O senhor das moscas

E por falar em sujeitos perturbados que, volta e meia, resolvem usufruir dos seus demônios sexuais com mocinhas impúberes, eis que foi lançada na Inglaterra uma biografia sobre William Golding, o autor de O Senhor das Moscas.

O livro foi escrito por John Carey e, de acordo com suas primeiras resenhas, mostra de forma compassiva um Golding que reconhecia o Mal dentro dele porque teria, aos 18 anos, estuprado uma menina de treze, com quem logo depois manteria um love affair cabeludo que, pasmem, envolvia até o pai do futuro Prêmio Nobel de Literatura.

Goldings e Polanskis à parte (já que o assunto são as lolitas que fazem da nossa vida labaredas da carne de todos), o fascínio de Carey por seu objeto de estudo – e também da casta de Hollywood que resolveu defender o cineasta polonês com uma lista grotesca de abaixos-assinados – já foi decifrado pelo filósofo inglês Bernard Williams com a sua teoria do moral luck (fortuna moral). Moral luck consiste em você não considerar certas escolhas morais que um determinado sujeito fez porque o “ideal” pelo qual ele se sacrificou foi alcançado e isso justifica todas as suas conseqüências, independente se elas afetaram ou não seres humanos. Williams explica a teoria dando o exemplo biográfico de ninguém menos que Paul Gauguin que, ao abandonar sua família na Dinamarca, foi para o Taiti se tornar um dos maiores pintores do final do século XIX e, por isso, ninguém mais se preocupou em saber onde estão ou como ficaram os filhos e a esposa. (Nem a Wikipedia tem um verbete a respeito deles, para vocês perceberem o descaso)

Ora, não é o mesmo procedimento adotado com William Golding e Roman Polanski? Estuprar pode, desde que você realize grandes obras de arte.

Este fascínio estético é, na verdade, uma doença do espírito, intensificada pela mentira romântica da qual os nossos tempos pós-modernos são os herdeiros.

Mas é claro que, tanto no caso de Polanski como no de Golding, existem as devidas resistências. Já mostramos a repercussão do caso Polanski na semana passada; agora, mostraremos dois textos sobre a biografia de John Carey a respeito de Golding, sendo que o mais importante talvez seja uma crítica de Alexander Waugh – sim, o neto de Evelyn – em que, de sobra, ataca o estilo do Nobelizado e defende o seu próprio pai, Alberon.

4 comentários em “O senhor das moscas

  1. Martim

    “Moral luck consiste em você não considerar certas escolhas morais que um determinado sujeito fez porque o “ideal” pelo qual ele se sacrificou foi alcançado e isso justifica todas as suas conseqüências, independente se elas afetaram ou não seres humanos. ”

    Essa “moral luck” não é exatamente a mesma professada por Raskolnikov em “Crime e Castigo”?

    Dei boas risadas ao ler um artigo no qual o autor se perguntava como reagiria a mídia global se, em vez de um grande cineasta, fosse um arcebispo católico que tivesse admitido o estupro de uma garota de 13 anos nos EUA e 138 bispos fizessem uma carta de apoio a ele…

  2. “Dei boas risadas ao ler um artigo no qual o autor se perguntava como reagiria a mídia global se, em vez de um grande cineasta, fosse um arcebispo católico que tivesse admitido o estupro de uma garota de 13 anos nos EUA e 138 bispos fizessem uma carta de apoio a ele…”

    Hahaha, muito bom.

  3. Concordo com tudo, mas apenas para jogar uma pitada de sal nesse prato indigesto: sem querer justificar as perversões e violências de ninguém com base na “sorte moral”, Theodore Dalrymple faz no artigo abaixo reflexões interessantes — e, penso eu, bastante profundas — sobre um notável escritor contra quem se podem fazer acusações semelhantes, Arthur Koestler.

    http://city-journal.org/html/17_2_oh_to_be.html

    É claro que é mais fácil para o crítico de arte evitar usurpar o papel de juiz quando o artista criticado tem a gentileza de não fugir do juiz (e do oficial de justiça, e da polícia, e de todas as autoridades do país, e de quem mais tenha por função exigir que o criticado responda por seus atos). E quando o criticado já está morto, como no caso de Koestler, ninguém precisa mais “tomar posição” acerca de abaixo-assinados em favor de foragidos da justiça ou outras coisas ridículas do tipo. (De qualquer maneira, ocorre-me que, depois de “Darkness at Noon”, Koestler dificilmente seria considerado maravilhoso o suficiente para merecer um abaixo-assinado por parte dos principais cultores do gênero.)

  4. Não é a mesma coisa, Martim: no caso de Gauguin sua ação imoral (abandonar a família) guarda uma relação direta com o seu ground project (expressão de Williams) de se tornar um grande pintor, e é somente seu sucesso que justificaria (retrospectivamente) sua decisão.
    Até onde eu seu, estuprar criancinhas não tornou Polanski um grande diretor e não tem nenhuma relação de causalidade com nenhum filme seu (nem mesmo Repulsa ao Sexo)

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>