Novos inimigos

A NewStatesman publicou recentemente uma matéria de Steven Poole intitulada “Your Brain on Neuroscience: the Rise of Popular Neurobolloks”, que traz uma advertência urgente: essa nova literatura sobre pseudo-neurociência (mind porn, como alguns a chamam) é um grave perigo para a credibilidade da ciência, e mesmo para as mentes e vidas dos ingênuos leitores. Diz-se pseudo-neurociência porque, apesar de se inspirarem em resultados específicos da área, as conclusões desses livros extremamente rentáveis são apressadas, quando não manifestamente equivocadas, como denuncia Poole. A tal Programação Neurolinguística divulgada no Brasil há mais de uma década era apenas uma tímida precursora.

Ontem mesmo, Brian Doherty, da Reason, escreveu um artigo reforçando a advertência.

Você tem uma dúvida sobre como as religiões realmente funcionam? Sobre como é a mente de um republicano? Gostaria de saber como opera a mente de um homem de sucesso, para que você possa seguir a sua fórmula? Há vida após a morte? Tudo está no mapeamento do cérebro.

A advertência de Poole não implica uma crítica à ciência, mas sim uma reafirmação do seu papel. O desnudamento dessas inferências apressadas — e inválidas — é uma questão de tempo. Se tomamos essa literatura como divulgação de resultados na área da ciência da mente, é inevitável que o seu desmascaramento, para muitos, aparecerá como um tiro no próprio pé. Mas é bom observar o que os cientistas, felizmente céticos, como sempre, têm dito a esse respeito. Poole sumariza essa visão sensata:

“The human brain, it is said, is the most complex object in the known universe. That a part of it “lights up” on an fMRI scan does not mean the rest is inactive; nor is it obvious what any such lighting-up indicates; nor is it straightforward to infer general lessons about life from experiments conducted under highly artificial conditions. Nor do we have the faintest clue about the biggest mystery of all – how does a lump of wet grey matter produce the conscious experience you are having right now, reading this paragraph? How come the brain gives rise to the mind? No one knows.”

Um dos objetivos acessórios — mas não menos importantes — da ciência é desbancar a credulidade. Nesse sentido, como observou Paul Fletcher, um especialista em psicose e esquizofrenia, esses livros são “anti-científicos, já que a ciência deveria ser, ao contrário, nossa proteção contra a crença naquilo que nos parece mais conveniente, confortável ou persuasivo”. Os inimigos do passado, que continuam vivos, eram antigas pseudociências como a astrologia, o ocultismo. Hoje a aparência de hard science se tornou uma ameaça ainda maior.

13 comentários em “Novos inimigos

  1. “Os inimigos do passado, que continuam vivos, eram antigas pseudociências como a astrologia, o ocultismo”

    Você sabe diferenciar ciência moderna de ciência tradicional, para começo de conversa?

  2. Sim; e a distinção é simples. ‘Ciência tradicional’ — na qual, provavelmente, você inclui a astrologia tradicional — não é ciência, mas superstição.

  3. Ou seja, Orígenes e Gregório fazem parte da “tentativa tradicional mas falsa de ciência”, como se o método estivesse vinculado aos fenômenos mais evidente. Obviamente que é superstição, assim como era superstição a mecânica quântica nas suas primeiras pegadas. A alquimia? Superstição. Mas por que não a física [tradicional]? Vamos nos apegar ao caso mais recente: seria o Bóson de Higgs superstição ou a teoria está sob a bênção da comunidade científica?

  4. Não existe nenhuma fonte maior de credulidades e superstições do que a ciência moderna. Desde a crença em curas pelo magnetismo, curas quânticas, consciência quântica, multiversos, darwinismo, aquecimento global, e por aí vai.

    Os próprios cientistas são os que mais incentivam isso, pois sentem-se especiais ao serem compreendidos como uma nova classe sacerdotal. Na verdade eles precisam disso, pois vivem do dinheiro público, e precisam justificar esse gasto de alguma forma. São uma nova classe clerical estatal, como no antigo Egito.

    O ceticismo sempre resultou em relativismo e irracionalismo. Mas se estivermos ao lado da filosofia, não precisamos cair no engodo cético.

  5. Se a astrologia é ciência ou pseudo-ciência não sei. Mas que funciona, funciona. Melhor do que boa parte das ciências modernas.

  6. André, assim você facilita as coisas: se a astrologia funciona melhor que a ciência moderna, não precisamos sequer perder tempo discutindo.

  7. Filipe, há um misto de observação e de superstição na alquimia e nas especulações tradicionais. Parte do que é observado por e. g. alquimistas não precisa ser falso, e tampouco precisa dessas especulações para ser casualmente verdadeiro. O método científico (e não falo do cientificismo ou do naturalismo, que são sistemas de crença separados da ciência) tem como objetivo justamente afastar crenças falsas, causalidade mágica, fraudes e chutes. A pergunta famosa, para a astrologia, é se ela é uma fraude ou uma superstição, porque nada tem de crível (funciona tanto quanto a homeopatia, que por sua vez funciona tanto quanto os remédios placebo; não foi só por isso, por ser a astrologia falsa, que a Igreja a baniu sob pena de pecado mortal, CIC n. 2116, mas o fez com acerto); para a alquimia, porque faz uso do método empírico, a pergunta é o que ali é observação efetiva e o que é suposição sem apoio nos fatos. Acidentalmente, especulações desse tipo — e especialmente os erros propagados — é que motivaram, juntamente com a filosofia e o racionalismo, o surgimento da ciência moderna. Parte da cosmologia, por exemplo, é mais filosofia que ciência (e algo pior pode ser dito dessa pseudo-neurociência de que Poola fala), e muitos dos cientistas dessa área são vistos com justo ceticismo, por exemplo, pelos astrônomos. A credulidade não é bem vinda em lugar nenhum, apesar da propaganda que os ambientes alternativos e populares — tradicionalistas, astrólogos, alquimistas e ocultistas que permanecem no cenário, e mesmo certos divulgadores das ciências duras com suas inferências apressadas — fazem dela.

  8. “Sim; e a distinção é simples. ‘Ciência tradicional’ — na qual, provavelmente, você inclui a astrologia tradicional — não é ciência, mas superstição.”

    Qual a fonte dessa estupidez? O positivismo que tu fetichizas?

  9. Anônimo, a fonte da minha estupidez é o Catecismo da Igreja Católica, n. 1216. Na verdade, basta o bom senso. Aqui só discutimos assuntos de gente normal.

    Lembro, ainda, que o positivismo não é ciência, mas sistema de crenças. Do qual, a propósito, não partilho.

  10. Anônimo, poderia explicar o contexto? Qual exatamente a disputa a que você se refere e o que quer dizer com realismo de entidades da ciência?

  11. Excelente. Penso que o pessoal das “portas da percepção”, como Aldous Huxley, Stanislav Groff, Easalen Institute, abriram novas perspectivas sobre a compreensão da mente humana e observaram fenômenos que não podem ser explicados pelo pessoal dos neurotransmissores. Deve haver superstições e explicações corretas em ambas as vertentes. A “filosofia dura” entra ai para separar o joio do trigo. Não é isso, Julio?

  12. Vinícius: a ciência, aliada a bons divulgadores (que sejam também cientistas), já faz bem, ou faria bem, esse trabalho. Mas a filosofia certamente ajudaria a dizer, por exemplo, quais são as premissas implícitas da pseudo-neurociência, e porque não lhes devemos prestar assentimento. Como o pessoal é apressado, todavia, isso sempre vai acontecer…

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