O inverno da nossa liberdade

It is required
you do awake your faith.

Conto de Inverno (V. III. 70-110)

Há algo de podre no reino da crítica literária quando o romance mais comentado do momento, comentado no sentido que todos, absolutamente todos, estão falando dele, do presidente dos Estados Unidos até o gari da esquina, é abordado pelos supostos resenhistas e analistas de tendências de moda como algo equivalente à “sociologia da literatura”, reduzindo-o a fragmentos de um discurso ideológico, indecisos se se trata de um romance – ou, pior, de um romancista – de direita, de esquerda, de centro, democrata, republicano, ambientalista, conservador, o escambau, ou então – o que é algo ainda mais sintomático – quando a única crítica que vale a pena ler – crítica no sentido exato do termo, i.e., análise do que faz a obra realmente funcionar e emocionar o leitor – é feita pelo editor do próprio livro ao relatar como foram os bastidores da confecção da edição nacional.

Por isso, peço-lhes que esqueçam do hype. Esqueçam até mesmo do Obama, a palavra mais citada quando nos referimos a este romance se alguém tiver a paciência de googlar por aí. Quando falarem de Liberdade (Freedom), o novo romance de Jonathan Franzen, um sujeito que cada vez mais parece um Stephen King bonachão, lembrem-se de William Shakespeare.

O que tem a ver o Bardo com o novo queridinho da weltliteratur americana? Não é uma alucinação deste infeliz escriba, mas a referência é dada pelo próprio Franzen, logo na epígrafe do seu catatau de quase setecentas páginas – e se há algo que aprendemos sobre as epígrafes de um livro, é que elas não estão lá por acaso. Há um sentido a ser decifrado – e é nossa função fazer isso.

A epígrafe é a seguinte e faz parte da peça Conto de Inverno (The Winter´s Tale), reconhecida como uma das melhores do dramaturgo inglês pela maturidade ao lidar com temas sombrios como o ciúme e a loucura e pela técnica sofisticadíssima:

Go together,
your precious winners all; your exultation
partake to every one. I, an old turtle,
will wing me to some wither´d bough, and there
my mate, that´s never to be lost again,
lament till I am lost.

Trata-se de uma das últimas frases da personagem Paulina, bem no desenlace da história. Esta é sobre Leontes, rei da Sicília, que, num acesso de ciúme doentio, resolve expulsar sua esposa, a rainha Hermione, porque aparentemente ela o estaria traindo com seu amigo Políxenes, rei da Boêmia. Paulina é a única pessoa que testemunha a favor da rainha, levando-a para fora da Sicília em um plano astucioso em que ela se fingirá de morta por mais de quinze anos, enquanto o rei purga os seus pecados com o arrepedimento que só o julgamento do tempo faz com suas vítimas, ao mesmo tempo que perde a oportunidade de ver a filha Perdita crescer, já que suspeitava que ela seria o fruto do relacionamento adúltero.

Em Liberdade, para quem conhece a peça de Shakespeare e fez as relações necessárias, o papel de Leontes é o de Walter Berglund, o de Hermione fica a cargo de Patty Berglund e o de Políxenes é representado pelo amigo de faculdade de ambos, o cantor Richard Katz. A trama é a mesma: Walter se come por dentro da atração escondida que Patty tem por Richard há trinta anos – e, se não a expulsa de seu reino, faz aquilo que, atualmente, é a mesma coisa: pede o divórcio e resolve curar as feridas com uma amante indiana chamada Lalitha. Se há uma Paulina no esquema de Franzen, não seria um exagero que pode ser o próprio escritor.

Afinal, Jonathan Franzen quer ser o salvador desta forma esquecida que se tornou o romance, conhecido também pelo termo em inglês novel, que deveria representar alguma espécie de novidade. Agora, digam-me: quem disse que o romance morreu? Assim como Theodor o Adorno afirmou que não existia poesia após Auschwitz, resolveram afirmar que o tal do romance, como gênero literário, como forma, como experimento, como maneira de se saber que alguém conta uma história, resolveu morrer sem dar notícia – e o obituário foi escrito pelos próprios escritores que, vejam só, usam a literatura para cuspirem no prato que comem.

Franzen diz ir na contramão desta tendência – e provou o seu ponto com Liberdade e também com seu romance anterior, As correções (The corrections, 2001). Com estes dois livros, não precisa provar mais nada para ninguém. Seu domínio de forma narrativa é inegável, o controle da prosa e do vocabulário são invejáveis, o senso de ritmo chega às raias do virtuosismo, a noção de tradição e de referências literárias, populares e eruditas é na medida certa, o sentimento de pathos e de emoção é evidente – enfim, ele tem as características que o tornam apto para aquilo que a revista Time denominou em sua capa: “O Grande Romancista Americano”.

Mas o que torna um livro aquele livro – o Grande Romance, o Livro Que Todos Querem Saber Como É Para Depois Indicar Ao Seu Vizinho Mais Próximo? Seria todas as alternativas anteriores – ou teria algo a mais? Aquele toque de loucura que Henry James afirma ser o próprio assunto do artista, sempre aberto às vicissitudes do real, sem se preocupar com sua própria visão de mundo, sua ideologia política, suas crenças – enfim, com tudo aquilo que nos torna virtuoses de mesas de boteco, mas jamais escritores no stricto sensu do termo, aqueles que, como diria Kafka, são iguais a um relógio sempre adiantado, sempre antecipando o que o futuro nos guarda, independente dos riscos, independente do fato de que o demônio da vocação está à espreita e nunca o deixará, mesmo que tudo pareça caminhar para um fim lúcido e saudável?

Para isso, nada como retornar à fonte – em outras palavras, a William Shakespeare. Além das semelhanças de trama e de estrutura, Liberdade também aborda o mesmo tema de Conto de Inverno, que, por sua vez, é o tema shakespeareano por excelência: a fuga em aceitar as conseqüências de amar e ser amado – em todas as suas variações, do êxtase erótico, passando pelo ciúme e o ressentimento, terminando em danação definitiva ou em salvação provisória. Franzen dispõe habilmente dos dados narrativos do seu romance e, para quem gosta de especulações biográficas (leia-se: fofoca), também brinca com sua própria biografia, principalmente com a competição (amigável, diz ele) que tinha com o também escritor David Foster Wallace, o autor de Infinite Jest, que se matou em 2008.

Esta competição não tem nada a ver com o velho e bom poder da fenda (leia-se: mulher) e sim com o bom e velho poder da palavra (leia-se: solidão e isolamento lato sensu). Conta-se que Wallace estava com uma namorada fiel e que Franzen amargava uma triste separação. Portanto, o que significa quando sabemos que Richard Katz tem características de Foster Wallace, como usar bandanas e mascar obsessivamente fumo? Nada e tudo. A função de um escritor, independente do seu momento histórico, é revelar a quem quiser que existem certas estruturas básicas no comportamento humano que não podem (e não vão) ser alteradas sob hipótese nenhuma. O problema é que, na longa lista de desastres que a condição terrena nos reserva, essas mesmas características possuem muito mais defeitos do que qualidades, e podem ser resumidas em uma única palavra: inveja. O homem (com H maísculo e sem mudança de gênero, por favor) cobiça o que o outro tem e, mais, cobiça porque outro também cobiça e, mais ainda, não contente com isso, cobiça o que o outro é porque, no fim, tudo o que ele quer é ser o outro. (Acharam complicado? Vocês não viram nada.)

De acordo com René Girard, este monomaníaco do desejo mimético, Shakespeare descobriu esta estrutura do comportamento humano e a desenvolveu em um sistema orgânico de peças que dialogam entre si e mostram ao leitor (no caso, o espectador) não só o desenvolvimento espiritual do autor com também o desenvolvimento de quem assiste a peça. Eis aí a sua invenção do humano, segundo os dizeres de Harold Bloom, o Falstaff da crítica literária. Já Ted Hughes, aquele que é acusado de impelir Sylvia Plath a colocar as suas half-baked ideas no fogão e por acaso é também um dos maiores poetas inglesas do século XX, argumenta que Shakespeare (sim, o mesmo, afinal não mudamos de assunto, não é mesmo?) certamente descobriu alguma coisa que ficou oculta aos nossos olhos e que as suas peças são os árduos resultados deste segredo que, agora, podemos revelar a todos vocês, o segredo que nem o próprio Shakespeare sabia enquanto o desvendava, mas assim que estava próximo da morte – na mesma época em que escrevia Conto de Inverno e A Tempestade – cristalizou para quem tivesse ouvidos que ouvisse: o fado do amor.

Como diriam nesses tempos de twitter, WTF? (Supondo que algum dia a literatura só se expressará através de siglas e que a caudalosidade de uma linguagem como a deste texto – repleto de adjetivos, advérbios, subordinadas, aditivos e excrescências – será olvidada para todo o sempre) Ah, o fado do amor… Segundo Hughes o Ceifador, Will Sacode a Cena percebeu que o homem (novamente, sem imposições de correção de gênero…) se recusa de maneira sistemática a viver o que lhe foi imposto pelas dores de amor – em outras palavras, a vocação do sujeito a ser livre não só fisicamente, vivendo e correndo entre florestas, campos e cidades, mas em especial no seu interior, para ser mais exato, naquela faculdade que atualmente todos tentam ignorar que existem, porém não conseguem e que chamamos de espírito.

O que Ted Hughes elaborou em seiscentas páginas, eu resolvi em um parágrafo, Shakespeare precisou de 36 peças, dois poemas longos, 152 sonetos e um poema curto – e Jonathan Franzen resolveu dramatizar em mais quase setecentas folhas. Para quê tudo isso, meus amigos? Desaprendemos aquilo que Gertrudes dizia, de que brevity is the soul of the wit? Não, o que desaprendemos foi a capacidade nos espantar, independente se ele se estende para quase mil páginas ou se concentra em uma linha, e quando isso acontece, não é apenas a humanidade que perde, mas principalmente a nossa capacidade de contarmos histórias – e, claro, o tal do romance, que, como diz o termo original em inglês, deveria ser uma novidade.

O problema é que perdemos a fé no espanto de narrar, o que Chesterton afirmava ser o sense of wonder, o assombro aristotélico. Franzen tenta recuperar com sua odisséia do ressentimento subterrâneo – e que se estende por trinta anos de história americana, que vão de Jimmy Carter a Barack Obama (e eu só citei este nome para obviamente o Google captar este texto na nuvem da ignorância dos meus pensamentos) – justamente para mostrar a tragédia em que vivemos ao recusarmos o fado (e o fardo) do amor e de vivê-lo em suas conseqüências. Ao optarmos por isto, vivemos sem querer querendo o inverno de nossa existência, de nossa liberdade. Jamais saberemos o que é ser livre porque não agüentamos mais o tranco que alguém lá em cima nos deu.

Se Leontes passou por quinze anos de purgação para ter sua Hermione ressuscitada, Franzen faz o seu Walter e a sua Patty passarem por cinco antes do reencontro definitivo. Antes disso, Walter conversa com seu irmão mais velho, um sujeito rude, divorciado três vezes, com cinco filhos abandonados pelo mundo, nada a ver com o caçula que freqüentou as melhores universidades e quase se tornou diretor de uma grande organização não-governamental (a razão de seu fracasso é hilária e vale o preço do exemplar). Walter pergunta se o primogênito acha que isso é uma trajetória decente. A resposta marca a cena mais bela do romance: “Sou um homem livre”.

Ou seja, neste mundo, quem é verdadeiramente livre é quem reconhece que tem demônios a enfrentar – e vive com eles como pode. E quem cria os nossos demônios somos nós mesmos – através da recusa de amar e substituindo o amor pela inveja e o ressentimento. Em um ensaio para a New Yorker, publicado há um mês, Jonathan Franzen mostra que a competição com David Foster Wallace não foi tão amigável como parecia ser. O que estava em disputa era quem ia mais longe no horizonte da literatura, na salvação do romance como forma de recuperar a fé na condição humana. Wallace chegou perto da perfeição, segundo Franzen, e foi justamente isso que o fez pensar sobre as infinitas variações do desespero que resultam no suicídio. Ao atingir a sua meta, Foster Wallace foi trespassado pelo tédio. O que fazer quando já se está no topo? Nada e tudo, não é mesmo? Então é melhor jogar uma corda no pescoço e balançar como o pêndulo de Foucault.

Sim, havia uma competição que terminou com um auto-sacríficio (aqui, sacrifício não significa nada honroso e sim patético) – e Liberdade foi como Jonathan Franzen encontrou para purgar o demônio da vocação que Foster Wallace deixou para que prosseguisse. (Não seria por acaso que Wallace tirou o título Infinite Jest de um trecho de Hamlet?) Esta é a razão de ser um grande romance. Se entrará para a História (com H maiúscula e sem gênero definido, para a delícia destes estúpidos que querem corromper as ambigüidades da linguagem), quem poderá dizer? Crítica literária não é profecia e sim uma educação das sensibilidades. Mas quando um escritor contemporâneo busca em Shakespeare a inspiração para discutir o que é a verdadeira liberdade, independente dos Obamas da vida (olha o Google aí de novo, gente!), e cumpre o ditto de D.H. Lawrence – trust the tale, not the teller – é sinal que devemos renovar os votos de fé e continuarmos a contar a história que sempre deveremos contar: a que vai do Alfa ao Omega, mesmo que tudo pareça uma piada sem fim.

8 comentários em “O inverno da nossa liberdade

  1. Ótimo artigo. Parabéns. Apreciei especialmente a expressão “o demônio da vocação”. Ou eu sou um maldito pedante ou padeço desse encosto. Não acredito mais no amor, na liberdade e na felicidade humana e nunca me senti mais livre, feliz e disponível para amar e ser amado. Provavelmente nao terei tempo para ler esse livro nessa vida. Mas “o inverno da nossa liberdade” foi doce. Obrigado. Nao deixe de ler o meu seriado em cronicas “Diário de um estudante de direito” http://esconderijo-do-observador.blogspot.com/
    Um abraço do observador.

  2. Muito bem!
    Guilherme sacudiu a lança e o texto seguiu no rastro que vale a pena, atrás de levantar as lebres mais suculentas. É um alívio saber que nem tudo são as esquálidas resenhas dos resenhistas de tudo, nem tudo é rolo compressor.

  3. Lembrando Javier Marías, outro que insistentemente retorna a Shakespeare, seja em epígrafes ou em títulos, e que também procura trabalhar no campo dessa liberdade como fruto do confronto com o trauma (e a dinâmica da memória diante de tudo isso).

  4. Muito ruim. Milagre não ter falado em “lastro metafísico…Voegelin…gnósticos estão errados…ah, meus amigos, ser um mensch…ah, o sofrimento…” Essas coisas de sempre.

  5. Excelente.
    Martim, e um ensaio sobre David Foster Wallace e o Infinite Jest? (aproveitando que o livro será publicado no Brasil)

  6. Parabéns, Martim. Excelente texto. São poucos aqueles, no Brasil, que como você escrevem tão bem sobre literatura; a profundidade a abrangência com que você aborda os autores é fascinante. Seus ensaios são para mim, como escritor, verdadeiras aulas, abraços, K.B.

  7. Como se pode esperar, mais um belo texto seu, Martim. Deu mesmo vontade de comprar o livro. Pena ele ter saído numa época em que estou mergulhado em Thomas Mann. Um abraço.

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