O Poder não é tudo

 

Quem correr ainda conseguirá assistir Tudo Pelo Poder (Ides of March), thriller político dirigido por George Clooney; e, se tiver oportunidade, acho que deve fazê-lo. O filme merece. Ele mantém, em sua maior parte, o equilíbrio que é, ao menos para mim, o grande gerador de interesse em histórias políticas: o equilíbrio entre o jogo maquiavélico do poder e a luta por ideais à qual a política deveria servir.

Esse equilíbrio incerto é personificado por Stephen Meyers, interpretado por Ryan Gossling, um dos assessores da campanha do pré-candidato Democrata Mike Morris (Clooney) pela vaga na disputa da presidência nas próximas eleições. O que distingue Meyers daqueles à sua volta é que ele tem valores pelos quais luta. O que não faz dele um mal estrategista. Embora novato no jogo político, seu talento é reconhecido inclusive pela campanha adversária. Ao que tudo indica, o próprio Meyers ingressara na profissão um cínico; mas ao conhecer Morris e se inteirar de suas propostas, se “converteu”, sendo agora objeto de gozação de seus colegas e rivais mais experientes.

O ponto menos importante do filme é o conteúdo específico das propostas de Morris. Ele é um candidato Democrata, o que já o coloca no lado esquerdo do debate político americano; e dentro desse campo, ele aparenta ocupar a ala mais radical, posto que suas propostas incluem projetos como eliminar o uso de combustíveis fósseis nos EUA em poucos anos. Eu mesmo discordo diametralmente de tais propostas e de todo esse tipo de posicionamento político; na vida real, portanto, dificilmente veria Morris a representação de algum ideal. Mas no mundo do filme é isso que ele é, e é assim que devemos tomá-lo. Meyers é alguém que acredita naquele ideal de integridade da política, e essa crença faz dele alguém também íntegro, que não está disposto a sujar sua alma para conseguir a vitória.

Como em todo filme desde a década de 60, ele continua, contudo, sendo humano. E um momento de fraqueza, uma coisa minúscula, algo que nem se pode chamar de pecado mas apenas hesitação momentânea de fazer a coisa certa (uma vaidade passageira que é vencida momentos depois) coloca em risco sua carreira de maneira inapelável. Ao mesmo tempo descobre que seu herói , embora culpado das piores sujeiras (curiosamente, delitos pessoais, sem implicação direta para as propostas políticas de Morris, que até onde sabemos podem muito bem ser sinceras; o caráter pessoal tem uma importância maior na política americana do que no resto do mundo), parece seguir em sua trajetória de sucesso.

Morris, seguindo tradição bem estabelecida na política, teve um caso com uma estagiária da campanha, a engravidou e agora tenta abafar o caso com um aborto na surdina. Meyers vê-se dividido entre os valores políticos que ele defende, os valores pessoais (personificados pela figura frágil da estagiária, interpretada pela bela Evan Rachel Wood) que a política ameaça atropelar e a sede de vitória e sucesso pessoal que nunca o abandonaram. É dessa tensão que brotou, ao menos para mim, o grande interesse do filme. A integridade pessoal pode sobreviver aos massacres da falibilidade humana, à sedução do poder e à frieza da máquina política?

O título em inglês é uma referência ao assassinato de César. O conflito moral no centro da trama também termina em mortes, duas delas literais: o feto que Molly carrega é abortado, e ela, abandonada por Morris e por Meyers, comete o suicídio. E é esse suicídio que ocasiona a morte central da trama: a morte da crença na integridade, e portanto da própria integridade que Meyers carregava consigo. O título em português dá uma boa dica de qual dos três valores em conflito (a dignidade individual, os valores da política e o auto-interesse cínico) prevalece. Com Molly sordidamente descartada, e Meyers tendo sido ele próprio cuspido para fora do jogo quando tentava fazer o bem, resta apenas lutar para permanecer no topo. O conflito moral termina e passa-se ao conflito de indivíduos em competição pelo mesmo fim. Entre três assessores de campanha nojentos e dois candidatos hipócritas – numa história ficcional –, todos maquiavélicos ao extremo, que importa se quem levará a melhor será o canalha 1 ou o canalha 2? Talvez esteja falando por mim mesmo, e essas considerações não se apliquem ao resto dos espectadores: mas quando em tela sobra apenas o mais cínico auto-interesse, é o meu interesse que vai embora.

Fora esse declínio (ou melhor, esvaziamento) da tensão moral do terceiro ato (mais curto), quando Meyers abre mão de quaisquer escrúpulos e aposta tudo no jogo de poder, o filme vale a pena. É sempre um prazer ver o jogo político muito bem jogado, e se é verdade que o desfecho é um tanto cínico (moral da história: a integridade não é possível no mundo real; ou ao menos no mundo político), resta um fundo moral: tendo perdido todos os ideais, Meyers se vê sem amigos e sem nada pelo que lutar. Chegou no topo; e daí? Se a virtude não é possível, isso não é motivo de comemoração, mas de luto. O cinismo final traz consigo seu sabor amargo, o que não deixa de ser um mérito.

Um comentário em “O Poder não é tudo

  1. presidencialismo é um sistema que seleciona manipuladores compulsivos para o cargo
    permite que ego maníacos alcançem projeção e respeitabilidade nacional,
    ganham a disputaeleitoral os melhores trapaceiros, os mais manipuladores, os melhores cínicos

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