O que é hipocrisia?

A lista de pecados (lembrem que o termo “pecado” não tem nenhuma conotação religiosa; significa ato imoral) mudou muito de uns tempos para cá. Alguns foram praticamente eliminados: da luxúria, por exemplo, sobraram só o estupro e a pedofilia, o resto tendo se transformado em virtude. Quanto à violência, embora considerada má, a maioria de suas manifestações é sintoma de desvios psicológicos ou estruturas sociais, e portanto fora da esfera moral. Só um ou outro serial killer é realmente mau. E há pecados novos, como os ambientais e sociais. Ambos extremamente convenientes, pois via de regra não se identificam a nenhum ato específico, e portanto ou estão sempre nos outros e nunca em nós, ou, mesmo quando admitidos, não implicam grandes mudanças de vida. A correção de conduta que porventura demandem (jogar o lixo na lata certa, fechar a torneira ao se ensaboar) será sempre algo confortavelmente distante do nosso núcleo central de gostos, desejos e amores; e então é possível ser bom sem nenhuma reforma muito profunda do caráter. Outros pecados, contudo, permanecem universalmente condenados há milênios; é o caso da hipocrisia.

Ocorreu, é verdade, uma mudança de definição. Para muitos, hipócrita é quem ousa fazer apelo a uma ordem moral objetiva para condenar o que quer que seja. É uma definição difícil de engolir: levá-la a sério significa, perante um crime hediondo, ver como única reação aceitável o “não julgar”. Ademais, é autocontraditória, pois, ao julgar que é mau julgar, se está julgando. Ainda assim, essa definição capenga preserva algo verdadeiro: a condenação moral é um ato no qual a hipocrisia pode se dar. O dicionário dá conta de defini-la melhor: manifestação de virtude fingida; e uma forma de fingir a virtude é condenar alguém para parecer bom em oposição.

Usando a definição, vemos que muito do que é considerado hipócrita na verdade não é. Assim, condenar um pecado do qual se é culpado não é, de si, hipócrita. Dou um exemplo: Todos nós já mentimos alguma vez, e volta e meia mentimos de novo em casos que consideramos injustificados. Seria hipócrita, então, condenar a mentira? Claro que não. Mais problemático seria quem se recusasse a fazê-lo, justificando assim o próprio vício.

A própria definição do dicionário, entretanto, é imperfeita, e inclui mais do que apenas a verdadeira, odiosa hipocrisia. Nem sempre é hipócrita a tentativa de esconder um vício (o que via de regra implica fingir-se virtuoso); há situações em que é objetivamente bom. Um professor pode ser preguiçoso e querer genuinamente que seus alunos não o sejam. Transparecer seu próprio vício para eles seria um grande obstáculo para esse fim. Sua postura na classe deve ser a de alguém ativo, trabalhador, para encorajar os alunos. Ademais, é agindo como se fôssemos virtuosos que adquirimos, aos poucos, a virtude; um processo cujos primeiros passos podem ser só para manter as aparências (claro, estagnar nesse ponto é botar tudo a perder).

Em geral, o bom exemplo é motivo suficiente para não transparecer para tudo e todos os vícios que se possui; sem falar no dano desnecessário ao próprio nome. A vergonha não chega a ser uma virtude, mas está bem longe da hipocrisia. O sujeito considera ruim um certo vício que possui (se esforça, inclusive, para melhorar), que ele obviamente não sai mostrando por aí; e se se depara com esse pecado sendo cometido, condena-o e dá seus motivos (que são sinceros).

O caso acima finge ter uma virtude que realmente gostaria de ter. Mas e o caso daquele que não quer ser virtuoso? Ou seja, a pessoa que possui um vício, não deseja superá-lo, condena-o publicamente nos outros e ainda por cima finge-se virtuosa, essa certamente é hipócrita? Mesmo essa pode não sê-lo. É só imaginar o caso de um velho autocomplacente que, apesar de tudo, não quer decepcionar os que o admiram. Perdeu a esperança em si, mas ainda nutre alguma pelos que o rodeiam, e detestaria vê-los resvalar pelo mesmo desânimo quanto ao bem do qual ele próprio desistiu (“Sou um caso sem volta; mas meus netos podem ser melhores do que fui.”). Finge ser virtuoso, condena o vício e, embora não queira sair de seu estado (conformou-se), nem por isso é hipócrita.

Estamos chegando perto. Para ser hipócrita, bastaria que a preocupação do sujeito fosse com sua própria aparência enquanto tal, e não enquanto meio para o progresso moral dos netos. Nesse novo caso, o fingir a virtude e condenar o vício não decorrem de nenhuma percepção de que eles constituem um objetivo desejável para si ou para os outros, mas do simples desejo de se engrandecer. Isso é compatível com (e até depende de) uma boa dose de auto-engano: ninguém é aberto consigo mesmo quanto ao amor ao vício e à dissimulação – a percepção clara da própria condição causaria na grande maioria o imediato desejo de mudar. Em alguma medida, o sujeito se considera virtuoso, embora esse juízo próprio decorra da opinião alheia baseada na aparência falsa que ele construiu. Mas o seu verdadeiro desejo não é ser bom: quer, no fundo, apenas aparentá-lo enquanto continua mau; quer a glória devida ao bem sem o bem em si.

6 comentários em “O que é hipocrisia?

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  2. Caro Joel,
    Considerando o que você escreveu, podemos dizer que a hipocrisia é, mais do que um obstáculo ao arrependimento (e à mudança que a segue), o próprio oposto deste?

  3. “A man, wrote John, who says he believes in God and does not keep his commandments is a liar. If John is right, then I am a liar. Nevertheless, I still believe.” (Walker Percy, Love in The Ruins, recomendação do blog Feliz Dieta Nova).

  4. Bom, não resisto à sintonia fina, mesmo que digam por aí que eu li demais. Esse livro do Walker Percy é muito bacana. A personagem principal inventa um “lapsometer” que detecta escondido e quase morto, nas várias zonas relevantes do cérebro,aquele sujeito não hipócrita, não esnobe, não desejante em função do que imagina ser o desejo do outro. Sujeitos não hipócritas são um tipo que está sumindo no fim dos tempos, e a tal personagem quer ver se cura existencialmente os diversos “mortos-vivos” de uma sociedade americana em vias de desintegração. O resto não conto senão estraga a leitura. Citação aí em cima pertinente. Verdade romanesca é isso aí.

  5. O livro de WP sugere também algo patente para todos nós, para nós próprios, ao menos em alguns momentos. O hipócrita (mon semblable, etc) pode preferir negar para si próprio…que está a negar seus próprios desejos. E por favor, não se trata aqui de supor que desejos são ok por existirem, nem de defender os interesses do baixo ventre. O ponto é mais ou menos o seguinte: ignorar/negar o que se deseja e estacionar no mimetismo de desejos alheios (supostamente) é matar-se um pouco em benefício de ídolos. Hipocrisia, esnobismo. Essa negação atravessa toda uma gama: no extremo, gera impossibilidade de trazer a mentira à consciência e portanto inviabiliza, sim, o arrependimento. É o seu oposto. O Dr. Thomas More (pois é, o nome da personagem principal do livro de WP) não perde sua ligação com a verdade e portanto com a Igreja, ainda que em registro parecido com o daquele padre beberrão de “Power and the Glory” do Graham Greene (a diferença é que “Love in the Ruins” é tremendamente bem humorado à maneira americana, em pleno apocalipse). Em palavras melhores , é aquela história das prostitutas que podem nos anteceder aonde interessa chegar. Quando se enxergam e sofrem com isso. Do contrário, perdem-se (perdemo-nos) na vida. Mas por causa do Thomas More, vale recordar mesmo um pouco bruscamente que também sociedades inteiras podem preferir iludir-se – até de maneira “ingênua”, sem consciência clara: http://acutilante-jptfernandes.blogspot.com/2009/12/ataque-terrorista-de-detroit-uma.html

  6. Basicamente então hipócrita é quem condena uma pessoa não possuidora de determinada virtude ao fazer apelo a uma ordem moral objetiva e específica que não reconhece, ele mesmo, despossuir.

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