Nostalgia da Masculinidade

Tom Hardy em Os Infratores (Lawless), 2012.

Um dos muitos charmes dos filmes antigos ou de época está no fato de retratarem certas atitudes,  de pequenos gestos, como o retirar de um chapéu na presença de uma mulher (ou, simplesmente – homens usando chapéu) até tipos de personalidade que já não existem mais. Seja na ficção ou na realidade, não há mais Rhett Butler ou Philip Marlowe. E qualquer um que tente sair de casa usando Fedora ou bigode não terá porte ou panache suficientes para não se passar por ridículo inconsciente ou hipster (aquele que se apropria do próprio ridículo como se assim fizesse algum comentário inteligente sobre moda, sociedade, o universo, etc). Apesar de ser adepta da nostalgia, reconheço que há nela algo de patético: é impossível reviver o passado, mas, como uma paixão não correspondida, continuamos a desejar e tentar ad infinitum. Dentre os atores de hoje, pouquíssimos conseguem emular a presença que Clark Gable ou Humphrey Bogart tinham; Jon Hamm consegue um pouco nas primeiras temporadas de Mad Men e Daniel Craig em Casino Royale (apesar de estar muito mais para Gable do que para Bogart). O que exatamente diferencia as atuações de Hamm e Craig das performances de atores mais conhecidos e aclamados como Mark Wahlberg, Matt Damon e até Leonardo DiCaprio? Entre ser salva por Hamm ou DiCaprio, que, já faz alguns anos, só interpreta heróis incapazes de confiar no próprio julgamento, quem eu escolheria? Hamm, sem dúvida. Digamos, então, que o problema seja falta de confiança ou credibilidade. O herói pós-pós-moderno precisa ser vulnerável, ter dúvidas, fraquezas e inseguranças muito bem enunciadas, porque é muito melhor ir ao cinema e assistir aos nossos próprios defeitos, certo? Perto de Hamm e Craig, Wahlberg, Damon e DiCaprio são como adolescentes – passam algumas horas por dia fazendo musculação e ficam contrariados quando alguém mexe com eles. Com Os Infratores (Lawless, 2012), Tom Hardy surge como candidato ao seleto clube dos homens crescidos. Por que os produtores decidiram dar mais atenção ao personagem de Shia LaBeouf está além da minha compreensão. É como confiar o planeta ao Homem-Aranha quando você tem o Super-Homem ali no canto – mas é a tendência agora, não é?

Dirigido por John Hillcoat (de A Estrada e A Proposta), Os Infratores tem roteiro assinado pelo músico Nick Cave e é baseado no romance de Matt Bondurant sobre seu avô, contrabandista de álcool durante a lei seca americana, Jack Bondurant. Em tese, o filme trata de como Jack (LaBeouf), em meio a determinadas pressões, ganhou pêlo no peito e perdeu a covardice, mas, talvez por causa da direção ou da incredibilidade do próprio ator, nunca temos a sensação de que isso acontece de verdade. Afinal, é LaBeouf. Até seus atos mais enfurecidos parecem falsos e cômicos, como ver a foto de um cachorro fumando cachimbo e usando cartola – é fofo porque é tão estranho. No final de Indiana Jones e a Caveira de Cristal, Harrison Ford não deixa que LaBeouf coloque o seu chapéu. Óbvio, ficaria ridículo nele. Por boa parte de Os Infratores, Jack é sensível demais para participar da violência empregada tão naturalmente por seus irmãos mais velhos, Forrest (Hardy) e Howard (Jason Clarke). Há uma lenda acerca dos irmãos Bondurant de que eles seriam imortais, mas Jack sempre se sentiu diferente – e, até aí, o filme e a escolha do elenco fazem todo o sentido. É o tal do crescimento de pelo no peito do LaBouef, para não utilizar outra expressão mais exata, que parece tão improvável. E nem o personagem ajuda. Tão mais atual (logo, mais bobo) do que seus irmãos que, assim que os negócios decolam, gasta uma fortuna em roupas novas e um carro tunado – sim, um carro tunado. Fica faltando a corrente de ouro, os fones de ouvido gigantes e o corte de cabelo do Neymar. Sua vaidade não chega a ser afeminada, mas é, sem dúvida, adolescente. E o que há de mais atual senão homens crescidos agarrados à adolescência como se o próprio passar do tempo não existisse?

Os Infratores é regular, bem filmado, com pelo menos duas performances muito boas de Tom Hardy e Guy Pierce que, sozinhas, já valem o ingresso. Mas há justamente essa sensação de talento mal-aproveitado ou déficit de atenção. Há, aqui e ali, momentos excelentes, mas que passam quase despercebidos, como se fossem involuntários. Por exemplo, há uma cena em que Jack, vestido em seu melhor terno, surpreende os irmãos durante um acerto de contas, cobertos de sangue. Howard elogia a roupa de Jack, que chega muito perto de desmaiar, e fecha a porta, deixando o caçula do lado de fora. Depois de Rastros do Ódio e O Poderoso Chefão, todo mundo sabe o que significa, no cinema, um fechar de portas, o peso da imagem. Eu que sou mulher consigo perceber como seria humilhante para um homem ser excluído por ser o que tem o estômago mais fraco e por ser também o mais fútil. Pensei que a passagem de Jack para a maturidade começaria justamente nesse ponto, mas logo segue uma sequência em que ele se torna ainda mais bobo e vaidoso. Ou seja, foi um desperdício de momento. O potencial do filme, no final das contas, não corresponde ao produto. Desperdiçam até Gary Oldman (tinha me esquecido dele), num papel meio solto, que desaparece do meio para o fim. Mas o que há de interessante no filme é esse estudo (também involuntário?) sobre masculinidade.

Hardy e Jessica Chastain.

Há quatro tipos básicos de masculinidade (ou ausência dela) em Os Infratores. Jack é o adolescente:  babaca, covarde, tenta muito provar-se como homem e acaba fazendo uma besteira atrás da outra; Howard, o irmão mais velho, é a violência desenfreada (o mais sujinho e o menos articulado também); Forrest é o ponto intermediário entre os dois: corajoso, mas consciente, sabe quando agir, como agir e quando parar; e Rakes (Guy Pierce, excelente) é o agente do governo que dificulta a vida dos irmãos, repleto de nojinhos e de uma vaidade extrema, essa sim bem afeminada. Forrest fala muito pouco, grunhe bastante, sabe quando ser agressivo e quando se conter, respeita e protege mulheres, não esbanja o dinheiro ganho e tem tanta confiança em si mesmo que acredita sinceramente na lenda dos Bondurant. Entre os tipos de homens do filme, Forrest é o mais desejável – mas justamente o que se encontra extinto. Voltamos, portanto, à questão da nostalgia. Será assim tão impossível mesmo, nos dias de hoje, um homem que não tenha sido contaminado por essa baboseira coitadista de herói sensível e cheio de dúvidas, mas que também não seja um bruto completo? Será que a nostalgia pela própria adolescência que muitos homens crescidos sentem não é o sentimento certo voltado à coisa errada? E, se desejarmos o suficiente, será que não podemos mesmo reaver, um pouco que seja, do que já foi tão certo?

4 comentários em “Nostalgia da Masculinidade

  1. Dia desses assisti “Fuga do Passado”, o filme do Jacques Tourneur. Acompanhando a performance do Robert Mitchum, pensei justamente nessa mudança de comportamento masculino que a crítica descreveu tão bem. Na cena do Mitchum com a Rhonda Fleming, pensei: “ele sabe se virar sem cometer vacilos. O cara é bom!”. Já com os heróis cinematográficos atuais é rara essa sensação (não é toda hora que se faz um “Drive”, infelizmente).

  2. É por aí mesmo, Rafael. Quando o Actors Studio surgiu, muitos atores das antigas eram contra. O próprio Cary Grant abominava James Dean, Montgomery Clift e Marlon Brando, dizendo que, um dia, ele, o James Stewart e o Spencer Tracy iam voltar a fazer filmes de verdade. O problema com o Actors Studio é que você tem de se tornar vulnerável para interpretar vulnerabilidade (você não pode simplesmente atuar, você tem de SENTIR) e foi aí que ator virou um bicho cheio de problemas e sensibilidades…

  3. eu discordo, na verdade é que o ambiente artístico tende a ter muitos homossexuais, comunistas, e toda a sorte de “excluídos” dos moldes normais da sociedade. É inerente ao teatro e ao cinema a recorrência de pessoas com sensibilidade à flor da pele

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