O poeta e o filósofo (I)

unnamed

 

 

Renato José de Moraes*

 

No seu comentário à Metafísica de Aristóteles, há uma frase de Tomás de Aquino que sempre me chamou a atenção: “Mas a causa, porque o filósofo é comparado ao poeta, é esta: um e outro tratam das coisas que devem ser admiradas” (Sententia Metaphysicae, lib. 1 l. 3 n. 4).

Dois elementos trazidos à baila por essa frase são instigantes. Primeiro, a aproximação entre o filósofo e o poeta; depois, a importância da admiração.

A respeito da filosofia e da poesia, encontramos duas posições nitidamente diferentes em tradições filosóficas contemporâneas fundamentais. Segundo uma delas, o filósofo – conceito que também englobaria o cientista, naquilo que interessa para nós – teria por missão alcançar um conhecimento “duro” da realidade, que, em tempos de positivismo, de virtuosidade lógica e matemática, deveria evitar qualquer desvio para o que fosse sentimentalismo ou afirmações que não possam ser comprovadas empiricamente. Importaria que cada afirmação pudesse ser comprovada através de medidas, de equações ou do testemunho dos sentidos.

Na outra vertente, os pensadores diluem a separação entre filosofia e poesia. Nietzsche, por exemplo, empregava imagens que mais sugeriam e impressionavam do que analisavam, e sua prosa é artística em alto grau. Heidegger, principalmente na sua fase final, considerava que o pensar e o poetizar achavam-se cada vez mais próximos entre si (cf. SAFRANSKI, Un maestro de Alemania, p. 469), e sua obra deveria ser lida como “uma grande poesia” (Gertrud von le Fort).

Encontramos aqui as duas famílias de filósofos do nosso tempo, conforme distinguidas por Richard Rorty e que Benedito Nunes, de maneira divertida, assume como sendo os “sistemáticos” e os “edificantes” (Crivo de papel, p. 79). Nem é preciso dizer que ambas famílias trouxeram perspectivas importantes para o pensamento contemporâneo, pois a filosofia analítica (que na maior parte das vezes pode ser chamada de “dura” e “científica”) e as linhas que partem das especulações de Heidegger (que poderiam ser classificadas como “edificantes”, no sentido de Rorty) foram provavelmente os campos onde houve maior debate e produção no labor filosófico das últimas décadas.

Se essas duas famílias são importantes e têm posições antitéticas a respeito da relação entre poesia e filosofia, Tomás de Aquino parece não concordar exatamente com nenhuma delas, apesar de admitir aspectos de ambas. Para ele, a filosofia e a poesia têm algo em comum, porque partem de um ponto semelhante, e de certo modo buscam apresentar a verdade. Fazem-no por caminhos diferentes, mas tiram a sua força da realidade que desvelam.

A filosofia procurará explicar essa verdade de maneira mais ou menos analítica – dependendo de quanto seu objeto o permita – e sempre visando encontrar as causas e a melhor descrição daquela realidade. Tentará descrever o mundo que nos cerca, a interioridade do ser humano e as realidades metafísicas da maneira mais clara possível, a fim de que os conceitos possam ser transmitidos, compreendidos e compartilhados pelos seres humanos. Vemos que, à semelhança dos “sistemáticos”, Tomás aparenta almejar um conhecimento rigoroso e verdadeiro, que admite comprovação e alcança a universalidade.

Ao mesmo tempo, o pensador medieval defende a proximidade entre filosofia e poesia, o que as filosofias “duras” não fariam, e é sustentado pelos “edificantes”. A similitude com estes últimos, no entanto, esbarra em que os motivos da cercania filosofia / poesia são bastante distintos. Alguns modernos parecem casar essas duas atividades porque nenhuma delas chegaria propriamente à verdade racional, mas permitiriam experiências de outra ordem, que sobrepujariam ou substituiriam a razão. Em outras palavras, devido a um enfraquecimento da razão, a uma desilusão em relação a ela, ao menos na forma como ela foi compreendida por Aristóteles e seus seguidores, a poesia e a filosofia no fundo tratariam dos mesmos assuntos e com a mesma capacidade de penetração e discernimento, sem que pudéssemos racionalizar ou analisar o conhecimento. De certo modo, a verdade poderia ser atingida se conseguíssemos colocar de lado a razão, deixando o caminho aberto para outras faculdades distintas do ser humano.

Para Tomás, o que ocorre é o contrário: a filosofia e a poesia têm capacidade de conhecimento, de atingir a verdade, e a razão sempre será o mais nobre do ser humano. A filosofia analisa e descreve e a verdade, enquanto a poesia mostra-a e faz com que saltem aos olhos aspectos que passam despercebidos para a maior parte dos homens. Daí que seja natural que os filósofos partam das observações e descobertas dos poetas, para empregá-las como matéria de sua inteligência e assim chegar à filosofia.

Não é à toa que Tomás, concordando com Aristóteles, afirme que “filósofo é um certo philomythes, isto é, amante da fábula, o que é próprio dos poetas”. As fábulas são uma tentativa inicial de explicação, e o pensador ou cientista não devem simplesmente descartá-las, e sim aproveitar o que elas trazem de valioso. O fabulador pode ter entrevisto dimensões que escapam ao analista ou sistematizador, e este deve ser humildade o suficiente para colhê-las e trabalhar sobre elas.

Ao ler um poema, ao ouvir uma sinfonia ou contemplar um quadro, se estes forem nobres e nós estivermos preparados, abre-se para nós um aspecto da existência humana ou da estrutura do mundo, que desperta então a nossa sensibilidade e chama ao trabalho a nossa inteligência. Recebemos uma carga de realidade, a qual a filosofia poderá se esforçar por compreender melhor e iluminar o que nos rodeia e também o que nos preenche.

No campo da ética, a importância da experiência trazida pela literatura narrativa, que introduz o leitor na prática moral, a partir da qual ele pode refletir e construir um pensamento coerente, filosófico, foi defendida de maneira exemplar por Giuseppe Abbà (História crítica da filosofia moral, p. 35-39). A literatura dramática e narrativa são os melhores meios para alcançar a vivência moral de um ponto de vista do próprio agente moral, que é o personagem. É possível analisar o interior de quem escolhe, suas motivações e preferências.

A simbiose entre filosofia / ciência e arte, sem que esses elas se confundam nem se enfraqueçam, está na base de frases corriqueiras, como quando dizemos que uma demonstração matemática é bela, ou que um pensamento filosófico é inspirador, ou que uma pintura é reveladora. Empregamos as noções de beleza e de verdade em campos distintos, porque temos em conta que, em certos momentos, alcançamos um âmbito superior ao do dia a dia, que dá sentido e esclarece o que vivemos e percebemos.

Dar sentido. Talvez seja exatamente nisso que a filosofia e a poesia se encontram; dão sentido de maneiras diferentes, mas complementares. No meu modo de ver, esse dar sentido é antes de tudo um descobrir, um deixar-se apanhar pelo que já estava ali; por isso temos o maravilhar-se, a admiração. Porém, esta segunda parte da frase de Tomás é assunto para outro texto.

 

* Renato José de Moraes é advogado e doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>