O cinema como alucinação

Posso imaginar como deve ter sido o pitch de Inception feito por Christopher Nolan aos executivos da Warner Bros.. No melhor estilo George Constanza, ele deve ter dito o seguinte: “Suponham que vocês produzam uma mistura de O Grande Golpe, de Stanley Kubrick, O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais, À Serviço Secreto de sua Majestade, da série James Bond, com um pouco do meu Memento, desta vez com Leonardo Di Caprio no papel principal. Aí está o meu filme”.

Não há outra maneira de interpretar Inception. Trata-se de uma brincadeira de Nolan, mas de uma brincadeira que pode – e deve – ser levada a sério. Afinal de contas, seu tema é essencial para os nossos dias: Devemos ou não devemos optar viver na realidade tal como ela é?

Este sempre foi o eixo dos outros filmes de Nolan, de Memento até The Dark Knight, passando por The Prestige. Inception radicaliza tudo isso adicionando um toque de pimenta: o do experimentalismo formal.

Se antes tínhamos truques sutis de montagem, homens vestidos de morcegos, policiais atormentados pelas noites brancas do Ártico, agora temos sonhos dentro de sonhos dentro de sonhos, em uma espiral que parece infinita.

Isso não significa que Inception não tenha suas falhas; falta a Nolan uma certa sutileza em alguns detalhes, como, por exemplo, batizar seus personagens com nomes como “Mal” e “Ariadne” – que, aliás, parece cumprir a função de espectador desatento ao perguntar em qual subconsciente irá entrar, uma questão que todo mundo irá fazer justamente devido à complicação da trama.

O que importa não são as respostas, mas a aventura que o filme proporciona – algo que só o cinema, feito com requintes de alucinação, pode provocar.

Pois é na alucinação que Nolan investe – e tudo isso para esconder do espectador dois detalhes perturbadores.

O primeiro é o fato de que nunca temos idéias originais. Elas são sempre implantadas por alguém – e nós passamos a vida inteira acreditando que são exclusivamente nossas. Nunca foram: as idéias que julgamos originais são projeções do que outras pessoas querem que nós pensamos para (e por) elas.

O segundo detalhe é a noção do que significa catarse no desenvolvimento dramático de histórias e mitos que moldaram o Ocidente – e esta palavra não é invenção deste escriba uma vez que é repetida quatro vezes no próprio filme. Supomos que a catarse é um momento de purgação das emoções, no qual o público se identificará com o personagem principal, acompanhará a sua jornada interior e, no final, se sentirá restituído à comunidade, com a impressão de que o drama foi finalmente resolvido. Ora, sabemos que isso não passa de uma ilusão: na vida, ninguém se resolve, nada é resolvido, tudo fica em aberto e a imperfeição é a regra geral. A crítica à catarse – instituída por Shakespeare, como bem descobriu René Girard, e depois Cervantes, Dostoievski e Proust – faz o artista criar novas formas dramáticas para que o espectador questione a ilusão provocada e não caia na vertigem ritualística de purgar as suas emoções mais profundas, deixá-las aparentemente resolvidas e assim não lidar com elas enquanto a vida corre para a encruzilhada de problemas.

Inception usa o cinemão de forma brilhante para criticar a catarse procurada pelo seu público. Deixa o seu final em um suspense ambíguo – afinal, o pião vai ou nao vai cair?

Não importa. A questão não interessa mais aos personagens, mas é dirigida a nós. O que queremos? Viver na realidade ou no sonho?

A intenção de Christopher Nolan é usar o cinema para questionar o próprio meio como a ilusão de massas – e assim embaralhar o real e o imaginário. Talvez quem tenha dado a melhor pista para entender Inception foi Leonardo Di Caprio ao afirmar, em uma entrevista, que o filme tem mais de 8 1/2 de Fellini do que propriamente O Ano Passado em Marienbad (película que, aliás, o próprio Nolan só conseguiu ver quando finalizou Inception).

O insight é brilhante: se Inception é sobre o cinema – que, afinal, tem a mesma lógica dos sonhos pois quem se lembra de chegar em uma cena logo pelo início da cena e não no meio de um corte? – então podemos afirmar que Don Cobb é o artista em crise, Arthur é o produtor, Ariadne é a roteirista, Eames é o desenhista de produção, Yusuf é o editor, Saito é o financiador e Robert Fisher é nada mais nada menos que o próprio público. (E, além disso, seria a Mal de Marion Cottiliard a Claudia Cardinale de Nolan?)

Como o Guido de Fellini, o Don Cobb de Nolan aceita o real e a turbulência da vida. Porém, o que o diretor Christopher Nolan faz é jogar na cara do público ao sugerir que este não aceita a realidade tal como é – e prefere o cinema para encarar os problemas sem solução que a vida apresenta. Portanto, eis o motivo do pião que roda e da tela preta que vem logo a seguir: a catarse nunca estará completa porque a vida é uma constante abertura a algo que não sabemos mais entender.

Obviamente, estas idéias não são minhas. Mas quem disse que originalidade é motivo de orgulho?

(A imagem acima vem do Trabalho Sujo, de Alexandre Matias, que dedicará uma semana especial à Inception.)

10 comentários em “O cinema como alucinação

  1. Antes de tudo, peço desculpas por lançar mão de uma informação que em nada contriubuirá com post, no entanto, somado com tudo que vem ocorrendo no Brasil, acredito ser urgente e imediato espalhar a notícia :

    Escritor Yves HUBLET morre em Brasília, de forma estranha, após ser preso
    incomunicável.
    Amigos,
    Lembram do episódio do aposentado que deu uma bengalada em José Dirceu, no
    tempo do “mensalão”? Pois o aposentado era um escritor de romances
    infanto-juvenil, que após ser perseguido (pelo sistema repressivo do PT?),
    teve que se mudar para a Bélgica.
    Em maio deste ano, esteve no Brasil para assuntos particulares tendo,
    inclusive, estado em Curitiba quando me telefonou para me cumprimentar.
    Disse estar contratando a Editora Protexto, do escritor Airo Zamoner, para a
    edição de mais uma obra.
    Antes de retornar à Bélgica, passou por Brasília e, ao desembarcar, foi
    preso, incomunicável, não tendo sequer o direito de contatar advogado ou
    amigos.
    Adoeceu no cárcere e foi levado a um hospital onde acabou falecendo.
    Apenas esta semana, vazou a morte deste escritor paranaense, que ficou
    revestida do mais absoluto silêncio dentro dos órgãos governamentais, ao
    molde dos piores anos que esta Pátria teve. Será que estamos voltando aos
    porões de uma ditadura?
    Se a informação for verídica, tempos negros envolvem a capenga democracia e
    os mais elementares direitos humanos.
    “Pátria amada, salve, salve!”
    Carlos Zatti – Escritor
    Membro do IHGPR e do CTG Porteira Aberta

  2. Excelente análise, Martim.

    Achei o nome da personagem de Ellen Page até que adequado. Afinal, Ariadne (Ariadne no filme) é quem de dá a espada (“motivação”) e o fio (“ela [Mal] não é real”) para que Perseu (Cobb) consiga sair do labirinto (sonho), que ele se meteu por não querer aceitar o real, depois de derrotar o Minotauro (se perdoar pelo que fez à Mal).

    Talvez eu esteja viajando.. de qualquer maneira, vejam o filme.

    Abraços,

    Henrique Santos.

  3. Quem entra no labirinto do Minotauro não é Perseu, é TESEU, caro comentador Henrique. Mas a referência ao mito é óbvia mesmo, mas não achei imprópria por conta disso, mto pelo contrário. (Uma pena que Nolan não explorou o “totem” de Ariadne no filme, que é uma peça de xadrez…teria sido interessante utilizar isso, mas ele largou mão, infelizmente).

    Não acho que a “derrota do Minotauro” seja o perdão pelo mal que fez à esposa (cujo nome, aliás, não quer dizer muita coisa em inglês…não sei se entendi direito a associação feita pelo Martim, mas não creio que esteja correta), mas a libertarção da imagem que ele tentava reter dela por conta da culpa, claro, e da perda! Ele, assim como ela, também estava “preso” ao próprio “sonho” de recuperá-la… Lembrem-se da excelente fala de Cobb para Mal em relação à sombra que era aquela “imagem” criada por ele, comparada com a complexidade da mulher real que foi sua esposa. E há também uma espécie de tentativa de “redenção” no “salvamento” de Saito do limbo. Assim me pareceu, pelo menos.

    Uma das resenhas americanas para o filme faz um comentário interessante sobre Di Caprio, com o qual eu concordo (ele escolheu muito bem seus últimos papéis, principalmente os dois últimos):

    “DiCaprio will take some flack for playing a similar character to his one in Shutter Island from earlier this year. Both Cobb and Teddy Daniels have become separated from their families, suffer from unbearable guilt, and have a tough time handling the nature of reality.

    ‎”Here’s another similarity: DiCaprio is great in both movies. I wouldn’t worry about him getting typecast as tragic-figure-with-tenuous-grasp-on-reality-as-a-result-of-intense-guilt-and-regret.”

  4. O filme é divertido e o suspense prende. É elaborado mas não fica confuso. Fala do problema entre escolher realidade ou sonho. Mas apresenta uma solução meio técnica – a capacidade de Cobb é técnica. Cobb, usando de sua capacidade de trabalhar dentro do sonho alheio, resolve seus conflitos internos, resolve seu problema com a polícia e volta para seus filhos, faz o trabalho para o qual foi contratado, considerado por alguns impossível, salva o mundo de um monopólio energético, salva um sujeito de ficar no limbo e voltar do sonho sem cérebro… para mim isso é demais.

  5. Antonio Araujo,

    o filme apresenta um final ambíguo, no qual não podemos afirmar com certeza se Cobb voltou do sonho ou não. Não vemos o peão dele caindo, no fim do filme… concordo que, se aquele peão tivesse caído, o feito de Cobb poderia ser digno de um McGyver. Mas há a dúvida, felizmente…

  6. Filme superestimado.

    Sonho dentro de sonho dentro de sonho, etc, não deixa de ser uma idéia batidaça.

    Só que foi explorada de uma forma tecnicamente estupenda.

    E aquele “final aberto” eu já previa nos primeiros 5 minutos, ainda mais tendo em vista a temática do filme.

    Mais uma película pra adolescente que ganha contornos épicos e profundíssimos porque se empenha em esfregar na cara de todos uma complexidade cool.

    “Mais do mesmo”…

    Ademais, não gostei da edição do filme. Não há pausa para respirar, nem para demorar o olhar na boa direção de arte, chega a dor de cabeça.
    Um mal do cinema do séc. XXI, aliás.

  7. É, também não adorei.

    É engenhoso, um bom puzzle com algumas imagens legais, e só. Um quebra-cabeça fechado em si mesmo, com pouco ou nada a mostrar sobre a realidade, condição humana, ou algo do tipo, que é, creio, a finalidade da arte.

    Como mergulho no subconsciente e ao mundo dos sonhos, nota zero. F. Reprovado. É mais um mergulho no mundo de programas de computador. Para ver sonhos e o subconsciente na tela, melhor ficar com David Lynch.

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