Kathy Bates em Misery.
O Halloween se aproxima e a internet borbulha com listas de filmes de terror. Ano após ano, é muito difícil fugir das indicações óbvias (O Exorcista, O Bebê de Rosemary, O Iluminado, etc.) porque os bons filmes do gênero são raros se levarmos em conta a quantidade de lançamentos inexpressivos. É preciso ignorar um lixo gigantesco (Atividade Paranormal 1, 3 e 4, todos os Jogos Mortais, Albergues e assim por diante) se quisermos manter alguma admiração pelo gênero que, quando executado da maneira correta, é tão envolvente quanto perturbador. Afinal, um bom filme de terror não acaba quando a sessão termina, mas nos acompanha até em casa e atrapalha o nosso sono por noites a fio. Em tempos em que uma obra de arte é medida não por quesitos de beleza estética ou dificuldade de execução, mas pela capacidade de provocar sensações e sentimentos no observador, o horror não deve ser menosprezado como mero entretenimento, mas respeitado e analisado.
Nos primórdios do cinema, o terror surge atrelado a pelo menos duas grandes correntes artísticas: o expressionismo (como em O Gabinete do Dr. Caligari de Robert Wiene e Nosferatu de F. W. Murnau) e o surrealismo (A Queda da Casa de Usher, conto de Edgar Allan Poe adaptado por Buñuel e dirigido por Jean Epstein, Vampyr de Carl Th. Dreyer, entre outros). Com os filmes de terror da Universal, começam as adaptações em série de clássicos da literatura: Lon Chaney em O Corcunda de Notre Dame, O Fantasma da Ópera; Conrad Veidt no maravilhoso O Homem Que Ri; Bela Lugosi em Drácula; Boris Karloff em Frankenstein. Nos anos 40, da mesma forma que Orson Welles inaugura o cinema verdadeiramente moderno com Cidadão Kane, portador de linguagem própria, independente da literatura e do teatro, Val Lewton cria o terror moderno. Com uma linguagem cinematográfica magistral e repetida à exaustão até os dias de hoje, Lewton produziu filmes inteligentíssimos, apesar dos títulos bobos, como Sangue de Pantera, A Morta-Viva e O Túmulo Vazio.
Nos anos 50, temos as intervenções de William Castle nas salas de cinema, como esqueletos infláveis que brilhavam no escuro e que surgiam em momentos-chave. O resultado final do recurso até podia ser risível, mas era uma tentativa genuína de criar uma experiência diferente que fosse capaz de abalar a sensação de segurança do espectador (o resultado disso, hoje, é justamente o 4D). Mais adiante, temos outras tantas adaptações (algumas excelentes, outras nem tanto) de Poe, autor favorito dos cineastas de terror, com Vincent Price dirigido por Roger Corman; o ultra-colorido do estúdio britânico Hammer; A Noite dos Mortos-Vivos de George Romero, responsável por adicionar zumbis à cultura popular mundial. Isso tudo sem falar em Psicose e Os Pássaros de Hitchcock.
A década de 70 é um período especialmente fecundo e o gênero ganha mais algumas obras-primas: Tubarão de Spielberg (a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo deste ano está exibindo uma cópia restaurada do filme), O Inquilino de Polanski, Carrie de Brian de Palma, Alien de Ridley Scott e o já citado O Exorcista. É também na mesma década que se inicia o sub-gênero slasher em que psicopatas misteriosos matam todos que encontram pelo caminho em filmes como Halloween e O Massacre da Serra Elétrica (abrindo caminho para Sexta-feira 13 e derivados). Já nos anos 80, outros títulos dignos de nota são: O Enigma de Outro Mundo de John Carpenter (uma refilmagem que, para variar um pouco, é muito superior ao filme original), A Mosca de Cronenberg e A Hora do Pesadelo de Wes Craven que, apesar das seqüências mais bregas, possui uma ideia central verdadeiramente assustadora – o perigo do sono e da inconsciência.
Nos anos 90, Craven reflete a sua própria criação com O Novo Pesadelo – O Retorno de Freddy, em que os filmes de Freddy Krueger passam a afetar a vida pessoal da atriz principal da série, e também Pânico, um grande exercício metalinguístico que tenta renovar a tradição do cinema de terror, mas que acabou incentivando produções péssimas como a série de Eu Sei O Que Vocês Fizeram no Verão Passado, remakes sofríveis como A Casa Amaldiçoada, A Casa da Colina, o infame Psicose de Gus Van-Sant. A renovação que Craven pretendia com Pânico só ocorre de verdade em 1999 com A Bruxa de Blair, inaugurando o subgênero de found-footage (usado em Cannibal Holocaust em 1980, mas não com o mesmo impacto). Treze anos após o sucesso de Blair, o estilo de filmagem pseudo-documental ainda é imitado – às vezes mal, como em V/H/S, filme de 2012 sem data de estreia prevista para o Brasil, e às vezes bem, como em Atividade Paranormal em Tóquio e Atividade Paranormal 2. Porém, os espanhóis [Rec] e [Rec]2 seguem disparados como os melhores do estilo (o mais recente, [Rec]3, é uma decepção).
No final da década de 90 e começo dos anos 2000, foi O Chamado de Hideo Nakata, terror japonês tecnológico, mas com base em tradições bastante antigas do teatro kabuki – e que foi muito bem refilmado nos Estados Unidos por Gore Verbinski em 2002 – que provocou uma nova onda no gênero. Tentando pegar carona no sucesso de O Chamado, O Grito (refilmagem americana de Ju-On), por sua vez, não conseguiu adicionar nada de interessante ao original. Em 2005, Walter Salles transformou Água Negra, um terror íntimo e pessoal de Nakata, em um drama social dispensável. Depois do terror asiático, veio o chamado torture-porn (O Albergue, Jogos Mortais, etc.) e foi aí que o gênero degringolou. Afinal, com esse tipo de filme, o objetivo não é mais assustar ou perturbar, mas só enojar o espectador. É preciso haver alguma coisa além de sangue, tripas e órgãos falsos. É preciso uma história que se sustente sozinha, uma técnica muito apurada que esconda ou revele o necessário para provocar a imaginação (muito mais eficaz do que qualquer cena explícita).
Felizmente, o torture-porn já está demodé agora. No momento, quem lidera as bilheterias mundiais é Atividade Paranormal 4 – um mal menor. Vendo qualquer filme da série, já sabemos que objetos inanimados vão se mover sozinhos, mas que nunca veremos coisa alguma de fato. Os responsáveis pelas “trollagens” todas são sempre entidades invisíveis, nunca reveladas. E isto se aproxima mais do que o terror deve ser do que a série Jogos Mortais que, além de besta, tem uma fotografia saturada e uma edição metida à moderninha completamente patéticas. Com o lançamento de O Segredo da Cabana em novembro, as coisas devem mudar um pouco. Assim como Pânico, o filme busca discutir os clichês do gênero – e o faz de forma muito divertida e inusitada (antes de assistir, evitem ler resenhas ou procurar informações sobre a sinopse, é melhor). Até lá, organizei uma lista de filmes para este Halloween, títulos antigos e mais recentes que não mencionei no decorrer do texto, e tentando, na medida do possível, escapar dos mais conhecidos:
– À Meia Luz (Gaslight, 1944) – Dirigido por George Cukor (mais famoso por comédias como Minha Bela Dama e Núpcias de Escândalo) com Ingrid Bergman e Charles Boyer. É mais suspense do que terror, mas o sufoco que sentimos pela personagem de Bergman, enclausurada pelo marido e, aparentemente, ficando louca é tão grande que a sensação que nos provoca permanece por alguns bons dias.
– As Diabólicas (Les Diaboliques, 1955) – De Henri-Georges Clouzot com Vera Clouzot e Simone Signoret. Sobre duas mulheres que planejam o assassinato de um homem, marido de uma e amante da outra (franceses, né). Tudo se complica quando o corpo do homem desaparece e várias pessoas dizem tê-lo visto vivo pela cidade. O filme é um pouco longo, mas instiga e tem imagens perturbadoras.
– Os Inocentes (The Innocents, 1961) – Excelente adaptação de A Volta do Parafuso de Henry James. Deborah Kerr interpreta uma governanta que cuida de crianças perturbadas por fantasmas de antigos funcionários da casa. Bastante bonito plasticamente, com ótimos efeitos e movimentos de câmera e um final, graças à performance de Kerr, bem angustiante.
– O Colecionador (The Collector, 1965) – O melhor filme já feito sobre psicopatia. Dirigido por William Wyler, com Terence Stamp ainda bem novo. O personagem principal é excelente porque é complexo: em alguns momentos, parece completamente normal e até carismático, dando ares até de romance; em outros, se torna vingativo e ameaçador. Muito, muito bom.
– Intermediário do Diabo (The Changelling, 1980) – Esqueçam o título. Não tem nada ver. Depois da morte da esposa e da filha, um homem vai morar numa casa antiga e, claro, assombrada. Seu drama pessoal começa a se confundir com a história da casa e, querendo se desfazer dos traumas todos, começa a investigar o que aconteceu no lugar. Bastante eficaz, lida com uma série de elementos repetitivos no gênero, mas nunca de forma óbvia ou previsível.
– Louca Obsessão (Misery, 1990) – Baseado no romance de Stephen King, com Kathy Bates, ganhadora do Oscar de Melhor Atriz pelo filme. Sobre um escritor que sofre um acidente e é resgatado por uma fã obcecada que o aprisiona em casa. Ótimo para assistir nesta época repleta de stalkers anônimos que a internet nos proporciona diariamente.
– Pulse (Kairo, 2001) – Filme de Kiyoshi Kurosawa, expoente do cinema japonês (premiado por dramas como Tokyo Sonata e Bright Future), sobre inúmeras aparições de pessoas que cometeram suicídio. O filme tem um tom melancólico e um final tão pesado que beira ao existencialismo.
– O Orfanato (El Orfanato, 2007) – Filme espanhol produzido por Guillermo del Toro, sobre uma mulher que compra o orfanato em que viveu quando criança para criar uma casa para crianças com necessidades especiais (entre elas, o seu filho Simón, que desaparece durante uma festa). Bastante original e envolvente. Vejam antes que saia a refilmagem.
– Deixa Ela Entrar (Let The Right One In, 2008) – Filme sueco sobre um garoto solitário que conhece uma menina vampira e se apaixona por ela. A refilmagem americana, Deixe-me Entrar, não é terrível, mas o original ainda é muito, muito melhor.
– Sede de Sangue (Thirst, 2009) – Dirigido por Chan-wook Park (de Oldboy, Lady Vingança e Mr. Vingança), inspirado no livro de Émile Zola, Thérèse Ranquin. Sobre um padre que se torna vampiro e precisa lutar contra as tentações impostas pela sua mais nova condição. Assombroso como tudo que Chan-wook Park faz (em breve, o diretor sul-coreano vai estrear em Hollywood com o filme Stoker).
Muito bom, Ieda, mas o que você acha de “A Órfã”? Se não me falha a memória foi o último filme de terror que assisti e, na minha opinião, é um dos melhores do gênero.
Não entendi porque Cidadão Cane “inaugura” o cinema moderno. É na verdade um filme bastante lento…
Faltou mencionar Cabo do Medo (scorcese, de Niro e nolte)
Silêncio dos Inocentes dá bastante medo também
Larissa, não achei ruim, nem bom. Só ok. Terror com criança maléfica tem desde a década de 50 e é difícil inovar.
Max Ricardo, anos trás, eu também não entendia porque Cidadão Kane era considerado o melhor filme americano e principal representante do “modernismo” no cinema. Na faculdade, tive aula com um professor excelente que deu uma aula toda só sobre Cidadão Kane, explicando justamente todos esses títulos. O que torna ele moderno não é ser lento ou rápido, mas porque a cinematografia era nova, completamente diferente do que era feito até então (ainda muito influenciado pelo teatro). Além disso, a cinematografia combina com o tema do filme numa união perfeita. Mas só explicar isso já geraria um outro texto imenso (e que já foi escrito por centenas de outras pessoas mais capazes).
E, ah, eu gosto de Silêncio dos Inocentes, mas ele entraria, pra mim, na parte de indicações óbvias. Vale ver O Cabo do Medo original também.
FELIZMENTE o tal torture-porn já virou demodé… found-footage também já está passando do ponto, ainda que eu goste bastante dos filmes do gênero… só confesso não ter entendido como você pode considerar Atividade Paranormal 1 ruim, e Atividade Paranormal em Tóquio bom…
Muito bom texto, Ieda. Ótimas análises sobre este gênero tão complexo. O terror, tal qual a comédia, é um gênero que – por provocar reações que dão solavancos na narrativa (ex: susto ou risos) – permite verdadeiras obras primas (poucas) e uma tonelada de porcaria.
Você pinçou uma bela coluna vertebral do gênero, com as grandes iniciativas. Senti falta apenas de algo sobre a contribuição tailandesa, como “Espíritos”.
Naquele país, o terror é um estilo genuinamente explorado – inclusive com produção de novelas sobre fantasmas, para toda a família. Parabéns pela análise e obrigado pelas dicas.
Abs.
Marcelo, Atividade Paranormal 1:
http://www.youtube.com/watch?v=HdZW2b0FzPc&feature=player_embedded
PH, entra na categoria do terror asiático, né? Gosto muito do Espíritos (Shutter), mas bem menos de The Eye, por exemplo.
Ieda, qual entra na categoria de asiático? O Atividade Paranormal?
Terror asiático é bom. The Eye, excelente exemplo.
Rabisquei um continho de baseado nesta linha oriental, fúnebre:
http://angustiadoprelo.blogspot.com.br/2012/09/tuc-tuc.html
Tá mais pra ‘terrir’, mas fala de pocong – uma lenda da indonésia, sinistra.
Mas o maior problema do terror asiático são os malditos remakes americanos… Abs!
Ieda,
E esse Novo Extremismo Francês do Martyrs? Muito na linha do torture-porn?
Não, PH, o Espíritos, que você tinha mencionado no comentário anterior.
tri bom o post.
gosto muito do espanhol REC. tem uma linha muito tênue q separa filmes dessa onda entre bons e fakes – atividade paranormal tem pouco fôlego, é menor; rec é sensacional e acho q Contatos de 4º grau (http://www.imdb.com/title/tt1220198/) tbm consegue nos envolver.
Acho q dá pra citar tbm Os estranhos (http://www.imdb.com/title/tt0482606/), talvez o filme mais tenso q já vi, pega uma linha meio Jason e Freddy, mas sem sair de casa.
Sério!? Os Pássaros virou terror? Louca Obsessão é filme de terror? Que aula da facú eu andei perdendo? E o que é suspense? Suspense e terror viraram sinônimos? E ninguém me avisou!? Ieda, é bom fazer um post sobre suspense e depois outro sobre as diferenças entre terror e suspense. Até agora, virou tudo uma coisa só!
Por coincidência, tinha acabado de ler A Volta do Parafuso, mas tantos anos de cinema pode ter comprometido minha leitura. Não deixava de pensar em filmes como Os Outros e O Sexto Sentido (que poderiam entrar na lista).
Excelente panorama do gênero. Serve de guia não só para o Halloween mas também para os neófitos. A respeito da chamada “Trilogia do Apartamento” de Polanski, Repulsa ao Sexo me causou impressão mais forte do que O Inquilino. Bom, qual a tua opinião sobre A Chave Mestra?
Caio S., eu discuti isso com o Joel antes de publicar o texto. Ele não considera Misery um filme de terror, eu sim. Pra mim, se tem uma demente que quebra sua pernas com uma marreta, é terror. Simplesmente porque sai da sugestão e vai para o ato em si. Se existe sangue, morte, cenas mais ou menos explícitas de violência, se existe a consumação de uma tensão, enfim – terror. (e eu não sabia que eu era imbecil por ter aprendido alguma coisa na faculdade, veja só que coisa)
Ewerton, não gostei de A Chave Mestra. Como vejo muito filme de terror, já sei pela edição e pelo som quando vão tentar me assustar (e de que forma). Quando eu consigo prever TODOS esses momentos, é porque o filme não tem nada de diferente, que é óbvio, etc.. A Chave Mestra foi assim pra mim.
Ok, se sai da sugestão e vai para o ato vira terror. Agora me faz um favor, me diga qual filme de suspense não tem ao menos uma sugestão que vira ato. Ora…
Eu concordo que sugestão é suspense e ato é terror, mas precisa ter uma proporção. O que é mais relevante no filme? Ou que atos caracterizam terror? Quantos filmes de drama não tem cenas parecidas com esta que vc diz, de quebrar as pernas, tem até assassinato! Então o drama vira terror? Sociedade dos Poetas Mortos tem um suicídio, o filme mostra as pernas do rapaz suspensas… É um filme de terror? E A Vila? A consumação da descoberta, aquele pessoal com máscara, aquilo é filme de terror? E Sexto Sentido, com aqueles espíritos voando é filme de terror? E “Os Outros” é terror? Com todo o respeito, mas desse jeito “A Paixão de Cristo” deixa de ser bíblico, ou épico, ou biográfico, e vira filme de terror? É um filme de terror?
Proporção e intenção são as palavras certas. É subjetivo, sem dúvida. Mas esta sua subjetividade não conseguiu me convencer… Abraço!
Caio S., cada filme é um caso. Eu nunca afirmei que Sociedade dos Poetas Mortos (ou qualquer filme parecido) era um filme de terror. Por outro lado, sim, A Paixão De Cristo foi e é considerado por muitos como um filme de terror (um terror com o propósito de edificação, diferente dos terrores mais comuns). O problema não é nem morte em si, mas a forma como ela é mostrada, se a violência é gráfica ou não. Quer um exemplo de filme de suspense? Intriga Internacional do Hitchcock. Tem uma morte, que mal aparece e só serve de artifício pra movimentar o resto do filme, mas o perigo que rodea o personagem principal NUNCA é consumado.
Mas, enfim, não estou aqui pra te convencer individualmente. Se não gosta, não leia. Abraço.
“Se não gosta, não leia. Abraço.”
=
Ora, pombas, e como é que o sujeito vai saber se gosta se não ler?
SAUDADES DO MARTIM!
(Ieda,
Pra realmente não deixar de registrar: fiquei curioso em saber da sua resposta pra uma pergunta que fiz aqui (o comentário 8), mas acho que comentamos ao mesmo tempo e você acabou não vendo… :P).