Não quero ser um copo d’água

“Uma paixão fiel e genuinamente abnegada falará conosco com o que parece ser a voz de Deus. A luxúria meramente animal ou frívola não. Ela corromperá o seu viciado em uma dúzia de formas, mas não dessa forma; um homem pode tomar uma atitude com relação a essas sensações, mas ele não pode reverenciá-las mais do que um homem que se coça reverencia a coceira.” C.S. Lewis

Imagine que você está com sede e quer um copo d’água. Não precisa ser uma sede de quem estava há dias vagando pelo deserto, pode ser moderada ou leve. Não há, no caso, nenhum copo d’água em particular que você queira. A marca da água, exceto para personagens excêntricos, também não deve importar. Qualquer copo d’água serve. Nem precisa ser um copo. Pode ser uma taça, uma xícara, uma garrafa, ou vir de um bebedouro, tanto faz. Você não quer a água para admirá-la, como quem observa o mar ou o rio Sena. Há algo específico que você quer fazer com essa água, isto é, bebê-la. Depois que a sua vontade é satisfeita, ela pertence ao passado e não incomoda mais – até sentir sede novamente. Esta é a natureza dos desejos sensuais.

É possível incluir, como objetos desse tipo de desejo, a comida, as drogas, o sexo. Dependemos do alimento para sobreviver, mas há um limite que, quando ultrapassado, o torna uma indulgência, uma necessidade emocional ou psicológica – e quanto mais sentimos vontade de comer, menos nos importamos com a qualidade do que estamos comendo. As drogas podem amenizar ou mesmo curar uma série de condições, mas quando usadas em excesso ou como recreação, são prejudiciais à saúde. O sexo, além de responsável pela propagação da espécie, representa a consumação do amor entre duas pessoas, mas, como necessidade meramente física, se transforma em um vício que aceita qualquer um. Há um aparente paradoxo indicando que quanto mais você quer fazer algo (ter uma relação sexual, consumir, comer, etc.), menos esse algo importa. Quando um alcoólatra sente necessidade de beber, ele pode virar um vidro de perfume, o gosto é o de menos. Os desejos sensuais são assim: indeterminados, direcionados a uma ação específica (e não a uma coisa específica), e satisfeitos por essa ação que os dá fim, temporariamente.

Para o filósofo Roger Scruton, contudo, o desejo sexual é determinado, pois há alguém em particular que desejamos e as pessoas não são objetos intercambiáveis de desejo, mesmo que sejam igualmente atraentes. O desejo sexual nos humanos envolve uma escolha, diferente do desejo sexual nos animais que é mais como uma expressão de necessidade. Para ele, Eros não é apenas uma vontade, mas um destacar, um encarar prolongado que ultrapassa os desejos e toma lugar entre nossos projetos racionais:

“Quando, no decorrer do desejo sexual, você contempla a beleza de um companheiro, você se afasta de seu desejo, como se para absorvê-lo em uma meta maior e menos imediatamente sensual. Isto, de fato, é o significado metafísico do olhar erótico: que é uma busca por conhecimento – uma convocação à outra pessoa para resplandecer de forma sensória e se tornar conhecida.”

Há, para Platão, uma forma básica de desejo que se concentra no corpo e uma outra forma mais elevada que se concentra na alma, na esfera eterna da qual nós, seres racionais, descendemos. Pelo o que entendo, o desejo sexual a que Scruton se refere tem a ver com o plano mais elevado, com a consumação do amor entre dois indivíduos. Porém, creio que há mais casos de “sede” do que de amor verdadeiro. O desejo por este copo d’água pode ser satisfeito por esse, já que não se concentra na massa individual de água, mas na coisa que a água é. Ou seja, para muitos, é desejável ter relações com uma mulher ou com um homem e não só com a mulher ou com o homem. Scruton diz que o sexo não pode ser comparado com o beber um copo d’água porque a sede tem um fim, enquanto que o desejo sexual não é nunca consumado de verdade: “Aqui há uma vontade sem objetivo: um desejo que não pode ser satisfeito já que não há nada que possa contar como satisfação dele.” Mas o sexo pode acontecer com um objetivo nele próprio – e, assim, ser satisfatório por si só.

Se um desejo sensual lida com a ação e o desejo superior trata do objeto específico, é possível dizer que o primeiro se concentra no verbo, isto é, fazer sexo, e o outro no substantivo, sexo. Diferenciando o verbo do substantivo, de fato, o sexo se torna uma vontade sem objetivo que jamais pode ser consumada, simplesmente porque não é possível ter o objeto do desejo, apenas compartilhá-lo. Já o fazer sexo é um ato que se encerra e se satisfaz nele mesmo – como beber um copo d’água qualquer.

5 comentários em “Não quero ser um copo d’água

  1. Todo esse blablabá não pode nos deixar esquecer que existe um monte de losers neste mundo que não conseguem nem uma trepadinha decente.

  2. O roger acruton diz onde? Seria legal para entender, a menos saber a fonte fonte primaria. Um ensaio, um livro?

  3. É como diz Lacan: “não há relação sexual”, ou “amar é dar o que não se tem a quem não quer receber”, visto que o objeto em si é sempre inatingível.

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