Muito Além do Mito

Filme: Sete Dias com Marilyn

Marilyn Monroe morreu em 5 de agosto de 1962 com apenas 36 anos. Neste curto período de vida, fez dezenas de filmes com alguns dos maiores diretores do cinema americano como John Huston, George Cukor, Billy Wilder, Otto Preminger e Howard Hawks. Contracenou com Bette Davis, Cary Grant, Lauren Bacall, Robert Mitchum, Ethel Merman, Jack Lemmon, Clark Gable, entre outros. Tal currículo respeitável, porém, é ofuscado por sua beleza extraordinária e vulnerabilidade tocante, aparente inclusive em inúmeros retratos por fotógrafos de renome como Richard Avedon, Cecil Beaton, Henri Cartier Bresson, Milton Greene e Eve Arnold. Entre astros que caíram no esquecimento ou que são celebrados apenas em grupos diminutos de cinéfilos, Monroe continua viva no imaginário de homens e mulheres, mesmo cinquenta anos após sua morte.

Sua história, como muitas em Hollywood, é trágica. Nascida Norma Jeane Baker em 1926, nunca conheceu o pai e, com a mãe internada em um hospício, passou a viver em casas de parentes e orfanatos – até se casar, ainda adolescente, para fugir do controle do Estado. Trabalhava em uma fábrica durante a guerra quando foi descoberta por um fotógrafo. Tingiu o cabelo castanho, fez uma cirurgia plástica muito bem-sucedida no nariz e mudou o nome para Marilyn Monroe. Teve três casamentos fracassados e uma série de abortos naturais. Vivia sob a influência de álcool e calmantes. Suicídio ou não, até hoje as circunstâncias de sua morte são suspeitas (o patologista não encontrou traços das cápsulas do barbitúrico responsável pelo óbito em seu estômago, ela possuía hematomas no corpo e os depoimentos de sua empregada são contraditórios).

Abordar toda a sua vida ou até mesmo a mera construção de sua persona – até que ponto ela se fazia de burra porque era o esperado, aquilo que garantia seu sucesso comercial (e, consequentemente, maior poder de decisão em produções futuras)? – fugindo de qualquer caracterização caricata, infinitamente repetida em diversos meios, ou da conclusão simplória de que Marilyn era “apenas uma garotinha perdida” seria algo muito difícil de se conseguir em uma hora e meia de filme. Assim, a grande vantagem de Sete Dias com Marilyn (My Week with Marilyn) é tratar somente de um período específico de sua trajetória, com pistas de seu passado e de seu futuro, mas ainda apresentando possibilidades mais complexas para sua personalidade e suas escolhas.

O filme dirigido por Simon Curtis, com a sensível e brilhante Michelle Williams no papel principal, acompanha Marilyn Monroe em sua primeira viagem à Inglaterra para contracenar com Sir Laurence Olivier, interpretado pelo também Shakespeariano Kenneth Branagh, em O Príncipe Encantado (filmado com o título de The Sleeping Prince e rebatizado depois como The Prince and the Showgirl), o primeiro filme que ela produziria sob a Marilyn Monroe Productions. A aliança que formou com o ator clássico foi uma de suas muitas tentativas de ser levada a sério como atriz. Aos 31 anos, Marilyn havia acabado de se casar com o dramaturgo Arthur Miller (um intelectual que validava, de certa forma, sua ânsia por um reconhecimento mais cerebral) e já estava bastante imersa no Método usado pelo Actors Studio, outra tentativa de aprofundar suas habilidades dramáticas. Olivier, contudo, abominava o Método e não sabia lidar com as constantes dúvidas de Marilyn sobre sua personagem, muito menos seu comportamento errático no set de filmagem.

Kenneth Brannagh como Laurence Olivier

Cabe aqui algumas palavras sobre duas escolas bem distintas de atuação. O Método de Stanislavski, usado no Actors Studio e adotado por atores daquela nova geração como Marlon Brando, James Dean, Montgomery Clift, etc., consiste em utilizar memórias afetivas pessoais para dar profundidade à atuação. Assim sendo, o ator não pode fingir estar triste. Se ele não sentir a emoção que o papel requer, não conseguirá atuar. Já os atores das antigas como Spencer Tracy, James Stewart, Cary Grant e assim por diante, acreditavam em atuar sem tantas firulas emocionais, mas de forma distanciada, controlada e racional. Ambas escolas renderam atores excelentes, mas são modos completamente divergentes de trabalhar.

Marilyn Monroe e Laurence Olivier são, portanto, de universos opostos. E como Olivier era também o diretor da produção, ele não podia aceitar os atrasos históricos de sua atriz principal ou a presença constante de sua treinadora Paula Strasberg que lhe era como uma sombra. Em meio aos conflitos, Monroe encontra um aliado em Colin, um mero assistente de 23 anos em seu primeiro trabalho no cinema. Curiosamente, é ele quem melhor define a situação: a filmagem toda é tensa porque Marilyn é uma estrela tentando se tornar uma atriz respeitada e Olivier é um ator de respeito tentando se tornar um astro. Se Marilyn procurava reconhecimento em sua associação com o ator britânico, ele por sua vez almejava um rejuvenescimento de sua carreira ao fazer par romântico com a mulher mais desejada do mundo. Mas além do Método lhe causar repulsa, ele também tinha consciência de que seu próprio estilo já era considerado obsoleto e que Marilyn, mesmo com todos os problemas emocionais, representava um futuro do qual ele não fazia parte. Tudo isso o próprio Olivier confessa em um momento de destempero ao assistente que tudo vê e tudo ouve – Colin Clark, que escreveu os livros sobre a produção de O Príncipe Encantado e sobre sua semana com Marilyn, que deram origem ao filme.

Michelle Williams como Marilyn Monroe e Dougray Scott como Arthur Miller em sua chegada a Londres

Mais improvável do que o relacionamento amoroso entre Marilyn e o terceiro assistente do diretor (ela ser capaz, intencionalmente ou não, de seduzir a todos em busca de compreensão e afeto é bastante verossímil) é Colin estar presente em tantos momentos-chave da vida da estrela e dos bastidores da produção como, por exemplo, quando Paula Strasberg se ajoelha frente a Marilyn e diz ter esperado a vida inteira por uma atriz como ela, ou quando Arthur Miller assume estar um tanto arrependido por ter se casado com Marilyn, ou quando ela encontra o que parecem ser rascunhos do roteiro de Os Desajustados (The Misfits) que o dramaturgo escreveu inspirado nela (além de vários outros pensamentos e ocasiões que deveriam ser privados). Mais duro ainda de engolir é a validação, ou seja, aval que a própria Marilyn lhe dá para contar a sua história: “você vê os dois lados”. Todos lhe fazem muitas confissões, Colin presencia eventos importantes demais para acreditarmos que não houve um certo esforço imaginativo aqui e ali, preenchidos talvez após os acontecimentos – sabemos hoje que seu casamento com Miller tinha problemas, que ela abusava de calmantes, etc., mas era mesmo já tão evidente na época ou o autor “forçou” a memória para dar sentido ao que veio depois?

De qualquer forma, o filme é interessante como uma ficção que toca em várias verdades sobre uma atriz muitas vezes vista como superficial e boba. Sofrendo com as exigências de sua carreira, Colin sugere que ela abandone tudo e viva como uma pessoa comum, o que ela recusa. “De que adianta se isso tudo lhe enlouquece?”, ele pergunta. “Você acha que eu estou louca?”, diz Monroe, afetadíssima. O que o filme não explicita (e é uma qualidade não explicitá-lo, pois são estas sutilezas que atestam sua qualidade) é que Marilyn vivia com o medo de ter o mesmo destino que a mãe. De fato, em determinado momento da vida ela sofre um colapso nervoso e acaba internada – e o acontecimento de sua internação tem um resultado muito pior do que o colapso em si, porque lhe pareceu então um déjà vu assustador do que acontecera com sua mãe e um sinal de que ela estava fadada ao desequilíbrio mental e à infelicidade.

Eddie Redmayne interpreta Colin Clark

De fato, havia em Marilyn a vontade de encontrar, finalmente, o homem certo e constituir família. Em seu último filme, Something’s Got to Give (não-completado), Marilyn chegou a gravar cenas com atores mirins que interpretavam os filhos de sua personagem e é notável o carinho (e também a melancolia) com que ela lida com as crianças. Por outro lado, ela não podia mais abandonar a carreira que havia, por fim, se tornado parte de sua própria identidade. Em entrevista, Simon Curtis declarou: “Esse filme é uma janela íntima para o lado vulnerável e secreto de Marilyn Monroe. Mas também queríamos nos certificar de que a mostramos em seu elemento como estrela, como performer vivendo o seu sonho. É o contraste entre esses dois lados, que são tão opostos, que a torna tão convincente.”

Em Núpcias de Escândalo (The Philadelphia Story), Katharine Hepburn interpreta uma socialite estoica que não admite erros de conduta de ninguém. Cary Grant, seu ex-marido ainda apaixonado, mas decepcionado com sua postura, diz: “Você nunca será um ser humano de primeira classe ou uma mulher de primeira classe até aprender a ter alguma consideração pela fragilidade humana”. Marilyn era capaz de despertar a fúria dos colegas com quem contracenava (Tony Curtis, irritado por seus erros e constantes atrasos no set de Quanto Mais Quente Melhor chegou a dizer que beijá-la era como beijar Hitler), mas sua vulnerabilidade e falibilidade tão enternecedoras são justamente o que podem ajudar a reconhecer, entre nós, os seres humanos de primeira e segunda classe.

3 comentários em “Muito Além do Mito

  1. Legal ler uma resenha que fala do filme e não do resenhista.
    (ainda que, ironicamente, tenha chegado aqui justo no fim de uma busca rápida, mas demorada, pelo paradeiro de uma certa fabin. eis a ieda. cinema, é claro. fiquei feliz em saber. lembrando agora, a Marilyn sempre aparecia. pior que já perguntei a muitos – aos errados – e não conheci niguém que lia Fabulosa e Inútil. gostava tanto. tão frágil e tão forte. sorte)
    Agora a resposta certa seria: pena ler um comentário sobre a resenhista, não sobre a resenha. Mas tenho que ver o filme. Verei.

  2. Olá, arbo. Blast from the past, huh? Legal que ainda se lembram de um blog que eu tinha aos 15 anos de idade, dez anos atrás. Realmente, eu falava muito sobre a Marilyn Monroe na época, era até o template do blog, e o filme deste ano só ajudou a reforçar tudo que eu já achava interessante nela. Obrigada pela lembrança e pela visita. =)

  3. Olá Ieda, são muitos com certeza que sentem sua falta…marcou e com certeza muita coisa mudou, 10 anos nem acredito!Também procurava por você e cheguei aqui.Você tem um dom maravilhoso.Abraços

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