O seqüestro da crítica

Por Rodrigo de Lemos

Quando Roger Kimball lançou The Rape of the Masters, pus-me a imaginar o que ele não diria sobre a crítica no Brasil. Bem antes dos anos 80 (década em que os resentniks pós-estruturalistas invadiram as universidades americanas), uma parte da crítica brasileira já entendia sua atividade como a violência aos mestres locais justificada pelas “boas causas”. E eis que aparece agora o Eduardo Wolf com esse artigo sobre “O seqüestro de Machado de Assis” na última Dicta&Contradicta. Claro, a reflexão do Eduardo não me parece dever alguma coisa à do Kimball; mesmo assim, não deixo de esperar que ela seja para nós um pouco do que The Rape of the Masters foi para os americanos: um alerta para os estragos decorrentes da politização da crítica e um sinal para os discordantes de que eles não estão sozinhos.

Nesse breve comentário, quero me deter em dois pontos: primeiro, por que interpretações como as de Roberto Schwarz sobre Memórias póstumas tornaram-se por aqui não apenas mais uma leitura, legítima entre outras tantas, sujeita a contestações e a ataques, mas a interpretação dominante, combatida de quando em quando por tímidos balbucios; em seguida, vou levantar os problemas e as contradições que a centralidade reclamada por críticos como Schwarz para suas leituras sociológicas trazem para suas próprias teorias. Quem acompanha os meios literários nacionais (nos quais sempre houve quem torcesse o nariz para um Murilo Mendes, por exemplo, por ele não ter feito poesia engagée nem ter sido um obcecado pela identidade nacional) sabe que o pensamento de Schwarz está longe de ser um caso isolado. Não faz muito, soube de um crítico que, comentando dois “O navio negreiro”, um de Heinrich Heine, outro o de Castro Alves, tentava mostrar como o poema do alemão era em muito superior ao do brasileiro: em lugar da preocupação meramente moral deste (e deixo o “meramente” por conta do crítico), o tratamento de Heine teria sido mais feliz ao tomar em conta as ligações do tráfico negreiro com o capitalismo internacional. Nenhuma palavra sobre a diferença de arte poética entre os dois: uso das imagens, das figuras de linguagem, dos procedimentos rítmicos; para ele, o poema de Heine era superior porque Heine era melhor sociólogo. Observações sociológicas desse tipo tornaram-se a tal ponto preferência nacional que passaram a ser tomadas por critério de julgamento estético.

Cabe perguntar o motivo desse furor sociologizante. Primeiro, a sociologia é o único horizonte para uma boa parte do público e dos próprios escritores. Diferentemente da França, por exemplo, que dispõe de uma verdadeira educação para a forma desde, no mínimo, o século XVI, para certas correntes críticas prestigiosas no Brasil, a análise imanente é vista com maus olhos. A retórica saiu de moda há tempos; poucos se interessam em voltar a Cícero e a Quintiliano para neles aprender a identificar e a empregar técnicas lingüísticas. O estudo da versificação é por aqui uma raridade, e a maioria do público de poesia, quando não dos próprios poetas, ignora os princípios básicos da métrica e da prosódia, isso sem falar em outros procedimentos fônicos mais sofisticados (modulações ou harmonias, por exemplo). Ao mesmo tempo, tudo em que o legado estruturalista foi positivo, tudo o que nele foi além de pretensão cientificista e que realmente podia contribuir para o estudo da literatura, é hoje preterido em favor de investigações temáticas que confirmem os derniers cris do politicamente correto e do multiculturalismo. Diante dessa planície analítica, não surpreende que as leituras sociológicas avancem terra adentro sem encontrar obstáculos de relevo.

Mas, para explicar essa tendência, há algo além dos recursos críticos limitados característicos do pensamento literário atual. A transformação de conceitos sociológicos em categorias de julgamento é o corolário de uma idéia aparentemente inocente e que, à força de repetição, entrou de tal forma no pensamento sobre literatura que se transformou no seu maior, e senão único, consenso: a de que a chave para a compreensão de uma obra literária está em sua relação com o contexto histórico; dito de outro modo, de que a significação mais profunda de uma obra explica-se pelo tipo de representação que ela traz de uma sociedade em um dado momento da história ou do tipo de relação que estabelece com essa sociedade. Daí decorreria, para os defensores dessa tese, que a qualidade da obra mede-se pela maneira mais ou menos penetrante com que ela revela as contradições do meio em que foi escrita, culminando frequentemente na instrução de um processo contra as classes dirigentes, contra o racismo, contra o falocentrismo, contra o perseguidor do momento.

Na verdade, a tensão atual entre críticos sociológicos (sobretudo marxistas) e críticos pós-something reside menos em uma oposição radical de visões sobre a sua própria atividade intelectual do que em uma diferença entre as causas a que eles a submetem, a luta de classe no caso dos primeiros, a defesa de minorias entre os segundos. Em ambos os grupos, desconsidera-se da análise literária não somente a dimensão formal, mas também qualquer outro aspecto relativo à vida interior (psicológica, moral ou religiosa) e que transcenda o jogo de forças sociais.

Claro, para muitos dos críticos de filiação sociológica, este último é um falso problema, pois o que são todas essas dimensões da natureza humana senão, a exemplo da própria obra literária, fenômenos de superfície que, por sua vez, encontram sua razão de ser na vida social e econômica? Mas, ao sustentá-lo, o crítico sociológico cria uma armadilha para sua própria leitura, pois ou bem lhe atribui uma objetividade que ele mesmo nega a qualquer outra forma de conhecimento, e então seria de esperar que justificasse essa superioridade apolínea auto-atribuída, ou bem dissolve a verdade do seu discurso na pura historicidade em que ele já dissolvera a verdade da obra literária. Rompe, no último caso, qualquer compromisso com a objetividade, com a busca de uma verdade transcendente à sua própria situação histórica, a seus interesses ideológicos e partidários – quando é o conhecimento da verdade que deveria determinar a estes últimos. A partir desse ponto, qualquer violência – estupro ou seqüestro – fica permitida, e só nos resta repetir a ritournelle do Eduardo ao fim do artigo “O que pensar, leitor, o que pensar?”.

Rodrigo de Lemos é mestre e doutorando em Literatura Francesa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde atualmente é também professor na mesma área.

6 comentários em “O seqüestro da crítica

  1. “avancem terra adentro sem encontrar obstáculos de relevo”

    Sucessivas figuras de linguagem, algumas das quais, sozinhas, seriam bastante ordinárias — “de relevo”, “encontrar obstáculos” — porém coordenadas numa só imagem coesa, sugestiva, visível quase. Cousa linda! Imagino que tenhas chegado a escrever “obstáculos relevantes” e trocado o adjetivo por “de relevo” ao ver que achado seria expor a metáfora subjacente. Muito, muito bem.

  2. Interessante o texto. Mas você não acha que está generalizando, tratando a “sociologia da literatura” como algo mais homogêneo do que realmente é?

  3. Grato pelos comentários, caros.

    Guilherme, gostaria de ter pensado em tudo isso, mas, para bem ou para mal, há parágrafos que escrevo sem interrupções .

    K., lui-même.

    Silvio, conheço o John Ellis por comentários de terceiros, mas nunca li. Quero acreditar que é muito bom. Verdade?

    jp, talvez tenhas razão ao dizer isso – minha retórica no texto pode levar a crer que desconsidero a crítica sociológica como um todo. Pelo contrário; acompanho o trabalho de muita gente que estuda isso, alguns dos quais conheço pessoalmente, e sempre leio o que escrevem para apreender informações ou pontos de vista que para mim sejam novos (e, às vezes, pouco simpáticos). Na verdade, acho que uma versão light da sociologia da arte e da literatura só enriquece uma formação humanística. O problema começa, a meu ver, quando se tenta elevar a crítica sociológica a uma ciência geral da literatura. Porque, se a importância uma leitura histórica de um Chateaubriand, por exemplo, impõe-se por si mesma, o mesmo pode-se aplicar a “Morte em Veneza”, a “M. Teste” do Valéry ou às “Elegias do Duíno”? E, caso (como eu penso) não, como professar então uma ciência literária que não tem muita coisa a dizer sobre uma parte importante dos objetos a que se destina? Além dos motivos de que já tratei no texto, penso que uma ciência da literatura fundada em categorias sociológicas acaba resultando nisto: ou uma teoria conveniente apenas para meia-dúzia de textos (na maioria, romances) ou uma teoria que, aplicada ao conjunto da literatura, exige do leitor um esforço enorme de credulidade para aceitar algumas interpretações que estão muito longe do sentido literal do texto – como é um caso que o próprio Kimball cita, o de uma leitura pós-estruturalista sobre o significado do derrière de um cervo em um quadro de Corot.

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