Nada para além das montanhas

deus absconditus, deus nullus deus, deus nisi deus
Mr. Bungle

A safra de filmes de 2013 pode não ter sido excelente. Mas se investigamos os “fins de mundo” do cinema, não raro encontramos surpresas.

Um deles é o filme romeno Além das montanhas (Dupa ealuri, 2012 / 2013 no Brasil), dirigido por Christian Mungiu. O diretor romeno assinou um filme premiado em 2007, 4 luni, 3 saptamâni si 2 zile, que conta a história de uma moça que resolve praticar um aborto — crime punido com a morte na Romênia comunista. Mungiu dirige com extrema competência e austeridade, e merece ser observado de perto.

Além das montanhas é um filme sutil e misterioso. Representa o presente da história de Alina, uma jovem de 25 anos que, tendo saído de um orfanato em que vivia com sua melhor amiga Voichita e imigrado para a Alemanha, reencontra esta última na Romênia anos depois. Apesar dos votos de fidelidade entre as duas no tempo em que estavam no orfanato, Voichita abandona o saeculum e entra para um convento cristão ortodoxo. O reencontro é emocionado — logo se percebe que não eram apenas ‘amigas’ no orfanato –, e Voichita acolhe Alina consigo no convento, até que possam fazer uma viagem juntas. O padre (tecnicamente um monge) que dirige o convento acaba permitindo que Alina fique por lá um tempo, mas não aconselha a viagem das duas. A situação é um pouco constrangedora: sabemos que Alina está ali apenas para ficar com sua antiga amiga e amante, mas esta agora a trocou por… Deus. Alina começa revelar uma extrema angústia. Não se sabe de que mal padece. Voichita acredita que uma boa confissão a pode salvar; e então lhe passam o clássico guia ortodoxo com os quatrocentos e tantos pecados mais comuns (que são ‘ticados’ em uma lista: check, check, check…), e Alina vai ao padre. A angústia, no entanto, não cessa; ela volta ao comportamento agressivo. Está fora de si. Levam-na a um hospital e ela então volta, após receber alta, e é novamente recebida no convento após as súplicas de Voichita ao padre: “não podemos abandoná-la! a quem ela irá?” Depois da calmaria, volta novamente a tempestade. Todas começam a pensar em possessão demoníaca. Para que Alina não se machuque, rezam, rezam muito; sem sucesso, prendem-na a uma tábua e o padre obtém permissão do irmão de Alina para um ritual menor de exorcismo (a “leitura” e o ofício divino).

 

Voichita (Cosmina Stratan) e Alina (Cristina Flutur)

A direção de Christian Mungiu permanece austera. As tomadas firmes, discretas, sem movimentos ou aproximações, dão naturalidade à trama e às decisões dos personagens. O padre — visto como homem santo e prudente — age de modo desapaixonado e ordena às irmãs que rezem e jejuem pela moça aflita. Afinal, é para o bem de sua alma. O coração de Voichita se despedaça; quando se aproxima de Alina, esta é tomada por espasmos e grita, amordaçada. E acorrentada.

Paro com a história por aqui. Adianto que há um paralelo interessante entre esse filme e O Exorcismo de Emily Rose. Mas aqui o horror e o simples medo do sobrenatural dão lugar a uma reflexão madura, implacável, sobre a responsabilidade moral.

A meu ver, o filme consegue, como poucos, mostrar como as ações sinceras das pessoas mudam radicalmente quando muda o contexto. O contraste entre o fanatismo sincero de Voichita — a censura de Alina a ela: “Você consegue dizer uma só frase sem que Deus lhe assome aos lábios? Não consegue se comportar como uma pessoa normal?” — e o realismo da médica que atende Alina ao final revelam mundos completamente diferentes. “Não rezem por mim — diz a médica –; prefiro queimar no inferno a ser vítima das maldições dessas freiras.”

Cai o véu da fé e do atavismo ortodoxo. O mundo volta ser o que era: o mundo dos homens, no qual não há justificativa capaz de afastar a responsabilidade por um crime. Nem sequer a sinceridade.

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