O cristianismo e a experiência da miséria

Pedro Ribeiro*

                              A grandeza do homem é grande na medida em que ele se conhece miserável. Uma árvore não se conhece miserável. É, pois, ser miserável conhecer-se miserável; mas, é ser grande conhecer que se é miserável. Todas essas misérias provam sua grandeza. São misérias de grande senhor, misérias de um rei destronado “

Blaise Pascal

 

Como talvez o amigo leitor já saiba (afinal, esta é uma informação que consta em minha biografia no site da Dicta), sou professor de filosofia nos âmbitos do ensino médio e de pré-vestibular. Ora, certa feita, Diego, um de meus alunos mais próximos, daqueles que têm um real interesse por filosofia, pediu permissão para questionar-me sobre algo mais pessoal do que o tema que discutíamos em nosso grupo de estudos. Tendo eu permitido, ele disse que andava curioso, pois, de um lado, eu era seu professor de filosofia, e – mais do que isso – ele via, enfim, que eu levava a atividade filosófica razoavelmente a sério. De outro lado, eu também deixava claro que sou católico praticante. Surpreso diante daquilo que, aos seus olhos, era uma contradição insolúvel, Diego me perguntou: “Afinal, por que o senhor é cristão?”

 É difícil descrever com palavras minha reação diante daquela pergunta. De fato, já estou acostumado a ouvir todos os alunos me perguntarem, logo na primeira aula, se eu acredito em Deus ou não; também já estou preparado para a sua surpresa habitual em saber que sou religioso e até mesmo catequista. O ponto é que o problema que o Diego me levantava era radicalmente diferente. Ele não me questionava porque eu cria em Deus ou porque eu era religioso. O que ele queria saber era porque eu havia escolhido especificamente o cristianismo como profissão de fé. E sé é difícil descrever com palavras minha reação naquele momento é porque jamais imaginaria receber esse questionamento de modo tão direto; lembro-me, no entanto, como se fosse agora da resposta lacônica que lhe dei: “Sou cristão porque eu sei que preciso ser salvo”.

 É possível que o meu caro leitor não entenda porque aquela simples pergunta me surpreendeu tanto, mas o fato é que, ao fazê-la, mesmo que a partir de uma grave incompreensão das relações entre razão e fé, Diego colocou diante de mim a única questão realmente relevante para quem se diz um seguidor de Cristo. E eu só pude respondê-la de bate-pronto precisamente porque já havia me inquirido algumas vezes antes a respeito dela. Com efeito, há uma série de motivos acidentais que fazem de alguém um cristão: a criação familiar, o grupo de amigos, o testemunho de vida de alguém, a busca por um milagre. O fato, porém, é que nenhum destes, em si mesmo, é um motivo verdadeiramente razoável – e não o são porque todos eles, em outras circunstâncias, podem perfeitamente apontar para outras crenças: há famílias não cristãs nas quais poderíamos ter nascido, nosso grupo de amigos poderia advogar outro ponto de vista religioso, há pessoas de grande virtude e que não são cristãs, e talvez, por fim, um bom médico resolvesse nosso problema de saúde. O que, então, é um bom motivo para alguém se tornar cristão? Qual é a “razão de nossa esperança” (I Pe 5,13)? Dito de modo claro e preciso, qual é o substrato existencial, a postura diante do mundo que se requer de alguém que se diz seguidor de Cristo e que possa justificar sua profissão de fé?

Em verdade, o cristianismo consiste basicamente em uma crença fundamental: Deus, o fundamento último de todas as coisas, o princípio de tudo o que há, Aquele onde radicam ontologicamente todas as criaturas, do alto de Sua majestade, desceu até nós, encarnou-se em Jesus Cristo, se fez homem; inocente, foi julgado, condenado e crucificado, sofreu imensamente, morreu e foi sepultado, mas ressuscitou e retornou à glória do Pai – tudo isso unicamente por amor aos homens, para remi-los de seus pecados. Em outras palavras, o cristianismo é fundamentalmente uma religião da redenção, uma afirmação pujante de que Deus ama de tal modo os homens que foi capaz de morrer por eles para salvá-los de si mesmos. Curiosamente, já ouvimos isso tantas vezes que tal doutrina nos parece banal, mas o fato é que ela é absolutamente não trivial. Na verdade, ela é basicamente extraordinária. E o é fundamentalmente porque exige do homem uma coisa: a consciência profunda de sua própria miséria, a convicção inabalável de que não se passa de pó.

De fato, para um típico judeu do primeiro século, talvez fizesse sentido ouvir a pregação cristã a respeito de um Messias, mas imaginemos apenas por um instante o que foi anúncio evangélico dirigido por Paulo e os seus aos primeiros gentios. Por certo, a primeira reação de qualquer pagão comum à notícia de que um homem chamado Jesus se dizia Deus e morreu por ela seria pensar que aquilo não faz qualquer sentido. Afinal, alguém por acaso havia pedido a Deus para que ele se encarnasse? Alguém havia solicitado seu auxílio? E, de fato, a grande resistência de boa parte da população gentia à pregação cristã, inclusive com alto grau de ridicularização, não deixa de legitimar esta impressão (vemos isso, por exemplo, em Atos 17,32). Curiosamente, porém, parte daqueles pagãos, ainda que uma parte pequena a princípio, se sentiu tocada por aquela estranha doutrina. Ora, o que faria alguém se converter a uma religião que consiste basicamente na fé de que Deus se entregou pelos homens? Simples: a crença profunda de que se precisa ser salvo. Com efeito, este é um ponto essencial e nunca realçado o bastante: a outra face do dogma da redenção dos homens é, necessariamente, o dogma do pecado original. Só faz sentido dizer que os homens foram salvos por Deus se cremos igualmente que o homem precisa ser salvo, mas não pode se salvar por si mesmo; em outras palavras, se cremos que o homem é irremediavelmente (ao menos por suas próprias forças) mau, egoísta, invejoso e traiçoeiro – em suma, um canalha consumado.

 A experiência fundamental da vida cristã é, portanto, a experiência da própria miséria. Só é cristão quem crê profundamente que precisa ser salvo e que, por isso mesmo, reconhece a Cristo como seu salvador. A fé cristã brota, quando é genuína, de um autoconhecimento radical, o que quer dizer aqui de uma percepção muito clara da própria falibilidade – não uma falibilidade acidental, circunstancial, mas sim uma falibilidade estrutural e inescapável. Quem acredita que pode dar conta da própria vida sozinho, quem crê sinceramente que pode ser realmente feliz e agir de modo decente sem o auxílio sobrenatural, simplesmente não pode ser cristão. O cristianismo não serve para um sujeito assim – e não serve, ao fim e ao cabo, pois se o cristianismo é, de um lado, a afirmação pujante da expiação universal dos homens, ele também é, em virtude disso mesmo, a afirmação igualmente pujante da miséria e da fraqueza humana. Compreendida esta dialética inexorável, é fácil perceber que o arquétipo da vida cristã é, assim, o famoso leproso do evangelho, o qual, se por um lado, admite possuir uma enfermidade absolutamente insanável, por outro, prostrava-se diante do Mestre e afirmava com fé perfeita: “Senhor, se queres, podes curar-me” (Mateus 8,2). No cristianismo, de fato, a miséria humana é, a um só tempo, assumida e transfigurada pelo contato com Nosso Senhor. Na vida pessoal do cristão, em particular, este é inevitavelmente um processo cíclico, em que, se em boa parte das vezes o cristão exulta pela bondade divina, regularmente retorna ele à sua própria lama interior, ao se perceber praticando mais e mais pecados, vistos não mais como antes da conversão, isto é, como meros erros, mas sim como um desprezo ingrato por Aquele mesmo que se dignou morrer por nós.

Sem uma percepção profunda e recorrente da própria miséria, sem um retorno incessante à intuição clara da própria falibilidade, qualquer experiência cristã redunda em fracasso – e de dois modos: seja no abandono da religião propriamente dita, seja no farisaísmo, isto é, no moralismo religioso, que é talvez a mais terrível perversão da fé. No catolicismo, esta visão não pessimista, mas propriamente exata de si mesmo é exercitada em especial pelos atos penitenciais de cada missa celebrada, pelas confissões sacramentais e, acima de tudo, pelo evento singular que é o ofício anual da Sexta-Feira da Paixão. Ao olharmos para o Cristo crucificado e compará-Lo com sinceridade à nossa fraqueza estrutural, somente uma frase é possível: “Miserere nobis! Senhor, tende piedade de nós!” vela

* Pedro Ribeiro é graduando em filosofia pela UERJ e trabalha como professor da disciplina nos âmbitos do Ensino Médio e de pré-vestibular

Um comentário em “O cristianismo e a experiência da miséria

  1. Muito bom texto. Conheci este site a pouco e gostei bastante desse texto. É difícil achar conteúdos como esse hoje em dia.

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