Natal e secularismo

nativity

 

 

Joathas Bello*

 

O Natal celebra, de acordo com a tradição cristã, o nascimento do Homem-Deus, Jesus, o Cristo. Já são lugares comuns, nos meios cristãos, as afirmações de que o sentido do Natal se perdeu, de que ninguém lembra o aniversariante, de que tudo é consumismo, etc. No entanto, não deixa de ser verdade que a celebração natalina desperta nas pessoas um sentimento de generosidade e, muitas vezes, uma prática solidária; fala-se de um “espírito de Natal”. Lembrar o Menino Deus seria, ainda, necessário? Sua recordação não seria, apenas, uma ressonância de antigos mitos já superados?

A mensagem e a prática cristãs impregnaram e moldaram de tal modo nossa civilização, que muitas verdades inacessíveis ao homem antigo se tornaram patrimônio da humanidade; noções que irromperam dos céus e custaram o sangue do Homem divino, como a idêntica e excelsa dignidade das pessoas, tornaram-se de tal modo temas correntes, que a modernidade ilustrada as assumiu como uma conquista da razão humana. O destino do cristianismo parece ser o de seu fundador na cruz (da qual a humilde manjedoura é o prenúncio): o aniquilamento. Quem precisa do “símbolo” Jesus, se a realidade do amor e da reconciliação entre os homens é agora um ideal plenamente humano? Quem precisa de uma Igreja como mestra da humanidade, com a existência das Nações Unidas?

O processo de secularização que se seguiu ao final da Idade Média, com as separações entre ciência e teologia, arte profana e arte sacra, Estado e Igreja, foi, em muitos sentidos, benéfico para a humanidade[1]. Ao que parece, o cristianismo cumpriu sua missão, ao permear a existência humana com conceitos e práticas que, uma vez alcançada a maioridade da razão, podem se desenvolver separados da raiz da qual brotaram. Mas será que, assim, sem a seiva vivificadora de sua fonte divina, conservarão seu frescor? Não estariam, estes valores incorporados pelo mundo moderno, ameaçados pelo niilismo e pelo relativismo, uma vez perdida a conexão com o fundamento transcendente?[2]

Há uma passagem bíblica que diz que “se o grão de trigo não morrer, não dará frutos” [3]. Não estaria, então, o cristianismo, assim como seu fundador, chamado a ressurgir, a renascer? E será que o mundo contemporâneo, herdeiro de tradições cristãs amputadas, seria necessariamente um estorvo para a pretensão cristã? Não seria o caso de fazer ver a este homem hodierno, que suas grandiosas realizações são signo da imagem divina talhada no espírito humano, e que Deus não é apenas um remédio para nossa indigência, mas também a fortaleza que nos faz perseverar no amor?[4] Seja como for, um tal renascimento, como no primeiro advento do Cristo, não é algo que se imporá do alto dos céus, com o apoio das hostes celestes; se o cristianismo adquiriu poder político e este de algum modo ajudou-o em sua consolidação, isto é uma contingência histórica, que não tem que se repetir. A cada novo Natal, como fez no primeiro, Cristo bate à porta com delicadeza, não se impõe, não exige o que é seu por direito, mas solicita não mais que um olhar contemplativo sobre a manjedoura de Belém: a capacidade de enternecer-se diante desta cena é “o único necessário”.

 

[1] Estes recentes artigos sintetizam o modo como entendo as relações entre o cristianismo e, respectivamente, a ciência e a política modernas: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/tubo-de-ensaio/tripe-ou-quadripe/ e http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1520161&tit=Estado-laico-religiao-e-politica .

[2] A meu ver, este é o sentido profundo do anúncio de Nietzsche (“Deus está morto”): o mundo contemporâneo, ao recusar um fundamento transcendente, necessariamente caminha para o niilismo e o relativismo, pois, como diz a frase atribuída ao personagem Ivan Karamazov, “se Deus não existe, tudo é permitido”.

[3] Cf. Jo 12,24.

[4] “O Cristianismo se dirige primariamente ao ser inteiro do homem e não a sua queda em pecado e menos ainda às falhas de sua vida. O Cristianismo não é a argamassa que remenda as fissuras da vida. O Cristianismo, no meu modo de ver, dirá ao homem atual que sua vida é o que é precisamente porque o ser do homem é deiforme; e o é não em seus fracassos, mas primária e principalmente em suas próprias lograções” (ZUBIRI, Xavier. El problema teologal del hombre: Cristianismo. Madri: Alianza Editorial, 1999).

 

* Joathas Bello é Doutor em filosofia pela Universidade de Navarra

 

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