permita-me fazer dois curtíssimos comentários a este post instigador:

    1) Creio que há duas formas de abordagem possíveis dos fundamentos da moral. Você pode pensar na fundamentação teórica da moralidade com suas seiscentas escolas, seculares ou religiosas, como pode buscar os fundamentos ou origem material/histórica das normas morais, ou seja, pesquisar como elas de fato surgiram na concretude da história. Sob esta perspectiva o que está no fundo ou na base dos grandes códigos morais que legaram as normas e valores que seguimos ainda hoje, mesmo sendo seculares, é uma religião, não? A esmagadora parte das nossas normas morais e valores são derivadas de civilizações do passado que foram criadas por algum mito ou revelação. A religião estava na base de tudo. Mesmo o Direito Romano deriva da religião romana, se é que o tipo de abordagem na linha de Fustel de Coulanges está correto (você pode dizê-lo, pois tem o que nenhum de nós, leigos, temos: atualização bibliográfica). Hoje vivemos num caos de configurações culturais as mais diversas legadas de civilizações do passado, se entendi bem o que Charles Taylor quis dizer em “As Fontes do Self”, mas no fundo e na origem destas configurações o que temos é um mito ou revelação religiosa como pedra fundamental de um vasto edifício de normas e valores.

    Como uma das fontes mais poderosa de valores e normas morais legados à nossa cultura ocidental moderna (ou a mais poderosa) ainda é judaico-cristianismo, o homem ateu, agnóstico, secular acaba vivendo como um “cristão cultural.” Não acredito, por exemplo, que a monogamia estável seja natural no homem (sexo masculino), e inúmeras civilizaçõe e sociedades a desprezaram, então porque ela ainda é a norma, mesmo entre pessoas seculares? Porque foram criados numa tradição judaico-cristã. O que o impele a adotar a monogamia estável, mesmo contra os impulsos, dificuldades e as circunstâncias desfavoráveis, é o superego judaico-cristão, não? Outro exemplo: se o ser humano ocidental passou a ser mais “humano”, como que de fato passou a ser, paulatinamente, na história ocidental, após o advento de Cristo, isto não se deveu a teorias, mas a um fato religioso. Certamente há outras fontes da moralidade, mas a religião é a mais poderosa, pois todas as civilizações partiram dela.

    As seiscentas teorias seculares da origem da moralidade então parecem desconsideram a origem material, histórica e concreta da moralidade e a transformam numa espécie de fantasia (véu de ideias) que encobre a verdadeira origem da moralidade concretamente existente. Ou seja, o que dizem, no fundo, é que o homem quando passou a agir de tal ou qual maneira (quando deixou de lapidar adúlteras devido à ingerência de uma suposta segunda pessoa da trindade) pensava estar obedecendo a um mandamento divino ou a uma norma derivada de um mandamento divino, mas estava apenas obedecendo a causas naturais, contratuais, psicanalíticas, evolucionistas, etc. Se estiverem corretas estas teorias, o que estão a dizer é que o complexíssimo tecido de normas e valores que governam boa parte do nosso comportamento ainda hoje teve origem em grandes enganos.

    2) Você fala da instauração quase inevitável do secularismo, mas em que sentido. Será mesmo esta a tendência mundial? Constantemente, vemos reportagens dando conta, por exemplo, de que o islamismo cresce no mundo (http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u635437.shtml), e só matando aqueles cabeças-duras para tirá-los do islamismo. Com a visita do papa, somos noticiados de que o número de católicos diminuiu no Brasil, mas não porque foram engrossar a fileira dos ateus/agnósticos/seculares, mas sim a dos cristãos protestantes e espíritas. Em números totais, no entanto, os católicos aumentam no mundo – tudo bem que de forma ínfima – mesmo na Europa e na América (http://www.zenit.org/pt/articles/continua-a-crescer-o-numero-de-catolicos-no-mundo) . As seitas e pseudo-religiões, como sabemos, nunca deixam de proliferar. Some-se a isto que as revoluções da tal “primavera árabe”, com as exceções recentes do Egito e da Turquia, vão no sentido da teocratização e não da secularização do Estado, como temos visto. E, sobre a Rússia, têm-se noticiado a crescente aproximação do governo com a Igreja Ortodoxa. Parece que a secularização cresce mesmo entre a comunidade científica, mas as massas…

  8. Vinícius, vamos lá aos dois seus “curtíssimos comentários”:

    1) Sob a perspectiva histórica, as origens da moralidade se perdem na noite dos tempos, para usar a expressão canônica. Se as origens são mitológicas, não são fruto de um fato, uma verdade, mas de uma ‘ilusão’ (ou reflexo humano, demasiadamente humano). O direito romano primitivo, por exemplo, que eu conheço melhor, com fontes gregas, etruscas, mesopotâmicas, diluiu-se na percepção de que eram normas práticas de organização do bem comum, em parte protegidas pelo fado, pelos auspícios, por ritos e cerimônias religiosas; em parte pela pura convenção dos homens. O que os romanos fizeram, aos poucos, foi expurgar o direito desses mitos e supostas origens religiosas, e chamar o direito civil de convenção entre os homens (uma espécie de contratualismo tradicionalista com grande sentido prático) e o direito sacro de imposição dos deuses pelos sacerdotes, com várias subdivisões. É uma mistura que não é fácil de enfrentar. A impressão dos historiadores é que o direito funcionava quase que tautologicamente: é direito porque é direito. A moralidade era confundida com a piedade, o sentido de veneração aos deuses — todos deuses de fantasia! É perigoso fundar a moral na religião antiga porque sabemos que quase nada sobra dela que não seja fantasia — essa fantasia desaparece se a consideramos reflexo do como funciona o homem em sociedade, e perante ele mesmo, e não de deuses existentes. Para um cristão, talvez só sobre um sentido de mistério, e mesmo isso é controverso. O que a tradição cristã ilustrada vê nessa religião é, na verdade, uma infusão de senso comum, um “direito natural”, reflexo imediato de como o homem opera, ou como deve operar de modo excelente, em sociedade. Em termos platônicos, a sociedade opera como opera a alma do homem, “man written large”, na expressão de Voegelin. Se é verdade que as religiões estão em toda parte nas civilizações antigas, e mesmo na moderna (é só ler Kant!, mais religioso que um romano), não há um fundamento heterogêneo que elas possam fornecer. De modo que tudo cai por terra se queremos fundar a moralidade na religião. A crença de operar sob os influxos dos deuses é auto-referente; em termos antropológicos, a religião antiga é uma criação do homem antigo. No fim das contas, a moralidade — em sentido concreto e histórico — é obra do homem. Se Deus a infundiu no homem, essa infusão é indireta, como reza a doutrina do direito natural tomista e outras escolas, como a racionalista (século XVII, por exemplo). A razão humana dá conta de toda virtude natural; Deus não é necessário. A fonte da moralidade são os costumes, os sentimentos, o senso de justiça, cuja apreensão exige apenas a observação do que ocorre em sociedade; e isso tudo é, nos detalhes, mutável e variável, mesmo que um certo núcleo pareça permancer intocado. O que me parece intocado é a inescapabilidade da moral, e não uma forma concreta: cristã, pagã, utilitarista, voodoo, animista, o que for.

    2) Acredito que as estatísticas sobre o aumento, ou ao menos sobre a persistência da religião sejam verdadeiras. Ocorre que o secularismo é uma tendência que independe do crescimento ou decadência das religiões. É uma tentativa fundamentada de não depender de premissas religiosas para construir certos consensos sociais, que em partes são atávicos, tradicionais, consuetudinários, científicos, emocionais, etc. Se dependermos de alguma premissa religiosa, a moralidade será destruída socialmente, embora continue sempre viva por trás das cobertas. E isso não é bom. Bom é manter a fundamentação da moralidade sem premissas religiosas, para que o fundamento continue válido para ateus, agnósticos, e toda a sorte de sentimentos religiosos contraditórios (veja que, se a moral é fundada na religião x, uma das 800 em voga hoje, não é fundada na religião y; a não ser que você sustente algo ainda mais doente, como a unidade transcendente das religiões, de Schuon, o pedófilo favorito dos tradicionalistas, e em parte de Guénon). E a tendência é que o modo de ver o mundo dos ateus e agnósticos prevaleça, mesmo com a conservação da religião por parte das grandes massas. A elite cultural sempre dará o tom; e essa elite, quando não é atéia ou agnóstica, é secular. A Igreja deu enormes passos em favor do secularismo; para começar, ela não favorece a adoção oficial da Igreja como religião de um determinado país. A união entre estado e Igreja é um mal para ambos; e isso já está na doutrina social mais ou menos claro. E é discurso oficial dos pontífices há muitos anos.

  9. O fato é que as nações mais seculares, ou secularizadas, do mundo, vão perecer até o final do século XXI. Motivo: Queda da taxa de natalidade. Decadência é a palavra usada pelos religiosos para referir-se a esse nosso período histórico.

  10. Mas acho que não se pode negar que a Europa, tido como o continente mais secularizado do mundo, vai entrar em colapso. E dois autores, que creio não professam nenhuma fé religiosa, Niall Ferguson e Mario Vargas Llosa, já lançaram seus alertas. Acho melhor dar ouvidos a eles do que dar sonhar com a era das máquinas espirituais de Ray Kurzweil.

  11. Como ninguém sonha com as “máquinas espirituais” de Kurzweil (talvez nem ele), então não faz sentido o seu condicional.
    A Europa pode entrar em colapso, mas não em razão do secularismo. Alguns dos países católicos têm as piores taxas de natalidade. O maior medo desses analistas é o islamismo. Nisto, estou de acordo: não teremos a mesma Europa. Se a Europa do passado não foi capaz de se manter, assim como a velha Cristandade não foi (acabou-se, e não foi por conta do secularismo, que inexistia, mas da tendência natural de mudança de todas as sociedades), que seja transformada. Talvez seja um problema de definição: a minha ideia de secularismo, no contexto do texto, é simplesmente o velho “dai a César, etc”. Não podemos fundar a moralidade em um sistema de crenças específico, seja ele islâmico, cristão ou ateu. O discurso de decadência pode ter seu charme, mas fatos são fatos. Todas as sociedades decaíram. É a normalidade histórica.

  12. Obrigado pela resposta, Julio. Realmente nos deixa com várias pugas atrás da orelha. O perigo que você aponta parece-me estar no momento em que a moralidade institucionaliza-se e pode ser imposta pela força. A partir daí se tornou “norma jurídica”, pois conta com coercibilidade. O Estado secular ou laico, cuja missão é garantir apenas o “mínimo ético”, conforme foi teorizado por Jeremias Bentham, Georg Jellineck, e os caras do iluminismo, busca contornar esses perigos. Neste sentido, penso como você que a secularização é um enorme bem. Creio também, como você observou, que de todas as religiões (pelo menos dentre aquelas do círculo semítico) a que está mais de acordo com ele é a cristã, principalmente na vertente católica (o calvinismo era totalitário, por exemplo). Mas os teóricos cristãos, como ex-Papa Joseph Ratzinger (http://www.logosjournal.com/issue_4.2/ratzinger.htm) vão além e dizem que a verdadeira fonte de inspiração do estado laico é o cristianismo, no que parecem ter razão, se pensamos no “dai a César o que é de César”, na rejeição do poder político por Cristo, no episódio das tentações no deserto, ou na sua rejeição da pena de morte da adúltera (sanção estatal no judaísmo e no islamismo), embora considerasse o adultério algo incorreto.

  13. Olá.

    A Europa, segundo alguns, como Tony Judt, acabou ali por 1914 mais ou menos.

    Mas a linha acima se refere aos comentários anteriores. Sobre o texto propriamente, lembrei-me de quando você disse que os leitores de Lewis podem se sentir diante de um simplório.; cada vez que leio um texto teu me sinto diante de alguém que sempre exalta a razão e a inteligência, mas que é incapaz de usá-las bem quando se lhe apresenta uma oportunidade. Veja que só a tua primeira afirmação, feita sem evidências, não é apenas errada, mas irresponsável. É tão crível quanto a de algum marxista que afirme que a instauração do socialismo é praticamente inevitável – talvez para o bem.

    A crença ou descrença de uma realidade transcendente que dê fundamento à moralidade afeta tanto a nossa existência e os nossos atos que, para continuar no teu terreno literário, o Stárietz Zóssima chega a dizer que prisões e torturas não mudam o caráter de um pilantra, o que só uma conversão sincera de coração contrito faz*. Na taxonomia lemoniana de taras espirituais o Stárietz deve ser, no mínimo, um fanático perigoso.

    Seiscentas escolas! Pode-se escolher, por exemplo, a moral aristocrática de Nietzsche, coqueluche entre os soldadinhos de trincheira da Grande Guerra, e que posteriormente se aconchegou nas fileiras do Nazismo. O problema, dizem que Chesterton teria dito, é que o sujeito tira Deus e coloca alguma besteira no lugar. Até, quem sabe, a ciência da computação, se duvidar.

    Agora vem a parte do MAS.

    Seja como for, eu devo concordar contigo. Não só eu como provavelmente a tradição carola escolástica inteira – não tenho certeza. Aquela cousa de sindérese e tal, você sabe. No momento estudo o apuro dos medievais com a recepção da Ética, inclusive.

    E, olha isso (é de Hayden White, e por algum motivo achei que ~acrescentaria~ algo a esses comentários sobre decadência, mudança):

    “Para Nietzsche, os gregos tinham sido os primeiros a reconhecer quanto a vida humana dependia das faculdades mitopoéticas do homem, de sua capacidade de se dedicar a um sonho de saúde e beleza em face de sua própria aniquilação iminente. A cultura grega, em sua idade de ouro, acreditava ele, desenvolveu-se com plena consciência dos fundamentos fictícios em que repousava. Ele comparava essa cultura a um templo erguido sobre estacas enterradas na lama viscosa da laguna veneziana; isso gerava a ilusão de permanência e auto-suficiência, e portanto permitia que a vida continuasse, mas coloria cada ato realizado dentro do edifício de um contido sentimento da tenuidade essencial da vida, de sua impiedosa finitude.

    Mas a cultura grega não proporcionava fácil evasão para regiões idílicas nem a fuga para longe do caos primordial. Na arte trágica os gregos encontraram um meio de recordar a si mesmos que a cultura humana era quando muito um complexo de ilusões, que era no máximo uma realização delicada, que debaixo dela estendia-se o vazio do qual todas as coisas provinham e ao qual deviam finalmente retornar, que um determinado conjunto de ilusões precisava ser continuamente posto à prova e substituído por novos conjuntos e que só era possível uma vida criativa quando caos e forma fossem abarcados por uma nova consciência de sua mútua interdependência. A cultura grega em sua idade de ouro, sustentava Nietzsche, renunciou ao impulso de encontrar o mundo ideal a fim de gozar os benefícios de um mundo ideal. Os gregos elevaram a vida humana acima de uma barbárie ‘selvagem’, mas não aspiravam a uma idealidade impossível. Alcançaram um equilíbrio precário entre a forma perfeita e o caos total ao manter consistentemente viva na consciência a percepção de ambas as possibilidades.”

    Aliás, essa ideia de repousar a cultura sob fundamentos fictícios lembra muito aquela de significações imaginárias que Castoriadis acreditava que todo regime democrático deveria por à prova e constantemente atualizar.

    *“(…) o castigo verdadeiro, o único real, o único que atemoriza e apazigua, que consiste em se ter consciência da própria consciência. (…) Todas essas deportações para trabalhos forçados, antes acompanhados de espancamentos, nunca corrigem e, principalmente, quase não atemorizam nenhum criminoso.(…) Se algo protege a sociedade, inclusive em nossos dias, e até corrige e transforma o próprio criminoso em outro homem, mais uma vez esse algo é unicamente a lei de Cristo…” (perdão por não citar em russo, que não conheço, nem em alemão, posto que há tradução brasileira – aqui, a da 34)

  14. Louis, citações registradas. (Sim: ou tiram Deus e colocam o Chesterton no lugar.)

    Obrigado, Vinícius.

    PS.: Louis, o Hayden White captou de modo exato (eu diria didático: porque nos faz entender facilmente uma análise difícil e um pouco confusa) o diagnóstico de Nietzsche.

  15. Não é assim tão simples. Eis o que escreveu o Luiz Henrique Lopes dos Santos, professor de Lógica da Faculdade de Filosofia da USP, por ocasião da visita e das palavras do Papa Francisco: “Papa defende Estado laico ‘que valorize a presença do fator religioso na sociedade’. Que tal um curso intensivo de Lógica I?.”

  16. Rodrigo, o Luiz Henrique é ator de teatro. Deixou de ser professor de filosofia da linguagem há anos. (Lógico, nunca foi.)

  17. Caríssimo Julio,

    Seu texto é muito bom. Porém, tenho uma dúvida, que, a menos que seja desfeita, permanecerá como uma discordância.

    A secularização é, sem dúvida, desejável. Como você sabe, mesmo o hard core da Igreja Católica a defende. Mas não vejo a relação entre a desejabilidade (ou mesmo inevitabilidade) da secularização e sua segunda afirmação, de que “insistir em assentar a moralidade sobre proposições religiosas não é apenas um erro filosófico, mas um ato irresponsável.”

    Não consigo entender a relação entre as duas afirmações, e não consigo sequer entender a segunda afirmação, esteja ou não relacionada à primeira.

    Até onde compreendi, você não ofereceu nenhum argumento sobre o problema de assentar a moralidade sobre proposições religiosas (entendendo “proposições religiosas” de forma bem larga). Sobre esse suposto problema, seu único argumento (salvo engano) é o de que, se as premissas (1), (2) e (3) são legítimas e mutuamente excludentes, sua conjunção é falsa. Mas em que sentido elas são “legítimas”? E o que significa dizer que sua conjunção é falsa? Parece-me que, no debate público, a crença em quase qualquer coisa é legítima. E é evidente que as tais premissas são mutuamente excludentes, como você falou. Mas isso não demonstra que as três estejam certas ou erradas.

    É um fato que, nas democracias liberais, cada vez mais pessoas vivem se baseando nas premissas (2) e (3) (sobretudo na (3)). Sem entrar na discussão sobre tendências de frequência ao culto religioso (que , a despeito do que acabei de dizer, permanecem mais ou menos estáveis), não vejo nenhum problema em reconhecer tal fato e, ao mesmo tempo, reconhecer que uma das três premissas que você enumerou está certa e as outras erradas.

    O problema é que a relação entre essas premissas e as ações dos indivíduos é influenciada por inúmeras outras variáveis. Mas isso não anula o fato de que a crença na premissa (1), (2) ou (3) está correlacionada com o “comportamento moral” dos indivíduos.

    Frans de Waal, aquele primatólogo holandês, afirma que a Holanda é, hoje, uma evidência de que as pessoas podem viver sem Deus. E que, por extensão, a frase de Karamázov estaria equivocada. Mas, para afirmar ou refutar uma hipótese como essa (a de Frans de Waal), seria preciso controlar tantas variáveis que o teste se torna impossível. Pessoalmente, creio que a aproximação cada vez maior entre países radicalmente secularizados (no sentido de diminuição da religião em todos os níveis) e políticas de eugenia é uma evidência de que de Waal está equivocado.

    Não sei se fui claro em todas as minhas dúvidas, meu caro, nem na minha discordância. Vou pensar melhor sobre isso e tentar depurar meu argumento. :)

    Um grande abraço,
    Fábio

  18. Em resumo, o que quis dizer é que, sim, acho que a frase atribuída a Karamázov está correta, e nada do que você escreveu me fez mudar de ideia! Mesmo o primeiro comentário do Horácio (sobre Finnis) não contradiz a personagem de Dostoiévski, porque, na prática, todo mundo que aceita a lista de bens naturais básicos da teoria do Finnis é teísta.

    Abraço,
    Fábio

  19. Fabião:

    A conjunção das três (as três ao mesmo tempo) é falsa, porque se uma for verdadeira, as outras duas são falsas. A disjunção das três (uma ou outra ou outra) é verdadeira. Por isso são legítimas: uma delas é verdadeira, e é impossível convencer a humanidade inteira de que *uma* em particular é verdadeira. Se é impossível convencer a humanidade inteira (ou pelo menos uma parte dela, ou a parte mais racional dela) sobre ser *uma* das opções verdadeiras, então a única opção é procurar fundar a moralidade em proposições independentes dessas três. É complicado demais? Acho que agora você concordará comigo…

    Se você afirma a frase psicopata do Dostoievsky (eu digo isso brincando, pois essa, dizem os biógrafos do Charles Manson, era a sua crença básica), então a consequência é: QUEM QUER que não subscreva a tese da existência de Deus está, pela sua própria moral, autorizado a agir de modo perverso, ou seja, como lhe der na telha. Afinal, afirmando o antecedente, “Deus não existe”, temos de presente o consequente: tudo é permitido! Isso é absolutamente suicida. Manson entendia que, sendo ele seu próprio deus, não havendo nenhum deus exterior, tudo lhe era permitido. Acho no mínimo complicado defender a frase de Dostoievsky, que na verdade é uma frase de um personagem.

    O grande problema é pensar que, afirmando a existência de Deus, alguém diz uma “verdade”. Em primeiro lugar, não há adequação entre a coisa e o intelecto porque Deus, se existe, não é uma coisa. Deus seria então a própria verdade. Mas vá provar isso a quem não tem fé! É impossível. Mesmo quem crê, no máximo crê, no máximo diz ter certeza, embora legitimamente não esteja autorizado a ter certeza. Por isso se diz, com sabedoria: “Deixe a teologia, a política e o futebol de lado e vamos falar sobre o que é possível propor sem gerar polêmicas sem fim”. O que gera polêmica sem fim não pode sustentar a moralidade. I’m sorry, but it’s a damn fact of life. Não é opinião minha.

    Veja: a distinção é gnoseológica não ontológica. Não podemos chegar à verdade de 1, 2 ou 3 por demonstração, e principalmente não podemos convencer as pessoas. Podemos fazer valer um direito com os valores corretos a nosso ver, mas não podemos convencer todo mundo sobre Deus. Ainda mais na era da razão ‘livre’. Nessa impossibilidade, temos de convencer as pessoas de que, mesmo que Deus não exista, ainda assim a virtude é o caminho correto, que nos impede de sermos contraditórios.

    A crença em Deus não impediu que na baixa idade média, na alta idade média, na modernidade e hoje todos os crimes imagináveis, todas as atrocidades que o pobre ateu holandês sequer consegue imaginar sem ficar coradinho — fossem cometidos. Alguns, inclusive, sob a alegação de que assim se servia melhor Deus. Não falo do lado do preconceito anticlerical. Isso é história escrita por católicos, protestantes e ateus.

    Um abraço
    Julio

  20. É possível haver uma moral sem a ideia de bem? O que move a ação humana não é sempre *um* bem e, genericamente falando, *o* bem? Ora, mesmo que seja (e repito a palavra mais uma vez) um *bem* aparente, ainda assim é um fim que o agente figura a si mesmo como bom.

    No final das contas, por mais maluco que soe, não consigo deixar de pensar em Pseudo-Dionísio que tomava o Bem como um dos nomes de Deus.

    E por mais que se queira evitar qualquer forma de jusnaturalismo ou de deontologia, acho difícil que alguém consiga explicar por que um assassinato que não seja por legítima defesa é mau ou injusto (e não apenas por convenção social ou jurídica) sem recorrer à ideia de um direito natural e de normas que estão imantadas na realidade das coisas.

    (Parêntese:) Vale lembrar também que há tentativas de se provar a existência de Deus por meio da lógica modal (há até uma tentativa de prova ontológica escrita de maneira envergonhada por Gödel), embora nada definitivo se tire daí. (Fim de parêntese)

    O que faz alguém dizer que “temos de convencer as pessoas de que […] a virtude é o caminho correto” senão uma compulsão natural e até racional? E qual é a origem dessa compulsão pela moral e pela virtude senão o Bem ou Deus? Ou, como quer Steven Pinker, a explicação é mesmo a evolução?

  21. Adriano, não há nada que elimine a possibilidade de uma base para a prudência (sempre contextual, experiencial) em alguma espécie de ordem natural e racional. A virtude é, como sustentam alguns, uma vantagem evolutiva: a coragem, a honestidade, a magnanimidade, etc. São valores que surgem na história, mas que têm uma base nas possibilidades concretas do agir. A ética aristotélica não apela a nada que seja sobrenatural, e nem ao paganismo helênico. E mesmo assim “descansa em fundamentamentos inteligíveis”, na expressão de um autor, creio que Finnis.

  22. “Aristotle indicates several times in VII.11–14 that merely to say that pleasure is a good does not do it enough justice; he also wants to say that the highest good is a pleasure. Here he is influenced by an idea expressed in the opening line of the Ethics: the good is that at which all things aim. In VII.13, he hints at the idea that all living things imitate the contemplative activity of god (1153b31–2). Plants and non-human animals seek to reproduce themselves because that is their way of participating in an unending series, and this is the closest they can come to the ceaseless thinking of the unmoved mover. Aristotle makes this point in several of his works (see for example De Anima 415a23-b7), and in Ethics X.7–8 he gives a full defense of the idea that the happiest human life resembles the life of a divine being. He conceives of god as a being who continually enjoy a “single and simple pleasure” (1154b26)—the pleasure of pure thought—whereas human beings, because of their complexity, grow weary of whatever they do. He will elaborate on these points in X.8; in VII.11–14, he appeals to his conception of divine activity only in order to defend the thesis that our highest good consists in a certain kind of pleasure. Human happiness does not consist in every kind of pleasure, but it does consist in one kind of pleasure—the pleasure felt by a human being who engages in theoretical activity and thereby imitates the pleasurable thinking of god.”

    (Richard Kraut in http://plato.stanford.edu/entries/aristotle-ethics/)

  23. A natureza autocontraditória da negação da moral é uma propriedade comum de toda moral concreta; não é o seu fundamento. O fundamento precisa ser encontrado na moral concreta.
    A inescapabilidade da negação da moral decorre da definição implícita adotada no raciocínio. É uma propriedade e, para demonstrá-la, faz-se uso da redução ao absurdo. A frase do texto que contem a demonstração é “Mesmo que você rejeite essa premissa, você estará a afirmar que ela deve ser rejeitada por esse e aquele motivo; nesse mesmo ato, você proporá uma nova moral: a da inescapabilidade da escapabilidade da moral. ” A definição implícita, que abrange todos os exemplos do texto, é a da moral como juízo prático. Como negar a moral é um juízo prático, a negação da moral é em si mesma moral. Portanto, a contradição da negação da moral é uma propriedade e não uma premissa ou fundamento da moral.

  24. Julius,

    Obrigado pela resposta. Antes de mais nada, devo dizer que tive muito prazer ao lê-la (e o texto original também). De fato, entendi melhor alguns pontos que, talvez por uma leitura afoita, não me haviam ficado claros.

    Só para esclarecer (porque posso ter me expressado mal), eu não quis dizer que indivíduos que aceitam a premissa (1) sejam melhores do que os que aceitam (2) ou (3). Ateus podem ser pessoas excelentes. Religiosos podem ser assassinos bárbaros. Se não por inúmeros outros exemplos, alguns dos quais você bem lembrou, eu mesmo seria a prova viva de que é possível aceitar (1) e ser uma pessoa má e pouco virtuosa.

    Porém, e não sei se você concorda ou discorda desse ponto, continuo achando que a variável “fundamento da moralidade” (digamos que seja uma dicotômica, 1=crê em Deus, 0=Não crê), teria, ceteris paribus, algum impacto positivo sobre o comportamento dos indivíduos. O problema é que se trata de um impacto probabilístico, o que não torna possível afirmar que quem crê em Deus seja melhor ou pior do que quem não crê.

    Mas, independente disso, e deixando de lado partes de sua resposta que não sei se entendi (por burrice minha mesmo), acho que nossa divergência se dá em torno da ideia de que, “se Deus não existe, tudo é permitido”. Não vejo como isso seja psicopatia. Pelo contrário. Se eu não acreditasse em Deus, não veria por que não ser mau. E ainda não vejo. Então, eu inverto o ônus e lhe pergunto: se Deus não existe, por que ser bom?

    Para mim, no limite, qualquer sistema moral que não repouse num fundamento metafísico não pode responder a essa pergunta. E, rejeitando um fundamento metafísico, não vejo como não cair em alguma variante do utilitarismo. Não é só Ivan Karamazov quem o diz. Como você bem sabe, essa ideia é velha e, desde São Paulo, foi repetida por muita gente (Auden, p.ex.). Até mesmo alguns ateus, como Alex Rosenberg (o autor daquele Atheist Guide to Reality), o reconhecem.

    Muito bem. O problema é que, como Marco Ridenti colocou no Facebook, o utilitarismo não defende plenamente a dignidade humana. Isso não é apenas um diagnóstico de religiosos. A justice as fairness, de Rawls, é construída em oposição ao utilitarismo.

    Por que gastar recursos com doentes incuráveis? Por que não eliminar recém-nascidos incapazes de contribuir para a sociedade? Você mencionou a possível vantagem evolutiva dessa compaixão extrema. Mas esse é um argumento funcionalista, que, por definição, não pode explicar a escolha individual. Você também mencionou o budismo, mas eu incluiria o budismo dentro dos “sistemas que repousam em algum fundamento metafísico”.

    Creio que, na perspectiva de um ateísmo radical, para o qual TODA realidade se resume a férmions e bósons, não há como responder a essas perguntas (sobre por que gastar com doentes incuráveis, etc.). Não apenas não há, como, de fato, a resposta pode ser negativa. Tome-se como exemplo Peter Singer e seus discípulos Giublini e Minerva (aqueles famosos por defender o aborto pós-nascimento).

    Um abraço,
    Fábio

  25. Vou tentar responder com alguns arremedos de razão. Ando pensando a respeito desde que assisti a uns 10 ou 15 vídeos do Craig e li algumas coisas dele e de alguns ateus militantes há mais ou menos um ano. Não foi a minha meta no post; talvez você tenha percebido que não pretendi fornecer um fundamento para o quid da moral, mas para a existência da moral.

    Pense no homem primitivo. Ele terá centenas de preconceitos, costumes, modos de vida que aprendeu com os pais e com a sua comunidade. Entre ele e os outros animais há muito em comum: lutam para sobreviver, etc. Esse homem pergunta pelo fundamento do seu agir? Não creio; ele simplesmente age. Nós, por outro lado, recebemos, junto com uma moral, uma tradição de justificativas.

    O lado cristão está em grande vantagem; também, penso eu, o budista, o judeu e o muçulmano. Mas o cristão especialmente: são vinte séculos de discussão e ‘fundamentação’ da moral. Nossas discussões morais, mesmo entre os ateus, são um desdobramento direto das discussões antigas, medievais e modernas sobre o fundamento da moral. Aqui, não estamos falando de uma ética, mas de uma filosofia da ética. Para minha faxineira, é muito ‘natural’ o que é certo e o que é errado; e, creio, mesmo para mim e para você, que certamente colocamos de lado a ética filosófica na hora de agir. Sabemos muito bem o que é certo e o que é errado independente do que julgamos estabelecer como justificativa filosófica para nossa ação.

    Agora pensemos no ateu no mais extremo do continuum. Em primeiro lugar, é-lhe impossível ver o seu pai como um ajuntamento de moléculas. Mesmo o estranho que lhe cruza o caminho é um estranho, e não um amontoado de moléculas experimentando reações químicas. Ele age como se a pessoa fosse uma pessoa. (Estamos excluindo do nosso exame o psicopata; mas ele voltará). Independente do que pensa sobre a moral — e digamos que ele seja coerente com o que você julga ser a inexistência de um fundamento metafísico para a moral –, ele tem claro o que é o bem e o que é o mal. Basta que surja a ocasião de decidir; se ele for trapasseado em um concurso público, invocará a moral como fundamento para a sua indignação. “Isso foi uma… desonestidade!” Se ele for um professor de “ética da transgressão”, ao dar aulas dirá: “não há fundamento para a moral!” E no entanto, lá está ele reclamando da ‘sacanagem’ que lhe fizeram.

    Qual o problema? O nosso ateu não encontrou a sua tradição de fundamentação sólida, filosófica, da moral. Como quase todos os seus pares ateus, mesmo os ‘filósofos’, está abandonado nesse mundo em que sabe o que é certo e o que é errado “when his ass is on the straight line” (não vou traduzir…), quando a sua mulher o trai, quando o chefe não lhe dá um aumento que considera justo; e por outro lado não sabe dizer porque há um certo e um errado.

    Não há uma “doutrina atéia” porque não há uma tradição ocidental de fundamentação da moral sem recorrer a Deus e a nenhum outro critério imaterial. Surgiu esse ambiente, ouso dizer, apenas há 20 anos, com a ampla circulação das ideias que rondam em torno de um ateísmo. Eu sou contrário à criação de uma doutrina atéia, porque seria tentar “imitar o adversário” quando isso não faz sentido.

    O ateu no século XXI está como o homem primitivo, mas com um agravante: embora saiba o que é certo e o que é errado (sem grandes doutrinas, muito embora, e sem nenhuma unidade que escape à sua vida pessoal), ele tem consciência de que precisa de uma fundamentação. O homem primitivo simplesmente agia. A tradição ainda não lhe exigia justificativas. Mas agora exige. Seus adversários no campo intelectual estão muito mais bem preparados, porque foram séculos e séculos de apologética. Mesmo os budistas estão muito bem amparados, porque vieram com 500 anos, e talvez 1500 anos, se contarmos os hindus, de vantagem sobre os cristãos. Um budista não só sabe o que é certo e o que é errado, como creio que todo ser humano saiba em sua vida pessoal, como tem milênios de tradição de justificativas em seu favor. O ateu não tem.

    Meu propósito com o texto foi dizer que, por cima de todas as doutrinas filosóficas sobre a moral, transcententes, imanentes e anti-metafísicas, há um meta-enunciado lógico que garante a inescapabilidade da moral do ponto de vista prático, que coloca a cabeça do teórico e do prático sob a espada de Dâmocles da contradição. Muito antes de falarmos em Deus — porque a ordem gnoseológica vem antes, na ordem do conhecimento, da ordem metafísica –, já falávamos em justiças e injustiças em nossas vidas pessoais. Antes de haver uma ordem de justificação budista, em parte imanentista, da moral, já havia uma ordenação costumeira das condutas que essas comunidades herdaram. A justificação, tanto no caso cristão, quanto no caso pagão, veio depois.

    E é essa a tarefa que cabe aos que, independentemente de suas crenças, pretendam colocar ordem na casa num mundo pluralista, numa sociedade secular que convive com os mais diversos sistemas de crenças. Essa tarefa é dar um fundamento para a moral que prescinda das crenças, e portanto das éticas, concretas. Senão o mundo vem abaixo. Na verdade eu creio que a justificativa é útil, mas não necessária. Em nossas vidas pessoais, sabemos o que é sacanagem e o que é reto. O homem primitivo sabia — é uma opinião pessoal, mas que se apóia em prova cumulativa — e nós sabemos que sacanagem é sacanagem, e bondade é bondade. Senão não haveria sociedade.

    Quando você diz que, sem Deus ou uma justificativa transcendente específica, tudo é permitido, é porque você julga que, ao não ter uma justificativa filosófica, o indivíduo vai crer que tudo é permitido. É um problema de experiência; um problema existencial. Mas 99% da humanidade está shiting and walking para uma justificativa, transcentente ou materialista, para o agir moral! Ela simplesmente agem! E dizem que algo é injusto porque é sacanagem, e dizem que fulano é um herói porque é um herói e pronto. Não sabem nada de revelação, nada de moral filosófica, nada de virtudes. E nunca vão se preocupar com isso.

    A nossa exceção é um psicopata. Quando o psicopata não crê em Deus, crê que tudo é permitido. O ateu até pode ter a mesma crença que ele. Mas quando surge a oportunidade de decidir, o ateu dá um passo atrás e diz: isso é sacanagem. O psicopata, por não ter empatia, diz: “quer saber? quero ver o que acontece se eu enfiar essa faca nesse bebê”. Tudo aquilo que se move contra a vida em sociedade diretamente, contra o outro, é visto como repugnante. O nosso Peter Singer acha lindo escrever odes sobre a ausência da importância da vida de um feto; mas peça para ele praticar um aborto que seja! Quando surgir diante dele uma questão moral que envolva a sua vida, a sua família, e mesmo de um estranho, abandonará a sua teoria. A não ser que seja um psicopata. O pesonagem diz: “se Deus não existe, tudo é permitido”. O psicopata ateu não diz: “faço o que quiser”, mas vai lá e faz. O psicopata religioso — há muitos soltos por aí, como no último massacre na escola no Rio de Janeiro — crê que é vontade de Deus que ele elimine sofrimento matando crianças; e vai lá e faz.

    Não vamos confundir a fundamentação filosófica da ética com moral prática. É justamente essa distinção que explica porque, entre criminosos passionais, e mesmo psicopatas, a religião é indiferente. Eu aprendi isso com um ateu: Anthony Daniels. Um outro nome importante: Georg Steiner, que não crê em Deus, mas crê na beleza e na virtude. Isso será a regra no futuro, ou pelo menos existirá em pé de igualdade com aqueles que dispõem de uma apologética de 2000 anos a seu dispor. As justificativas filosóficas para uma moral sem Deus já existem, mas não estão estabelecidas em tradição. Aos poucos examinarei o assunto; não sou nenhum especialista. Mas a maior justificativa, a meu ver, é a da inescapabilidade da moral, sob pena de autocontradição; pois “não há moral” é também uma moral.

  26. “Não há moral” é também uma moral”.
    Será?
    Será que a moral não pressupõe um convencimento por algo que não seja a força (ou seja, um argumento)? Se eu digo: não há moral, e sim poder, força, violência, eu não estou destruindo a possibilidade de que vigore uma moral?
    No mais, muito bom esse comentario no. 27.

  27. Gunther, é uma boa pergunta. Não sei se há uma resposta fácil. Estou convencido da verdade de uma observação de Niklas Luhmann em seu livro sobre o poder: a força, a violência, têm um custo muito alto. O poder em larga escala é exercido sempre, historicamente, pela ameaça de coerção, e nunca pela coerção direta. Empregar a força é, de certa forma, uma admissão de fraqueza. E aí entra a moral, como justificativa para o poder sem uso necessário, mas apenas circunstancial e esparso, da força, da coerção.

  28. Acho que o autor do texto confunde a origem da moral com a origem da fundamentação da moralidade (ou rcionalização, talvez). A Igreja não diz que para atuar de maneira moralmente correta é necessário aderir formalmente e racionalmente ao credo cristão, mas sim que a lei natural está inscrita no coração dos homens, mesmo entre aqueles que nunca ouviram falar de Cristo. Me parece que a posição cristã é essa: o homem é capaz de distinguir o certo do errado independente de ser cristão, monoteísta, politeísta ou ateu, mas a origem dessa capacidade humana é divina. E nesse sentido, não importa muito o quanto a neurociência, por exemplo, avance no sentido de “desvendar” os mecanismos que induzem o homem a agir moralmente. Concluir que a água chega na torneira por um encanamento “oculto” não prova nada contra o fato de que a mesma casa foi projetada e construída por alguém.

    Abraços!

  29. Desculpe, Julio, lendo os comentários fiquei em dúvida se de fato você faz a confusão que sugeri. Acho que não. Mas não sei dizer se a tese contra a qual você escreveu de fato existe. Entendi que o teu diálogo não é apenas com a cristianismo, mas acho melhor particularizar para tornar o diálogo possível. A Igreja não ensina que a moralidade esteja assentada sobre proposições religiosas, mas sim que ela está assentada na própria natureza humana. O que talvez seja correto dizer é que, para a Igreja, o que está fundamentado na fé é o “sentido” da ação moral. Um homem vai continuar agindo moralmente sem crer em Deus? Possivelmente. O filho dele também? Possivelmente. Mas quanto tempo vai demorar para que esse mesmo homem passe a perceber essa moralidade “natural” como um obstáculo natural? Se todos nós concordarmos que nossos impulsos sexuais são “naturais” e frutos, por exemplo, da evolução, poderíamos também concluir que, se eles estiverem atrapalhando, seria lógico agir no sentido de erradicá-los. Nesse caso, por exemplo, um homem poderia recorrer a uma castração. Na hipótese de que cirurgia (ou hipnose) semelhante fosse possível para a eliminação da consciência moral, do “instinto” moral, o que deveria impedir um homem de querer tornar-se um psicopata para, por exemplo, conquistar sem dor na consciência um objetivo almejado às custas de ações imorais? Essa pergunta provavelmente seria impensável para o homem primitivo, porque, para formulá-la, esse homem precisaria estar em 2013 primeiramente questionando a necessidade de Deus como fundamento da moralidade. Mas, uma vez posta a questão da inexistência de Deus, torna-se surpreendentemente mais necessário do que nunca explicitar o “sentido” (não a origem prática) divino da moralidade. A pergunta não é “por que agimos moralmente?”, mas sim “por que deveríamos agir moralmente?”.

  30. Carlos, particularize quanto quiser; e agradeço seu comentário. Mas prefiro não discutir com premissas teológicas. Julgo que assim mudamos de tema. Mas vou pensar nessa objeção final, embora creia que ela já esteja respondida no meu comentário maior acima.

  31. Julio, o problema de não querer discutir com premissas teológicas é que toda a tua argumentação se faz “contra” uma suposta premissa teológica. Se não esbarrar na teologia, ao menos para contestá-la, será difícil evoluir o argumento.

    Algumas questões levantadas até aqui são:

    1- A capacidade de distinguir o certo do errado independe de crenças religiosas. Com isso concordamos nós dois e a Igreja Católica.

    2- De onde vem essa capacidade (que independe da formalização de um credo)? Para mim ela tem origem em Deus, e não seria necessário apoiar-se unicamente na Revelação para chegar a essa conclusão, mas também não acho esse ponto crucial para a conversa.

    3- Uma vez constatado que somos capazes de agir moralmente, distinguindo o certo do errado, independente de fundamentação teológica ou filosófica, o que motivaria um homem que fizesse essa reflexão e saísse, por assim dizer, da zona de inconsciência a respeito das próprias decisões, a continuar agindo moralmente bem, mesmo quando a correta ação fosse fonte de incômodos, inconvenientes e perdas? Não me parece certo sugerir que todos que se sentem “tentados” a agir mal sejam psicopatas.

    Imagine um funcionário que vislumbra a possibilidade de desviar dinheiro da empresa de maneira “segura”, sem chance de ser descoberto. A consciência acusa aquilo como um erro, mas a possibilidade de enriquecer rápido e sem risco é “tentadora”. Imagine também que esse funcionário seja dado a reflexões filosóficas :) e resolveu concluir que a consciência moral é apenas fruto da convenção social oriunda de velhas crenças cristãs, ou reflexo biológico fruto da hereditariedade, da evolução. Esse homem não é um psicopata. O que o impediria de decidir encarar esse freio moral como um estorvo, um obstáculo a ser superado em favor de um ganho maior e mais prático?

    Não sei, posso estar enganado, mas nós poderíamos dar mil e quinhentos anos de prazo para o florescimento de uma filosofia moral ateísta e mesmo assim não teríamos, no fim, uma resposta capaz de ser absoluta. Todas elas estariam necessariamente fundamentadas em características biológicas e / ou sociais, que poderiam ser soberanamente ignoradas por um indivíduo consciente dessas mesmas teorias, sem que ele sentisse por isso um pingo de arrependimento, sem que o arrependimento fosse realmente necessário.

    Ou seja, quanto mais inconsciente, menores as chances de um indivíduo ignorar propositalmente e sem remorso uma regra moral. Quanto mais pretensão de consciência da origem e sentido da moral, maiores as chances de se tornar um lunático ou um pilantra (justamente por sentir-se capaz – e até no dever – de superar a moral), a não ser que ele conclua em favor de uma origem e um sentido divinos, ou seja, a não ser que ele conclua que ao agir mal estará ferindo a ordem sobrenatural que é fonte mesma da sua existência e da sustentação do universo, causem danos maiores que os meramente materiais e que seus erros vão clamar por justiça mais cedo ou mais tarde. Não me parece coincidência que um certo desprezo pela moral tenha prosperado entre os marxistas e seja até mesmo uma característica daquela corrente de pensamento. Eles julgam ter consciência da origem e fim (imanentes) da moralidade, e por isso mesmo são capazes de ignorá-la quando conveniente.

    Abs!

  32. CORRIGINDO: “a não ser que ele conclua em favor de uma origem e um sentido divinos, ou seja, a não ser que ele conclua que ao agir mal estará ferindo a ordem sobrenatural que é fonte mesma da sua existência e da sustentação do universo, que seus erros causarão danos maiores que os meramente materiais e vão clamar por justiça mais cedo ou mais tarde. “

  33. Carlos, meu ponto é que, se todos precisamos dessa crença que você menciona — “que ao agir mal [fulano] estará ferindo a ordem sobrenatural que é fonte mesma da sua existência” –, como você pretende, então vale a frase: “se Deus não existe, tudo é permitido”. Respondi a essa objeção em dois comentários acima.

    O assunto não é uma fundamentação de uma crença determinada (no seu caso, o cristianismo), mas a fundamentação da moral na ausência dessa crença, ou melhor, por cima de todos os sistemas de crença, com ou sem um criador. É um trabalho a ser estendido, porque o que temos ainda é insuficiente; falta uma tradição filosófica que dê conta disso. Os primeiros filósofos cristãos, como Tertuliano, argumentavam como crianças recém-desmamadas. Agora compare Tertuliano com Alberto Magno, que aparece ~1000 anos depois. Mas, como eu disse, o problema não são sistemas de apologética para determinadas crenças, mas um fundamento para a moral — também o porquê do agir moral — independente. Esse fundamento está lá, porque o fenômeno moral é constante na história. Um fundamento metafísico é uma invenção recente. O seu argumento supõe que o antecedente é verdadeiro: dado que existe um fundamento metafísico, então devemos dar conta dele, e sem essa explicação a moral não tem fundamento. E sempre esbarramos em um belo problema: a filosofia não contribui com conhecimento (não é uma ciência), mas apenas com explicações daquilo que temos por evidente. Mesmo a metafísica se apoia em “evidências”; mas as únicas premissas metafísicas inquestionáveis, desde que não se aceite o nominalismo ou algum argumento contraditório, são o princípio da identidade e de não-contradição. Isso não é suficiente para uma fundamentação da moral; e é por esse motivo que a ética trabalha com premissas completamente distintas, cujo tema é a razão prática. Nos textos aristotélicos, na leitura mais filologicamente cuidadosa, as virtudes não têm unidade ou fundamento metafísico (Aristóteles nem sabia o que era isso). A experiência em comunidade, na pólis, — o observar como agem os homens virtuosos –, é o único apoio sobre como devemos agir. Esses homens virtuosos suscitam admiração, seus atos são belos, e portanto dignos de imitação. E voilà, a ética está justificada, pois traz uma vida plena — porque aqueles homens são plenos, ou parecem ser. Dizer que esses homens agem assim porque estão possuídos pela divindade é por sua conta e risco.

    Se o seu funcionário será feliz com a vantagem ilícita que obterá: eis um dilema para ele. Pensar que a ordem sobrenatural lhe exige um comportamento x naquela circunstância angustiante, diz o cardeal Newman, dificilmente vai ajudar se ele não tiver os hábitos corretos. A virtude é prática, não discussão teológica. A filosofia não consola, e não empresta fundamentos práticos a ninguém. Então por que devemos agir bem? Ora, porque observamos, na sociedade, que o heroísmo vale a pena. O cidadão comum salvou a criança de um incêndio — e no jornal declara que não crê em Deus. Outros passaram batido ou ficaram com medo. Quase ninguém vai agir como herói, mas o ideal está ali, e independe da crença em um fundamento metafísico.

    Para mim, toda essa tradição apologética em moral, além de não convencer quem não quer ser convencido de antemão, é só um discurso bonito. Os heróis e os covardes podem até se inspirar por ele, mas não é ele que os move. É preciso tirar toda essa carga de “wishful thinking” doutrinário, que acredita ingenuamente que essas palavras criam a realidade da retidão. Não criam. Na experiência de Anthony Daniels, entre criminosos passionais e psicopatas, a religião — a crença em um fundamento metafísico para a moral — é um dado aleatório.

  34. Duas coisas que considero fundamentais nessa discussão:

    “1- A capacidade de distinguir o certo do errado independe de crenças religiosas. Com isso concordamos nós dois e a Igreja Católica.”

    Bom, Carlos, eu não concordo. Ao menos não da maneira como é sugerida por você (posso ter interpretado errado) essa capacidade de distinção. Considerando um ser humano em sua plena capacidade cognitiva é evidente que tal ser humano é capaz de distinguir eventos que são rotulados pela linguagem de “agradáveis” e “desagradáveis”. Mas entra a questão “para quem?”. O discernimento do bom e mau particulares – que pode ser estendido para um universal no caso de coisas como danos físicos, dor, enfim – não são um norte moral absoluto. Nietzsche tratou disso à exaustão. Bem e mal alçados de sensações particulares são um ‘non sequitur’. O fato de o tapa causar dor em que o recebe não vem atrelado metafisicamente a um “erro” ou “dano” a quem dá o tapa. A composição dos eventos subsequentes hipotéticos (reação, julgamento alheio, etc) é que está servindo para tentar fundamentar uma moral. E aí estamos incorrendo num ‘a posteriori’. A moral é, inexoravelmente, subjetiva, com ou sem Deus. Se fosse objetiva o tapa sequer poderia ser dado. Certo e errado, em termos morais, dependem de uma crença metafísica. Chamar isso de crença religiosa ou não vai do gosto do freguês.

    “Mas a maior justificativa, a meu ver, é a da inescapabilidade da moral, sob pena de autocontradição; pois “não há moral” é também uma moral.”

    Julio, esse é um ponto interessante. Segue a lógica do “jogo sem regras tem uma regra: não ter regras”. Mas se a moral trata das interações entre seres e do juízo de valor que se faz dessas interações a questão não é “não haver moral”, mas sim “não haver moral absoluta”. Há sim várias morais. Se você quer chamar uma miríade de regras de regra, também vai do gosto do freguês. Seria mais uma condição existencial metafísica do que uma moral, mas tudo isso é semântica.

    Abraços.

  35. Euclides, parte do que você escreveu me fez lembrar do motivo da minha preocupação. A preocupação filosófica, muita vez obsessiva, com a fundamentação da moral — possivelmente uma herança tão moderna quanto escolástica — pode ser uma faca de dois gumes. Para o lado religioso, leva a afirmações perigosas, se não psicopáticas, como “se Deus não existe, tudo é permitido”, uma mensagem que, na mão de um inescrupuloso, vale como permissivo moral para a perversidade. Para o lado secularista, aos debates sem fim sobre se bem ou mal são relativos ou absolutos. Tudo isso cai por terra na vida real. Sem a moral, nenhuma reclamação, nenhuma atividade positiva é possível; ficamos emperrados, obrigados a aceitar todas as ofensas, e sem justificativa imediata (note bem) para o nosso agir. E desprotegidos, porque sem moral cai tudo o que é indicativo e normativo; e a sociedade desaparece sem esse norte. A moral é “subjetiva” até matarem a nossa mãe, ou formos parar na cadeia ao lado de um homem perverso, etc. Se uma tragédia dessas acontece, ou mantemos a nossa crença na subjetividade da moral, e aceitamos essas injustiças (dizendo que o assassino da mãe tinha lá as suas razões, e que este homem que acabou por ficar encerrado com você na mesma cela está autorizado a abusar de você); ou somos obrigados a reconhecer que nossa posição filosófica é um estorvo, e que no fim das contas sabemos muito bem o que é o mal e o que é agir bem, embora critérios claros não possam compor um sistema proposicional completo e consistente. A moral prática não é subjetiva. É um encontro entre todas as perspectivas individuais, com um norte que as transcende. Sem isso, não há justiça, não há motivo nenhum para reclamação, indignação; o regime político mais sanguinário, a pedofilia, a fraude em concursos públicos estão subjetivamente — e portanto objetivamente! — justificados.

    Lembre-se que fiz a distinção entre fundamentação filosófica da moral e moral como prática. A primeira é controversa, mas a segunda é um pressuposto da existência em sociedade. Por cima da variabilidade das morais particulares, há uma moral tautológica: faze o bem e evita o mal porque o bem é bom e o mal é mau. O conteúdo de bem e mal variam de acordo com as circunstâncias (daí a ideia da prudência em Aristóteles), mas a tautologia permanecerá sempre acima das polêmicas filosóficas e do subjetivismo. Gosto da formulação do Steven Pinker, que fala em “perspectivas compartilhadas“. Em outro lugar, ele diz: “Morality, then, is not a set of arbitrary regulations dictated by a vengeful deity and written down in a book; nor is it the custom of a particular culture or tribe. It is a consequence of the interchangeability of perspectives and the opportunity the world provides for positive-sum games.”

  36. A preocupação filosófica com a fundamentação da moral existe desde que existe filosofia. É, aliás, o que você está tentando fazer, fundamentar filosoficamente a moralidade.

    A frase do personagem do Dostoiévski não é uma afirmação perigosa, é uma constatação advinda da suposta inexistência de consequências últimas para os nossos atos mundanos. O problema dessa frase é que, se tratando do comportamento humano, sem Deus ou COM Deus “tudo é permitido” – se não o livre-arbítrio iria para o saco. A diferença é se você paga a conta ou come de graça.

    Em termos secularistas não existe “debate sem fim” sobre a relatividade de bem e mal, há consenso. Se não há um sujeito transcendental ditando regras comportamentais, se não há uma objetividade que limite determinadas ações (como por exemplo não podermos voar – até porque se pudéssemos haveria discussões morais sobre se é certo ou não levantar voo), bom e ruim são afetações individuais.

    Sim, sem moral nenhuma reclamação é possível, por isso mesmo eu disse que a questão é não haver “moral absoluta”. Se existem morais subjetivas regulando ações de sujeitos e esses sujeitos se submetem a uma convivência em grupo regida por normas legitimadas pelo uso da força, reclamações são possíveis, fundamentadas exatamente no ponto que você argumenta: na prática.

    Quando matam nossa mãe a moral continua sendo subjetiva. A morte da mãe de um sujeito só afeta o sujeito (se é que afeta) e quem se sente afetado. Se sua mãe morrer assassinada isso é um mal para mim? Para quem matou? Só se eu tiver algum laço afetivo com sua mãe ou se o assassino sofrer alguma retaliação. E se vamos para cadeia ao lado de um homem perverso, primeiro de tudo é preciso que você conceitue perverso. E perverso com quem? Com todo mundo? Bom, mesmo que seja, a moral prática continua sendo subjetiva. Se é mau para um sujeito ou para milhões (sociedade), serão os sujeitos afetados a definirem padrões comportamentais aceitáveis nas interações. Não entendi o seu “norte que a transcende”. Você acredita ou não em moral absoluta? Acredita ou não em Deus?

    Pelo modo como você aborda os três exemplos que cita (regime sanguinário, pedofilia, fraude em concurso) me parece que você acredita em bem e mal absolutos, certo e errados transcendentais. Essas ações não podem ser justificadas nem “desjustificadas” , elas podem sim ser endossadas ou coibidas por sujeitos. Mas jamais objetivamente, elas apenas entram no espectro de análise que pesa ônus e bônus sociais advindos dessas práticas.

    A “moral tautológica” que cita é uma espécie de imperativo categórico que nada diz a respeito do bem e do mal absolutos. Novamente, quem dá o tapa faz um bem a si mesmo e um mal a quem apanha – pelo seu exemplo, a pessoa pode dar o tapa contanto que evite apanhar, assim estará obedecendo ao imperativo. E em termos gerais o Steven Pinker está certo na frase que você cita, embora ele não entenda nada de filosofia moral. Mas é interessante citá-lo, porque ele é um dos que tentam justificar coisas como o infanticídio através de explicações psicológicas evolucionistas (http://www.gargaro.com/pinker.html). Uma espécie de neo-racionalismo que tenta encontrar objetividade moral na imanência substituindo Deus por teorias supostamente científicas.

    Enfim, para onde quer que vá nosso debate precisamos estabelecer um ponto aqui: não existe moral objetiva. Em qualquer caso. Se houvesse nem precisaríamos estar discutindo, nenhuma normatividade nas relações entre indivíduos seria necessária. Estaríamos num paraíso moral. Toda moral é subjetiva, seja ela relativa ou absoluta. E essa é a questão principal que não ficou clara para mim quanto ao seu posicionamento filosófico.

    Abraços.

  37. Euclides: eu não faço a mínima ideia do que seja “subjetivo”, além de um chavão da filosofia continental contemporânea. A dor é percebida por um sujeito, mas sua base é objetiva. A morte, a agressão, são fatos objetivos. A percepção, na análise moral, não tem qualquer relevância se está desvinculada do fato que gera (ou permite) a percepção.

    Minha tentativa era pensar com lógica e experiência, diretamente, e não com termos batidos. Se você não trouxer à discussão a mesma experiência que todo ser humano tem ao pensar moralmente, não é possível chegar a nenhum tipo de entendimento. Novamente, pouco importa no que acredito.

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