O perigo do esquecimento

 por Karleno Bocarro

Num artigo recente, A Literatura e a Reuninificação Alemã, publicado na revista Deutschland, Jörg Magenau escreveu sobre a Queda do Muro de Berlim e a percepção dos escritores alemães: “Os escritores perderam a noite das noites alemã, a mais importante. O dia 9 de novembro de 1989 aconteceu sem eles”. Quer dizer, eles não a previram. Apesar da pretensão, típica entre os intelectuais, a uma percepção privilegiada, a única capaz de compreender o rumo dos acontecimentos. A idéia não é nova. Stendhal, em La Chartreuse de Parme, faz Fabrice vaguear pelo campo de batalha de Waterloo “sem nada entender”. Nikolai Rostov e o príncipe Bagration, do livro Guerra e Paz, de Léon Tolstói, na batalha de Austerlitz, tampouco estão conscientes do que acontece. E segundo Tolstói, o próprio Napoleão, além do czar Alexandre, apenas se iludem ao supor que suas ações determinam os rumos da História e o destino dos homens.

A nossa percepção dos acontecimentos, e na época da Queda do Muro, mesmo a de um Gorbatchov, de um Mitterrand, de um Helmut Kohl, nem sempre é clara; somos mais coadjuvantes do que autores. Os fatos nos chegam incompletos, as coisas acontecem de modo imprevisível, não há uma noção clara de início, de fim, ou de domínio – a pretensão em dirigir a História.

A História só se torna compreensível a partir de uma abordagem posterior, jamais presente. É preciso um afastamento temporal dos eventos para desanuviar as paixões turvadas pelos acontecimentos. Uma idéia também defendida por Alexis de Tocqueville, para quem a Revolução Francesa foi o acontecimento melhor preparado, mas o menos previsto.

Cheguei em Leipzig, a cidade na Alemanha Oriental onde aconteceram as primeiras manifestações contra o regime comunista, em agosto de 1989. Eu obtivera uma bolsa de estudos do governo alemão oriental para cursar nesta cidade o alemão e, após um ano, Filosofia em Berlim. Hoje eu concluo: eles próprios, os dirigentes comunistas, não previam de forma alguma que três meses depois perderiam o poder, ou não haveria bolsas de estudos para estudantes estrangeiros. E assim como para os escritores alemães citados no artigo de Magenau a noite de 09 de novembro foi para mim uma noite qualquer, após fazer as lições de alemão me recolhi para dormir. Somente no dia seguinte, no Instituto Herder de Alemão, vim a saber da Queda do Muro: nunca presenciara a minha professora tão feliz. Ela abraçou-me com lágrimas nos olhos: “Estamos livres” – suspirou. Era então a reunificação da Alemanha um fato consumado? Uma outra professora, ciente de que a fronteira voltaria a se fechar, rumou imediatamente para Berlim, e de Berlim para os Estados Unidos. Meses depois ela nos enviou um cartão postal narrado a aventura. Mas a mim ficou claro que a unificação era irreversível, apesar das ressalvas de François Mitterrand e Margaret Thatcher quanto ao perigo que representaria uma Alemanha unida, quando os estudantes cubanos, em meados de julho de 1990, foram resgatados pelo governo de Havana. Ele não os queria numa Alemanha capitalista. Um de meus amigos cubanos, o único que escapou das garras de Fidel, fugiu um pouco antes para Atenas com a namorada grega – para própria segurança, o melhor a fazer é mirar de longe o epicentro dos acontecimentos. E houve dois estudantes venezuelanos, empolgados com o grande evento de nosso tempo, mesmo porque na época eles não corriam risco de sequestros por parte de um governo ditatorial, que faltaram as aulas para viajar a Berlim, fotografar o muro e arrancar algumas lascas como lembrança, mas terminaram tendo as mãos esmagadas por um de seus blocos de concreto. A estadia na Alemanha acabara para eles.

No dia de minha mudança, um ano depois, para Berlim, ao me aproximar da estação de trem, deparei com um jovem alemão ensanguentado no abdômen, e a namorada curvada sobre ele a consolá-lo. A partir desse instante, gritos de desespero duraram alguns minutos, mas eram dolorosos a ponto de não se poder ouvi-los sem um sentimento de compaixão: “Ich will nicht sterben!” – eu não quero morrer, ele gritava. Próximos, a polícia e um árabe, o autor do crime (à faca!). Este se queixava: “O que eu poderia fazer, eu fui provocado. E a partir de agora numerosos serão os cadáveres, lançados por todos os lugares”. Um dos policiais repreendeu-o: “Silêncio!”.  Por fim, os gritos do jovem cessaram, veio-lhe a morte. Ele e a namorada portavam jaquetas verdes, um adesivo bordado no ombro: “Ego me Germanum esse et profiteor et glorior” (Ich bekenne offen, ein Deutscher zu sein und bin stolz darauf) – eu tenho orgulho de ser alemão. E eu sabia, como todos os estudantes estrangeiros logo souberam, eles não nos desejavam na Alemanha, eram skinheads. Mas certamente recém-convertidos à doutrina nazista, ou se aproximariam com cuidado de certos estrangeiros.

Estes são apenas alguns exemplos de dramas que ocorrem à nossa volta quando a História dá um curso mais intenso às suas engrenagens. Mas como enfrentá-la, como escapar de seus dentes mais perigosos? A resposta não é fácil. No entanto, naquele momento, ou melhor, hoje, após se passarem vinte anos, percebo quem melhor se saiu tinha um forte ânimo moral, tirou daqueles acontecimentos o melhor proveito, mas de encontro a um sentido pessoal de existência, a realização nos estudos, no trabalho, no amor e na amizade. Aqueles que compartilhavam uma visão de mundo materialista, quer dizer, para quem os aspectos importantes da vida são os exteriores – as chamadas realidades sociais, políticas e econômicas – suportaram mal o fim da utopia socialista. Não foram poucos os amigos, para os quais estudar na RDA era uma realização política, que buscaram curar a decepção e a frustação com a derrocada de seus ideais na experiência extrema das drogas, perdendo suas bolsas de estudo, tendo de retornar para casa sem concluir os estudos.

Eu pessoalmente sou grato por ter vivido todas aquelas mudanças – a minha decepção imediata com o socialismo me fez logo aceitar, simpatizar e desejar a unificação da Alemanha. Ninguém em sã consciência pode ansiar a situação anterior de divisão, desconfiança, delação e perseguição, a ausência completa de liberdade… Sou grato porque ao viver e vivenciar estas mudanças amadureci como ser humano, e também como escritor. Aqueles anos em Leipzig e Berlim são imprescindíveis à minha formação humana e intelectual. 

Karleno Bocarro é escritor, autor do romance “As almas que se quebram no chão“, com publicação prevista para 2010.

7 comentários em “O perigo do esquecimento

  1. Pingback: Especial sobre o muro de Berlim | Dicta & Contradicta

  2. Erudito, algo sombrio e grato, se não fosse assim não seria o ótimo Karleno.

    Que venha (logo) à luz seu filho dileto, amigo.

  3. Boa análise, Karleno. Parabéns! E como vc, apesar de meus sentimentos socialistas, jamais lamentei a queda do muro. Não pode haver socialismo sem liberdade.

  4. Parabéns Professor!!!!
    Também sou totalmente favoravel a queda do muro! Imagino como os alemães orientais se sentiam antes da queda! Viver em casa mas não ser o dono dela! “Ter que pedir licença ao vizinho para abrir a propria geladeira!” Seguir regras que não condiz com a sua própria realidade!

    Enfim, não pode haver esperança de liberdade em um ideal que prega uma ditadura antes da liberdade e igualdade entra as classes!

  5. Parabéns Karleno !
    Depois de vinte anos da queda do muro o olhar sobre o fato faz com que os historiadores tenham um maior entendimento sobre que aconteceu. E hoje podemos perceber e compreender que aquele ou qualquer muro que separe povos e famílias foi e será sempre uma vergonha.

  6. Parabéns professor Karleno!!!

    Excelente texto! Penso da mesma forma, o socialismo que se vivia na Alemanha era na verdade uma ditadura! Não pode haver dignidade humana, onde os direitos são todos cerceados!
    Nas aulas sempre aprendo muito contigo, e por esse texto aprendo mais um pouco, pois ninguém melhor para falar sobre o assunto, para analisá-lo do que alguém que presenciou a situação daquelas pessoas!

  7. Como vivi longe desta realidade tanto por conta da idade (sem ofensas professor rsss) como por conta da distância, nunca tive uma noção exata do que foi este período a não ser por livros.
    Porém é de grande valia ouvir histórias de quem realmente vivenciou esse período e consegue interpretar o que isso de fato simbolizava, não só pessoalmente, mas coletivamente.

    Parabéns Karleno
    cabra arretado.

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