Notas sobre um fracasso planejado

“Os seus textos são dispostos de maneira a não manter uma distância constante com sua vítima, mas sim excitar de tal forma os seus sentimentos que ela deve temer que o narrado venha em sua direção (…). Essa proximidade física agressiva interrompe o costume do leitor de se identificar com as figuras do romance. (…) Quem percebe isso e prefere não fugir correndo deve arriscar a cabeça, correndo o risco de não ter uma sorte melhor que a de seus antecessores. Como num conto de fadas, o destino dos que falharam em resolver o enigma, em vez de assustar, serve de incentivo. Enquanto a palavra do enigma não for encontrada, o leitor permanece preso”.

Theodor Adorno em “Anotações sobre Kafka”.

“Depois, K. disse:
– Você crê, portanto, que o homem não foi enganado?
– Não me entenda mal – disse o sacerdote – Apenas lhe mostro as opiniões que existem a respeito. Você não precisa dar atenção demasiada às opiniões. O texto é imutável, e as opiniões são muitas vezes apenas uma expressão de desespero por isso”.
Franz Kafka, “O Processo” (1915)

1. As sombras, o mistério, o enigma são uma parte intrínseca na literatura de Franz Kafka, que um dia escreveu no seu diário: “Sou um mestre na arte do fracasso”. Para ele, esta afirmação não era de modo nenhum autocomplacente. Na extraordinária “Carta ao Pai”, o maior atestado de fracasso já escrito na Weltliteratur, Kafka articula todo um complexo raciocínio emocional para compreender (nunca justificar) sua culpa e seu desespero. “O desespero é um assunto meu”, ele escreveu e isso não deixa de ser verdade. A literatura de Kafka é a literatura do desespero pela redenção, do desespero ao saber que o mundo já está em completa danação e que não há mais volta.

2. O grande momento da vida de Kafka – e o momento em que ele descobre seu gênio – é em 1914 quando, três dias depois de encontrar uma moça chamada Felice Bauer, ele inicia uma fase de criatividade ímpar: em menos de quatro meses escreve “O Veredito”, “Na colônia penal” e “A metamorfose”. Essas três histórias mostram a sua perfeição estilística e técnica, criando histórias que têm uma lógica própria dentro de um mundo de completa alucinação. Não eram histórias de absurdo – apesar de que no mundo de Kafka o absurdo é uma constante, em especial na descrição do poder burocrático -, muito menos de realismo fantástico. Kafka tinha a sensibilidade do banido, e o banido tem o dom – ou a maldição, dependendo do ponto-de-vista – de ver além da realidade deste mundo. Atado a pés de chumbo nesta terra, e não podendo fugir para um outro (para usarmos um tema baudeleriano, outro loser por excelência), o banido começa a perceber e sentir este mundo como uma outra realidade, a realidade simbólica onde os eventos têm um papel e um significado que somente os iniciados podem descobrir. O caráter iniciático – e portanto religioso – da obra de Kafka era uma intenção consciente do escritor, já que ele era um profundo estudioso da cabala judaica e um admirador do Velho Testamento. Ele próprio afirmava que sua escrita era uma forma de prece, uma maneira de atravessar o mundo pelas palavras, mas que tudo saía ao contrário porque sentia que “a mão do diabo paira sobre mim”.

3. Essa sensação de profanação, de nojo, deve ter sido a causa do seu pedido a Max Brod para queimar todos os seus manuscritos depois de sua morte. Era o fracasso atacando de novo, e não o fracasso medíocre, mas o fracasso digno e corajoso de assumir suas limitações, de ter uma visão tão elevada da vida, que sabe que não há como cumprí-la neste mundo incerto. Nesta tetralogia da culpa que é “O Veredito”, “Na colonia Penal”, “A metamorfose” e, finalmente, “O Processo”, Kafka vai introduzindo temas, desenvolvendo-os, aprofundando-os até esgotá-los ao máximo. “O Veredito” fala do duplo (o amigo misterioso de Georg Brandermann), da relação repleta de culpa entre o pai e o filho e, por fim, a punição; “Na colonia Penal” retrata o mecanismo de punição, aumentando para a questão do poder do Estado, um poder que imita o divino, mas entra pelo ralo quando um estrangeiro nota suas falhas; “A metamorfose” fala de um banido (Gregor Samsa transformado em um inseto) e de como a danação afeta toda uma família, culminando no sacrifício e na possibilidade de recomeço; e em “O Processo”, Kafka nos apresenta Josef K., um dos personagens mais mesquinhos já criados, incapaz de perceber o que está realmente à sua volta, culpado certamente de um crime que não importa qual seja e, enfim, danado para sempre do mundo, com uma morte que o torna parecido com um cão.

4. Além de todos esses temas, o que une os contos, os diários, as cartas e os romances de Kafka é, supreendentemente, apesar de todo seu judaísmo, uma perspectiva cristã das coisas deste mundo. Quando se fala em “perspectiva cristã” se fala em três coisas: esperança, redenção e sacrifício. Para aqueles que acreditam que Kafka é sem esperança, não o leram direito. A sua literatura é um aviso do que a falta de esperança faz conosco. A falta de determinação, de rejeitar a ordem vigente e de, principalmente, compreender a realidade simbólica que rodeia o ser humano, faz o mundo parecer um inferno. Nunca desista – esta é a lição de “O Processo”. Você nunca conseguirá alcançar um poder superior, mas não desista da sua meta (uma das anotações de seu diário se lê: “Há a meta, mas não o caminho. O Caminho é apenas hesitação”). Isso não torna Kafka um niilista como muitos afobados pensam. A procura pela redenção, pela expiação da culpa é o que motiva os personagens de Kafka – por piores que sejam – a ir até o fim, seja lá qual for. Esse aspecto fica claro – assim como o do sacrifício – na “Carta ao Pai”, escrita para seu pai Hermann, um homem supostamente autoritário, quando o filho explica de maneira relatorial – o estilo kafkiano é o de um relatório tortuoso – como fracassou em sua tentativa de se libertar de seu julgo. O casamento e a literatura foram os únicos meios que lhe apareceram e nos quais ele também falhou. Deixou a mesma mulher duas vezes à espera por uma decisão, abandonou uma moça e se envolveu com uma intelectual que tinha casos com metade de Praga. O pai o ridicularizava em tudo, e não o respeitava em nada. Mas isso não leva Kafka a xingá-lo como um revoltado: ele respeita e ama o pai, e coloca toda a culpa do sofrimento do pai pelo destino do filho para si mesmo mesmo, fracassado assumido. Inverte-se toda a lógica do sacrifício: sua expiação é pelo sofrimento dos outros, não pelo dele.

5. Se em “Carta ao Pai”, Kafka expia toda a sua culpa – motivo essencial de sua obra até então – e reverte-a de uma maneira sacrificial, para não dizer cristã, o que fazer depois? Esse judeu que se consome no Pecado Original – porque a culpa é uma condição inerente à natureza humana -, não deixa-o de lado, mas volta a um outro tema, que já aparecia em várias pinceladas em “Na Colonia Penal” e “O Processo”: a paranóia. Toda essa ordem de temas, que se sobrepõem uns aos outros, fica claro na obra de Kafka que eles não apareceram de maneira autoconsciente. No entanto, Kafka é um autor consciente na maneira em como se conta a história, não no conteúdo da história; nesse ponto, nota-se o prazer meio mórbido de Kafka de ficar divagando sobre “esses seus velhos amigos”, nas descrições minuciosas que faz dos procedimentos burocráticos de “O Processo” e “O Castelo”, ou da maneira como o animal constrói sua toca em “A Construção”. Kafka é meticuloso porque sua mente costuma dar voltas e mais voltas, seu raciocínio tem o desenho de uma espiral que se enrodilha até a completa auto-destruição.

6. Essa implosão é evidente no modo como ele se apropria da construção do romance com uma estrutura tipicamente “flaubertiana” e inverte toda a lógica, combinando realidade com alucinação, e tornando a realidade por si só uma alucinação. Kafka implode o romance tradicional da mesma forma que Proust faz com sua recuperação da memória e Joyce faz com o estilhaçamento da consciência. Mas se estes dois últimos procuram, no fundo, a unidade transcendente nesses fragmentos, Kafka sabe que não encontrará unidade nenhuma. O mundo está danado há muito tempo, e o ser humano não tem mais paz. É o que ele prova com “O Castelo”, escrito durante os seis meses do ano de 1922 (o mesmo ano em que foi publicado “Ulysses” e “The Wasteland”, os dois marcos do modernismo, o que mostra que Kafka era realmente um banido do meio literário que os críticos o colocariam no futuro), e que conta a interminável procura de K., o agrimensor, numa aldeia dominada pelo espectro assombrado de um castelo e seus funcionários. É uma região fora do tempo e do espaço e, no final, o leitor descobrirá que ela se move no infinito, não tanto pelos meios em que Kafka constrói o ambiente, mas pela própria incompletude do romance, um calhamaço de quase 500 páginas que termina no meio de uma sentença. “O Processo” também tem esse caráter fragmentado, mas pelo menos sabemos seu fim, o de Josef K. sendo assassinado com uma faca de dupla lâmina, por dois guardas e gritando que foi morto como um cão. Em “O Castelo” nós não temos um fim, pelo menos na aparência. Neste romance – notável síntese da obra kafkiana – conhecemos esse homem determinado que é K., que se envolve com uma jovem chamada Frieda, antiga amante de um funcionário do castelo chamado Klamm, e entra em atrito com quase todos os habitantes da aldeia, exceto uma família que foi banida dos favores do castelo, pois uma das filhas não aceitou ser amante de um dos secretários. Nesta intricada teia de relações, K. vai descobrindo junto com o leitor que a natureza secreta do poder impede que o homem comum o alcance; o poder é secreto até mesmo para aqueles que pensam que dominam, e descobrem que são manipulados por outros. O romance vai se desdobrando em um labirinto de ligações de manipulação, onde os homens são fracos e as mulheres são as dominadoras, onde as chances que são dadas para a volta na sociedade são mais uma isca para o banimento definitivo, onde o castelo é inatingível e onde a determinação se torna algo nefasto e vira uma obsessão que leva qualquer um à loucura. Em “O Castelo”, Kafka desenvolve o tema da paranóia de maneira épica – sim, é um “épico da paranóia” – naquela simples pergunta que todo o bom paranóico faz: Quem manda em quem? Claro que o tema da culpa permance – no episódio da família de Barnabás -, mas a culpa é determinada por uma escolha, não é mais parte da condição da pessoa. Essa culpa lhe traz mais bençãos do que prejuízos, na verdade, já que transforma em banidos os que não podem aguentar mais viver no eterno inverno em que a aldeia vive. K., que podia ser um personagem digno, entra também neste jogo de manipulação, querendo enganar a garçonete Frieda para ter acesso a Klamm; mas descobre – através de mais uma banida, Pepi, concorrente de Frieda na aldeia – que fôra usado por Frieda justamente para aumentar o seu prestígio no castelo. K. é um belo de um pateta que, como seu quase-homônimo Josef, não consegue enxergar a realidade simbólica que o cerca, e se vê preso numa trama de usos e abusos que, no fim, escolhe ficar porque também faz parte de sua natureza. O que poderia ser uma ascese dolorida, volta a ser uma descida voluntária de um pobre coitado que, ao ver uma brecha de esperança na sua condição de peregrino (na conversa com o secretário Bürgel), prefere dormir por estar cansado (Bürgel fala que é dessa forma que o mundo consegue manter o seu equilibrio – através das seleções que ele impõe).

7. “O Castelo” não é o romance sobre uma procura da salvação e sim sobre a procura da danação. Se Josef K. era um maldito porque não sabia ver o que estava na frente, Gregor Samsa não podia ter sua redenção porque já recebera seu castigo, K., o agrimensor, escolhe deliberadamente o inferno gelado da aldeia e do castelo. Nesse sentido, “O Castelo” é a continuação da lenda do Fausto, e feito de maneira radical, porque Kafka não fala em punição ou salvação: o romance termina no “infinito”, se estendendo no silêncio da página branca, deixando o leitor boquiaberto com mais um de seus enigmas.

8. Contudo, Kafka faria sua reflexão final sobre a paranóia e o silêncio nos últimos contos de “Um Artista Da Fome” e em “A Construção”. O Artista da Fome prolonga sua fome porque não consegue encontrar o alimento que o sustenta neste mundo e enfim morre porque nunca o encontra. É substituído por uma pantera que incomoda com seu bafo, as pessoas que a observam na sua jaula. Em “Josefina, ou o Povo dos Camundogos”, a cantora-ratazana Josefina preserva seu mito diminuindo seu canto até alcançar o mais completo dos silêncios (a descrição das manias de Josefina, feitas por Kafka tornam-as uma irmã gêmea do escriturário Bartleby criado por Herman Melville) para preservar sua arte. Em “A Construção” – o mais completo tratado de paranóia já feito no século XX, junto com “V”. de Thomas Pynchon – o animal constrói sua toca de maneira minuciosa para se proteger do inimigo, mas quando este aparece – e traz a morte, já que Kafka escreveu esta história quando a tuberculose o atacou de uma vez – ele se desespera e não tem mais nada a fazer exceto esperar pelo inevitável.

9. É esta espera e este silêncio voluntário – a metáfora perfeita da renúncia e do sacrifício que marcam a perspectiva cristã – que nos fazem acreditar que o fracasso na obra de Franz Kafka foi, talvez, seu triunfo, e um triunfo planejado. Max Brod, que salvou as obras de Kafka do pedido do amigo de queimá-las após sua morte, sabia que ele tinha o mais hesitante dos comportamentos, mesclado a uma ironia enigmática. Ou seja: quando queria dizer uma coisa, falava outra. Esse aspecto invertido aparece em seus escritos, em especial em “O Castelo” onde uma moça de nome Frieda (em alemão, paz) é quem faz, de maneira simbólica, o pacto de danação com K.. O próprio Kafka em suas fotos parece algo estranho, alheio e ao mesmo tempo extremamente presente ao que ocorre neste mundo. Para este fracassado atormentado, nem a morte lhe trouxe paz. Seus livros estão aí, para serem lidos e servirem como lição a pessoas como nós, os exilados de espírito, para que possamos aprender, com suas imagens distorcidas de um Mal claro e cortante, que nós devemos decifrar os enigmas que a vida nos propõe, aceitando as nossas limitações e defeitos. Do fracasso tira-se a arte da verdadeira sobrevivência: a da infinita perseverança.

4 comentários em “Notas sobre um fracasso planejado

  1. Excelente artigo. Parabéns.
    P.s: A melhor coisa que eu já fiz foi ler A Metamorfose quando estava com depressão sem sair de casa. Penso que ele feria o leitor para despertar nele “o humano”. Sem dor não há compaixão. Não conheço A Construção, mas vou correr atrás. Valeu, velhinho.
    Um abraço do observador.

  2. Outro livro bom do Kafa é “O Desaparecido ou América”. É sobre um alemão que depois de engravidar a empregada é mandado para os EUA pelos pais. Muito bom, vale a pena.

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