Lucifer, son of the morning, I’m gonna chase you out of Earth.
Na segunda metade do século 19, o renomado historiador francês Jules Michelet detalhou toda a história da prática da magia negra na Europa, a partir do que ele considera um momento de descontrole e desespero na Idade Média. De seu livro, La Sorcière, lemos que
“le délicat bijou du Diable, la petite sorcière conçue de la Messe Noire où la grande a disparu, elle est venue, ella a fleuri, en malice, en grâce de chat. Fine et oblique d’allure, surnoise, filant doucettement [sic], faisant volontiers le gros dos. Rien de titanique. Celle qui naît avec ce secret dans le sang, cette science instinctive du mal, elle ne respectera rien, ni chose ni personne en ce monde”.
Satã, deste modo, se apresenta na sutileza e na fineza. No entanto, apesar de não haver nada de “titânico” em sua aparição, a feiticeira que conclama o mal não respeita nada nem ninguém.
Parece-me a descrição mais adequada para Minnie Castevet. Figura berrante no filme Bebê de Rosemary, de Roman Polanski, Minnie transita entre os corredores secretos do Bramford feito uma gazela agitada e cheia de planos diabólicos, porém com o que eu chamo de reconstrução estética do discreto charme da burguesia, em uma Manhattan, em 1968, consumida pelo poder e em que o pessimismo e a paranoia já foram cristalizados e sugados pela psicanálise das grandes metrópoles.
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A década de 1960 ficou marcada pela igreja de Anton LaVey, talvez o satanista moderno mais popular do mundo até hoje. Autor da Bíblia Satânica, referência obrigatória para qualquer interessado no assunto, LaVey fundou, em 1966, a Church of Satan em uma casinha modesta em San Francisco. Era o auge do que podemos chamar de satanismo ateísta, no sentido que não apresenta nenhum dogma ligado à adoração de Satã como divindade. Antes, prega um materialismo absoluto e o individualismo, usando a imagem satânica apenas como símbolo. Desde 2001, seu QG foi transferido para Hell’s Kitchen, em Nova York.
Nos últimos 50 anos, Manhattan, bem longe da ensolarada Califórnia, fervilhou de centros satânicos de diversas vertentes, entre teístas e não teístas. Além da sede da Church of Satan, encontramos lá grupos luciferianistas, como o Temple of Set e a Church of Azazel, das maiores no país. Diferentemente da ideologia proposta por LaVey, esses grupos acreditam em Satã e o veneram em forma de rituais que vão de hinos de louvor (em inglês e latim), missas negras, técnicas de meditação e magia.
Não faltam detalhes sinistros à cidade. Por exemplo, a capela religiosa da sede da ONU em Nova York, da Lucis Trust, que foi fundada por Foster e Alice Bailey como “Lucifer Trust”, na década de 1920. Embora a igreja negue hoje qualquer status ligado ao satanismo, reiteram que “a queda do anjo não representa uma desgraça ou pecado, mas antes um ato de sacrifício extremo, tal qual sugerido pela palavra Lúcifer” (sic), conforme lemos em seu site oficial.
Já o Dakota, um dos edifícios mais elegantes de Nova York e cuja fachada foi usada para representar o Bramford do romance original de Ira Levin, reserva boa parte de sua fama a suas histórias trágicas. Localizado no Upper West Side de Manhattan (aliás, exatamente oposto ao local da sede da ONU, que fica no East Side), o prédio, apesar de seu estilo vitoriano tardio, guarda semelhanças também com a típica arquitetura paladiana, por seus balaústres, pilares e tímpanos que passam o ar de um palazzo no meio da metrópole, um símbolo de poder.
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É no Dakota (Bramford, ficcionalmente, como quis Ira Levin) que os Castevets moram. A abertura do filme primeiro mostra um panorama de Nova York, do então mais industrial Brooklyn a Manhattan, chegando ao Central Park e enfim o Dakota, enquanto Mia Farrow (que interpreta Rosemary) canta uma música tenebrosa apenas com la-la-la. Leva um tempo até sermos apresentados propriamente a eles e os minutos iniciais servem para ambientarmo-nos ao casal recém-chegado ao prédio, com muitos planos e ambições.
O que temos é uma sequência de detalhes que anunciam a presença do mal. Desde o olhar de Diego, o ascensorista ao fechar a porta do elevador, até a cartinha que Rosemary encontra no apartamento, ainda com os móveis da antiga moradora. São inúmeros os detalhes, alguns mais explícitos, outros mais simbólicos. As sutilezas que evocam o mal, não a força titânica.
Minnie e Roman são primeiro ouvidos antes de serem vistos. De seu quarto, Guy e Rosemary acompanham o estranho ritual que ocorre no apartamento vizinho – um grupo de pessoas canta um estranho hino do outro lado. Pouco antes disso, é Terry Gionoffrio que conta a Rosemary sobre os Castevets – ela foi “resgatada” por eles de uma vida marcada por drogas e na rua.
É pela morte mais explícita que conhecemos de fato os Castevets – até este momento, nos 15 minutos iniciais do filme, só temos o breve anúncio da tragédia e do horror. Terry se jogou da janela do sétimo andar e Minnie e Roman chegam pouco depois do ocorrido. A câmera acompanha a sua chegada por trás de um policial, o que denota certo de efeito de aproximação do espectador.
Enquanto Roman se veste mais discretamente, Minnie é extravagante desde o princípio, das vestimentas à maneira como age e fala. Quando o guarda lhes informa do suicídio de Terry, ela reage impetuosamente com um “Não é possível, houve um engano” enquanto Roman mantém o controle e pondera que esse tipo de situação já era de certo modo esperado por ele – Terry não tinha solução. Somente quando Minnie atravessa todo o grupo de pessoas e de policiais na frente do Bramford é que ela se dá conta que é de fato a moça, com o rosto todo estourado e ainda com o pingente, que lhe havia sido ofertado para boa sorte pelos Castevets, preso ao pescoço. Neste momento, os dois casais travam contato pela primeira vez, quando Rosemary, que também havia chegado há pouco ao prédio, comenta do irmão de Terry. Já não havia mais volta para o mal.
Roman é o oposto de Minnie. Ele é delicado, inteligente – viajou para todos os lugares, “you name the place and I’ve been there” – e no momento mais aterrador do filme, ele convence Guy do pacto com Satã silenciosamente: a sua imagem fica fora do plano, coberta por uma parede, envolto em fumaça de cigarro, enquanto Guy ouve resoluto com que tipo de gente está lidando – e aceita o trato. Aliás, fica evidente como Minnie representa essa espécie de discreto charme da burguesia, adentrando o apartamento de Rosemary e perguntando pelo preço dos móveis, enquanto Roman se interessa por questões mais profundas: não quer saber o preço de suas posses, mas antes o preço de suas almas.
A indiscrição de Minnie em oposição à elegância de Roman continua por todo o filme, da maneira como ela força Rosemary a beber suas “vitaminas” às reações exageradas quando sujam o carpete de sua sala. Funcionando quase como um alívio cômico à história (com a notável interferência da amiga infantiloide Laura-Louise), a figura de Minnie é traçada como se fosse uma enorme caricatura do mal que se traveste apenas de impertinente e quase inofensiva. Roman é a real e aterrorizante personificação de Satã; Minnie é a prova de que o mal também se esconde no cotidiano mais superficial e até mais mesquinho de nossos tiques.
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Paranoia, sexo, sonhos e humor são fundidos na relação entre as duas mulheres do fime: Rosemary e Minnie. A sutileza de Roman jamais faria Rosemary entrar em profundo estado de paranoia como vemos na história – é Minnie, com suas insistências, suas cores, seus gritos, suas visitas diárias, que transtorna Rosemary. A cópula com Satã, que se revela em flashs de forma animalesca, se mistura com as imagens de seus sonhos, em um misto de horrorosa realidade em potencial com um longo pesadelo que Rosemary terá de enfrentar durante os próximos meses de gestação.
As imagens oníricas do acasalemento com Satã apresentam o horror em sua forma mais extrema: um barco sem direção no meio do mar e um grupo de satanistas prontos para celebrar o ritual. No entanto, paranoia e sonho são quebrados com o diálogo entre Guy e Minnie. Ela garante a ele que Rosemary não vai sentir nem ver nada, desde que ela tenha comido a mousse de chocolate preparada naquela noite (e sabemos que ela não comeu). Há uma ruptura na tensão, que gera um humor involuntário: Minnie Castevet está ali, nua, discutindo com Guy se ela comeu ou não comeu a mousse.
Este tipo de humor, centrado nas personagens de Minnie e Laura-Louise, determina a faceta mais maldosa do culto a Satã – celebrado com glória na cena final, quando Laura-Louise balança o berço do herdeiro da escuridão com violência. Recriminada, mostra a língua a Rosemary, que passa, daquele momento em diante a afeiçoar-se ao bebê, diante do choque do espectador que fica atônito diante da ternura do instante diabólico.
Deus me livre… assisti a esse filme… só pra dizer que assisti… percebi as sutilezas… e também a profundidade da última cena (como ela poderia rejeitar seu próprio filho?)… Mas num gosto nem de lembrar… Nem das cenas e nem da ideia em si, o vetor simétrico e inverso a Maria