O Inferno de Galileu

Galileu, em sua mocidade, deu uma série de palestras sobre o Inferno de Dante. O objetivo do futuro cientista recém-expulso da faculdade de medicina era mostrar como as descrições infernais do florentino eram fisicamente impossíveis. O trabalho era relevante pois diversos intelectuais consideravam o texto de Dante verdade literal e dedicavam-se a exprimi-lo geometricamente; havia até versões concorrentes.

Uma curiosa nota biográfica sem importância? O físico Mark Peterson argumenta, em seu livro Galileo’s Muse: Renaissance Mathematics and the Arts, que foi aí que a física moderna nasceu. Estava feita a primeira grande ruptura com o passado aristotélico-escolástico que engessara o desenvolvimento da ciência (muitas descobertas de Galileu e até de Newton já tinham precursores na escolástica – é só pensar em Robert Grosseteste, que, no século XIII, já defendia que o arco-íris era causado pela refração da luz em gotículas d’água suspensas no ar – mas estavam ainda por demais emaranhadas a uma concepção do universo largamente equivocada).

O assunto Galileu é sempre marcado por controvérsias e propaganda, e por isso não posso deixar de me pronunciar a respeito. Negar a genialidade do homem é tolice, assim como diminuir suas descobertas científicas (chegando, como fez provocativamente Paul Feyerabend, a dizer que Galileu estava errado e as autoridades eclesiásticas que o condenaram corretas). O homem foi um gênio, mas não foi a personificação da razão honesta contra a superstição violenta como muitos fazem crer. Rejeitou, por exemplo, a teoria (correta) das órbitas elípticas proposta por Kepler pelo simples motivo que o círculo é a figura perfeita e que portanto as órbitas tinham que ser circulares; um tipo de submissão da ciência à metafísica que era exatamente a fonte do erro de seus acusadores. Alguns de seus argumentos em favor do heliocentrismo foram notoriamente fracos (como o das marés, que via no movimento das ondas a prova de que a Terra se movia;  Beda o Venerável, no século VIII, estava mais próximo da realidade ao atribuir a causa das marés à lua). E as causas de seu processo na Inquisição têm tanto a ver com a intolerância de inovações intelectuais da época quanto com sua atitude arrogante e prepotente. Nada disso nega sua genialidade; apenas deixa evidente a tendenciosidade de uma história feita para confirmar preconceitos.

12 comentários em “O Inferno de Galileu

  1. É preciso sempre repetir as razões pelas quais Galileu foi condenado: o cara dizia que o sol se localizava no centro do universo, e permanecia em repouso absoluto. São duas teses totalmente infundadas, e sem nenhuma observação que as sustente. De onde o pisano as tirou? Das doutrinas ocultistas que ele conhecia profundamente. Aliás, o cara pertencia a uma sociedade secreta.

    A idéia de que gente como Galileu e Newton estava na contramão da macumba renascentista é uma tolice. Existe toda uma pseudo-metafísica por trás do mecanicismo moderno. Por exemplo, Newton acreditava que o espaço corpóreo fosse nada menos que um atributo divino.

  2. Pedro, calma lá: o heliocentrismo estava correto. De fato a Terra gira em torno do Sol. Sim, ele não é parado e nem ocupa o centro do universo. De qualquer forma, o heliocentrismo era um grande avanço com relação ao geocentrismo escolástico e seus infinitos epiciclos usados para salvar as aparências.

    Você tem razão num ponto: ciência e superstição estavam muito mais ligadas naquela época do que gostamos de imaginar hoje em dia. Newton tem cálculos sobre o fim do mundo. Isso não apaga, contudo, sua importância como um dos maiores gênios científicos da história da humanidade, certamente muito maior do que todos os físicos da escolástica, ainda presos a uma concepção aristotélica irremediavelmente falsa.

    Toda ciência tem uma metafísica por trás (se é pseudo ou não é outra discussão); mas não é com base nessa metafísica que se deve discutir seus méritos. Afinal, teses acerca do mundo natural inicialmente ligadas a uma metafísica específica podem manter-se mesmo se essa metafísica for abandonada, e adaptadas a outras visões de mundo.

    Não é preciso partilhar das doutrinas ocultas de Galileu para reconhecer que ele provou definitivamente o erro da tese aristotélica de que a velocidade de queda de um corpo é diretamente proporcional ao seu peso (com um experimento mental). E nem para aceitar que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário.

  3. Meu caro,

    Astrônomos árabes já admitiam a tese de que o sol girasse em torno da Terra. Mas eles admitiam que essa era apenas uma hipótese que se destinava a salvar fenômenos. Que eu me lembre, até notaram que essa suposição envolvia uma elegância matemática maior. Mas por que o heliocentrismo seria “a verdade” e não um ponto de vista? Alguém pode calcular todas as posições planetárias em função de, sei lá, Mercúrio. E aí, estaria instituído o hermecentrismo?

  4. Uma das várias questões interessantes em debate tão antigo – mas atualíssimo e talvez pouco audível fora de circuitos acadêmicos – é essa do decalage entre, digamos, a “metafísica” que continua a sustentar a “rationale” doutrinal católica, de um lado, e de outro a maneira como se concebe e se constrói conhecimento científico (maneira esta que pode ser objeto de posições distintas mesmo no universo da escolástica, defensavelmente vg entre Dante e Santo Tomás).

    O que ressalta é a) que em dada altura o modelo ptolemaico-medieval começou efetivamente a fazer água, como observa o Joel Sampaio; e b) que seu esgotamento gradual como matriz explicativa foi associado a um deslocamento a rigor não necessário da episteme (vá lá, o terreno em que tomamos como suposta a maneira de construir saberes) no Ocidente na direção de um modelo de aproximação da realidade que exclui a noção de “cosmos” definido e hierárquico em benefício da noção romântica (ou “giordanobruniana”, quem sabe) de universo infinito e meramente “fenomenal”, relativo, digamos assim.

    Em termos poéticos, é como se passássemos de Virgílio para Lucrécio…E talvez não houvesse alternativa, tamanho o impacto dessa transição das belíssimas esferas concêntricas do “cosmos antigo”, cantado até por Shakespeare ainda, para o clima de indeterminação do “cosmos novo” tão bem expresso pelo Kubrick no 2001, naquele astronauta desorientado após perder contato com a nave.

    Mas voltando: no plano da ciência esse mega-deslocamento epistêmico ajuda a explicar o privilégio dado ao “modus operandi”, à técnica, ao como fazer, associando-o ou não a alienações reificantes em detrimento do “porque fazer”; e no plano “metafísico” (ainda bem que isto é só um comment) ajuda a entender aquilo que poderíamos tipificar pensando nessa passagem dos anjos de Dante aos de Rilke, da ênfase na existência à ênfase na interioridade.

    Seria impossível hoje uma reaproximação do fazer científico – cujo modelo de certos pontos de vista dá sinais de esgotamento – e da “metafísica” associada ao humanismo antigo e medieval? E por via de conseqüência ou vice-versa: como recuperar sentido para a cosmologia?

  5. um dia a ciência tal como é praticada hoje, vai ser considerada supersticiosa?

    ainda desconhecemos a forma do universo. Não sabemos se o universo está parado, e se é infinito ou não

    entretanto, é satisfatório poder especular sobre esses assuntos, sem que um padre ou um cardeal sinta-se atacado em sua autoridade.

  6. Pedro, se os árabes tinham esses modelos todos, aparentemente não chegaram muito ao Ocidente, no qual o próprio trabalho de Copérnico, que também lançava o heliocentrismo como hipótese, gerou muito rebuliço, e chegou ao Index, sendo acessível apenas a estudiosos com permissões especiais. Tanto católicos como luteranos (a reação de Lutero e Melanchton ao Copernicanismo foi especialmente virulenta) viam o heliocentrismo como contrário à Fé, pelo simples fato de que numa passagem do Antigo Testamente dizia-se que o Sol parou, e não a Terra. Algumas autoridades, como S. Roberto Belarmino, que processou Galileu, até aceitavam a possibilidade teórica de que o heliocentrismo estivesse correto e que portanto a interpretação comum que eles davam àquele verso da Bíblia estivesse errada. Mas na prática a nova posição era acriticamente associada à impiedade.

    Você pode colocar seu cotovelo esquerdo como ponto imóvel e dizer que o universo gira ao redor dele. Só terá um problema teórico para justificar porque o seu cotovelo é fixo e o resto do universo móvel. O mesmo vale para se colocar a Terra como imóvel (problema que não surgia na época porque ainda se acreditava que, depois da esfera lunar, a composição do universo era qualitativamente diferente da Terra). Agora, o Sol tem massa maior, e por isso é a Terra que vai a ele, e não vice-versa. De fato, a partir do momento que Newton conseguiu unificar a explicação dos movimentos dos corpos dentro da Terra e dos astros nos céus, toda a discussão perdeu a razão de ser; o copernicanismo tinha estado certo, e a astronomia geocêntrica estava errada.

  7. Joel,
    Você está certo, pelo menos até onde a minha ignorância alcança: é preciso desmistificar essa de “Galileu é o saber esclarecido do homem contra a superstição obscurantista da Igreja”.
    Galileu era um gênio, mas tinha também uma boa dose, não só de superstição e obscurantismo, mas também de enorme arrogância. Basta lembrar que o Papa era seu amigo e o autorizara a escrever o livro expondo o heliocentrismo, desde que o fizesse como “teoria” e não como “verdade indiscutível”. Galileu, valendo-se da boa vontade do amigo Papa, que aceitava a discussão, fez o contrário e ainda caricaturou o amigo como o bobão que no diálogo defendia o geocentrismo!
    Quem era o dogmático e obscurantista nessa história toda?
    Aos que falam do “obscurantismo” da Igreja, é bom lembrar que sem as bibliotecas dos mosteiros e as universidades fundadas pela Igreja na Idade Média, ninguém saberia no ocidente sequer o que era “lógica formal”, requisito nº 1, conforme Einstein, para a revolução científica do século XVII, deflagrada por Galileu e outros ao inventarem o requisito nº 2: o “método experimental”!
    Em resumo: sem a Igreja não haveria a ciência nem a civilização ocidental.

  8. Joel, você e esse Mark Peterson estão precisando se atualizar. Leiam “Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental” de Thomas E. Woods Jr, Editora Quadrante. Vocês verão como o Robert Grosseteste não foi o único grande cientista pré-Galileu.

  9. Já li, Rodrigo. E muitos outros livros do tipo. Nunca afirmei que Grosseteste foi o único grande cientista medieval. Afirmei apenas que mesmo os grandes cientistas ainda dependiam demasiadamente de uma física aristotélica que, embora recebesse inúmeras pequenas correções, não chegou a ser por eles questionada.

    Reconhecer a importância da Igreja Católica na ciência é reconhecer que, apesar dos erros como no caso Galileu, ela foi importante (por exemplo, como a maior patrocinadora) para a revolução científica e para a ciência moderna.

  10. Em que sentido se poderia dizer que o modo de construir ou obter conhecimento científico daria sinais de esgotamento?

    Ainda para quem continua a entender que a ciência pode servir mais do que a uma aproximação assintótica da realidade, a discussão está posta fora da tela e numa de suas vertentes há quem diga não haver há muito tempo mais do que ganhos incrementais sempre menores em cima de “breakthroughs” anteriores:

    http://discovermagazine.com/2006/oct/cover

    Em outro plano, vale a pena lembrar que por incrível que pareça o método experimental ao qual nos habituamos hoje não baixou do céu como revelação para Galileu; e que havia cientistas para valer antes dele. Verdade que normalmente se pautando por um esquema teleológico para ordenar a informação e fazer dela conhecimento – mas quem estudou essas coisas no início do segundo grau vai lembrar-se de que a idéia de matematizar conhecimento “científico” ou “físico” é fundamentalmente platônica, a mesma idéia de fundo que serviu à cosmologia “antiga” servindo agora à construção de modelos no espaço da nova. Cosmology lives.

    E como nota de pé de página: é quase um lugar comum dizer que uma leitura de poetas e filósofos pré-modernos demanda alguma noção do cosmos “antigo”; e que a transição epistêmica consolidada mais ou menos a partir do renascimento não invalida a experiência imediata de um sol que diariamente nasce e se põe e de estrelas que se movem (ainda que esta segunda nos seja negada por causa da iluminação artificial noturna onipresente), em um registro de percepção mais ou menos “íntegro” na medida em que esteja consciente de suas limitações. O ponto é saber se essa consciência necessariamente acarreta ir além da relativização para transformá-la (ie, a capacidade de relativizar) em “a priori” que exclui a tal aproximação de uma verdade além da curva assintótica. As coisas continuam a existir; Dante lives.

  11. Oi Joel. Não encontro nenhuma referência sobre “Galileo’s Muse: Renaissance Mathematics and the Arts”… vc tem o livro? onde posso conseguir?

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>