O Valor do preconceito moral

Até que ponto estamos dispostos a abrir mão de convicções morais previamente estabelecidas para adequar nossas crenças a algum argumento contrário ao qual não temos resposta? A honestidade intelectual exige que estejamos sempre prontos a fazê-lo?

Consideremos alguns exemplos: um indivíduo considera o aborto um direito da mulher. Ele não necessariamente pensa que o aborto seja uma decisão fácil, ou que seja uma decisão perfeitamente correta em todos os casos, mas ainda assim não vê como a vida de um ser ainda não-humano possa ser mais importante do que a autonomia da mulher. Ao mesmo tempo, ele considera o infanticídio, isto é, o tirar a vida de bebês já nascidos, algo profundamente imoral.

Eis que ele se depara com o recente artigo de ética médica no qual os autores fazem o seguinte argumento: o feto ainda não é uma pessoa, e por isso é lícito matá-lo. O bebê nascido não se difere do feto em nada relevante para que ele seja considerado pessoa. Portanto, ele também não é pessoa. Logo, é lícito matar aos bebês já nascidos, prática que os autores chamam de “aborto pós-parto”.

O artigo tem, justificadamente, causado grande celeuma nos meios intelectuais. Minha pergunta é: deve o indivíduo que defende o direito ao aborto mas é contrário ao infanticídio (ou aborto pós-parto) imediatamente abraçar a licitude dessa segunda prática, ou deve ele, ainda que sob o risco de defender provisoriamente uma posição incoerente, manter suas convicções originais indo contra a melhor evidência à qual ele tem acesso?

Outro exemplo: um outro indivíduo considera o incesto uma prática errada e profundamente repulsiva. Nunca pensou muito no assunto, e um dia conheceu alguém que discorda dele e o provocou com indagações e questionamentos aos quais ele não soube responder. Lendo sobre o assunto, não encontrou nenhum argumento que embase sua convicção com a força que ela merece. O argumento dos problemas genéticos, por exemplo, parece por demais circunstancial e evitável para dar conta da rejeição que ele sente, e que ele considera correta, à prática do incesto.

Terceiro e último caso (e saindo um pouco da realidade para aumentar o teor provocativo): um sujeito é contrário ao estupro, e enxerga esse crime como gravíssimo. Um outro lhe interpela e diz que, embora o estupro seja de fato errado, ele não é mais condenável do que outras ações feitas contra a vontade do indivíduo. Afinal, o sexo é só um instinto animal como qualquer o outro. Frescuras contemporâneas à parte, não é mais imoral fazer sexo à força do que alimentar alguém à força. Nosso protagonista responde que não, que a sexualidade humana tem um valor e uma importância muito maior do que a de um mero instinto animal. Seu interlocutor diz que isso é mero preconceito sentimental até que ele prove o contrário. E, de fato, ele é incapaz de prová-lo racionalmente de forma convincente; é algo que ele experimenta, mas não saberia provar que essa experiência tem algo de concreto por trás ou se se trata de mero preconceito, como insiste seu amigo.

E então, devem esses três indivíduos, levados pelo desejo de serem intelectualmente honestos, abrir mão de suas crenças morais para se adequar aos melhores argumentos e evidências que conhecem? Será honesto aderir a uma tese mesmo que a tese contrária tenha, ou pareça ter, melhores razões em seu favor?

No caso específico da ética, e de tudo que impacta na ação humana em áreas centrais da vida, parece-me que sim. Afinal, essas são questões que, mais do que respondê-las com opiniões puramente teóricas, respondemos na prática, com nossas vidas.  Uma resposta errada pode levar a uma vida errada, para si ou para os outros que venham a seguir o exemplo.

Sabemos que argumentos aparentemente sólidos podem advogar teses obviamente falsas. O melhor exemplo a esse respeito são os paradoxos de Zenão contra a realidade do movimento; uma refutação plausível e definitiva deles só começou a ser viável depois do desenvolvimento do cálculo diferencial mais de dois mil anos depois de sua formulação. Felizmente, a humanidade não deixou que uma artimanha lógica se sobrepujasse à experiência cotidiana do movimento.

Como a ética lida com o que há de mais valioso em nossas vidas, essa relutância em mudar de convicções de um instante para o outro (mudança que, ademais, é psicológica e socialmente custosa), esse preconceito de que nossos sentimentos estabelecidos devam ter preferência, ao menos provisória, sobre novas conclusões revolucionárias, cumpre um importante papel: resguardar nossa integridade contra as marés de argumentos passageiros. A honestidade intelectual deve levar em conta o reconhecimento de que nosso intelecto é falível, especialmente no curto prazo.

10 comentários em “O Valor do preconceito moral

  1. Muito bom o texto. E permitam-me que eu desvie um pouco sobre a questão da moral e do verificacionismo (seu texto é muito pertinente pois creio que venha de encontro ao que o William L. Craig citou em sua palestra ontem) pra me aprofundar na questão do aborto em específico.

    Eu, particularmente, abandonei todo e qualquer resquício pró-legalização do aborto que eu tinha ao me deparar com esse artigo médico – simplesmente pelo fato de que concordo com eles de que um feto está tão próximo de um recém-nascido; o que torna o aborto, conseqüentemente, muito próximo – senão sinônimo – de infanticídio.

    Essa foi a gota d’água depois de uma sucessão de outros questionamentos que eu vinha levantando pra mim mesma, tentando provar se a legalização do aborto seria uma medida justa ou não. Porque eu sempre fui contra o aborto em si, mas achava que o direito à escolha deveria manter-se intocado, e não via contradição alguma nessa opinião (muita gente pensa assim – nossa atual presidenta, pra citar uma famosa. Aliás, ninguém se diz “pró-aborto”, e sim “pró-escolha”, não é?). Até que vi uma feminista argumentando: “sabe o que vai acontecer se o aborto for legalizado e você não quiser abortar? Isso mesmo, nada.” Ué, então isso significa que se eu não quero matar alguém, o assassinato pode ser legalizado?

    Também argumentava que em alguns países europeus, depois d’o aborto ser legalizado, a prática diminuiu drasticamente.

    Mas será que o mesmo aconteceria no Brasil? Será que vale a pena arriscar? E, indo direto ao ponto: é coerente você defender a livre prática de algo que você pessoalmente repudia?

    Além disso, há a questão do embrião e do feto não serem seres humanos plenamente formados, e, por conseguinte, não possuírem direitos. Este era o último argumento que eu tinha em mãos pra defender meu ponto de vista, quando passei a me questionar: como um ser humano pode determinar onde a vida começa? É só no nascimento ou não será na concepção? Por fim, fui vencida esse texto que exibe claramente a proximidade entre um feto e um recém-nascido. Tem gente que cai na falácia de compará-los a espermatozóides, dizendo “se é pra proibir o aborto, que proíbam a punheta!” Ora, se você manter um feto se desenvolvendo dentro do útero da mãe, dentro de alguns meses ele vai se desenvolver até tornar-se um ser humano completo. Agora deixe uma quantia qualquer de esperma esparramada no chão por 9 meses e veja o que vai acontecer.

    Me sinto até ridícula refutando esses argumentos, mas não menos ridícula do que as pessoas que os defendem.

  2. Joel,
    existiria um “ônus da prova” moral-argumentativo para o que nos parece (instintivamente) errado, mas ao qual não se consegue contrapor argumentos que podem ser considerados melhores/superiores?

    A situação por ti descrita, de não se conseguir “responder” a um bom argumento em contrário deve signifcar ipso facto que o sujeito está convencido do contrário?

    Talvez eu não tenha entendido o teu ponto – o que é bastante provável – mas, quer me parecer, que a ignorância ou as limitações argumentativas não significam, necessariamente, a compulsória mudança de posição sobre determinado assunto.

  3. Excelente! O JPC tratou semana passada desse artigo dos filósofos Alberto Giubilini e Francesca Minerv : http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/1057426-bebes-para-abate.shtml
    Para ele seria tão-somente a premissa progressista da “autonomia da vontade dos pais” levada às últimas consequências. De fato, o argumento é coerente em sua estrutura lógica, perturbando a mente dos abortistas, já que estes não veem nada de errado com a premissa em si. Por isso é bom que, nesse sentido, os progressistas mantenham um pouco de incoerência. O bom-senso agradece.

  4. Há muitas confusões nos comentários sobre aborto.
    Espermatozoides e óvulos não são seres humanos, são gametas humanos. O ser humano é diploide e os gametas são haploides (apresentam apenas um cromossomo de cada par).

    Não existe dúvida se um feto humano é ou não humano. Se não for humano, é um ser de que espécie? Assim como não existe dúvida sobre quando a vida humana se inicia: é na união do espermatozoide e do óvulo. Se o óvulo fecundado não tivesse vida, não poderia se nutrir e se desenvolver como faz, inclusive estimulando o corpo da mãe a proporcionar as condições necessárias para ele. Nada morto pode fazer isso.

    O questionamento é sobre o estatuto dessa vida nesse estágio inicial. O que os abortistas argumentam é que essa vida é descartável até que não tenha “consciência”. Arbitrariamente, dizem que algo do tipo surge a partir do terceiro mês de vida (12 semanas). Mas até hoje há quem questione a existência da própria consciência. O badalado filósofo ateísta militante Daniel Dennet afirma que ela não existe. Se há quem questione “seriamente” (pelo menos para os ateus) se há consciência, como é que alguém pode estar tão certo sobre quando exatamente ela surge?

    As tais 12 semanas (na Espanha são 14!) em que a vida humana seria descartável são arbitrárias até em termos puramente biológicos, pois o tubo neural (estrutura embrionária que dará origem ao cérebro e à medula espinal) se forma a partir da TERCEIRA SEMANA de vida (quando a maioria das gestações ainda não foi detectada).

    A verdade é que ninguém (nem a ciência, nem a Igreja) sabe se de fato é a partir da concepção que já há uma pessoa, ou a partir da 12ª semana (ou da 14ª, como na Espanha).

    A prudência não seria a melhor postura? Seria aceitável dar tiros numa direção só porque PROVAVELMENTE não há ninguém passando até onde as balas alcançam?

  5. Ótimo texto, Joel.

    Talvez você se lembre de um post do Alexandre Soares Silva sobre o terceiro e último caso do seu. Não lembro se lá alguém lembrou do mais óbvio: Ao forçar alguém a comer um prato de farofa, temos um ato violento em que uma pessoa come um prato de farofa contra a própria vontade.

    Num estupro, no entanto, não estamos forçando uma pessoa ao equivalente de comer farofa. Estamos forçando uma pessoa a ser, ou na impossibilidade ontológica, exercer o papel analógico de um prato de farofa, e é isso que torna o estupro algo horrível, como o o aborto e o incesto.

    Abraço!

  6. Não lembrava, Igor. Acho a analogia – ou melhor, imagem – utilizada interessante, mas não me convence.

    Afinal, se eu deito uma pessoa no chão e sento em cima dela, estou forçando-a a ser o “equivalente analógico” de uma cadeira. E, embora esse ato não seja nada legal, é algo muito menos grave que um estupro.

    O estupro, em certo sentido, não objetifica a pessoa estuprada completamente. Pois para o estuprador não é indiferente o fato de ele estar violentando uma pessoa viva ao invés de um boneco. Ver o outro como uma pessoa dotada de identidade e desejos é essencial para o sexo em geral e, imagino, para o estupro também, seja ele fruto de desejo sexual, de desejo de dominar o outro, etc. E nada disso o torna menos terrível. Ou seja, não é a mera objetificação, o tratar o outro como objeto, que faz do estupro o mal que ele é. Talvez ele fosse até menos mal, menos perverso, se a objetificação fosse total, e o estuprador visse sua vítima como mero instrumento físico para satisfazer seu desejo sexual (mas daí também provavelmente não estupraria, pois outros objetos se prestam à mesma função muito mais facilmente).

  7. Não sei se consigo concordar com as ideias debatidas no texto acima, porque creio que para cada exemplo apresentado, é preciso conciliar o aspecto racional com o aspecto emocional, isto é, se se discute a gênese da vida em si, a intervenção de uma moral social que condena as relações carnais consanguíneas ou a sujeição a uma prática que produzirá prejuízo a outrem não cabem a um simples exame em que são enumerados prós e contras que podem ou não ser o fiel da balança na tentativa de solucionar tais questões.
    Quero crer que para toda generalidade, é mais do que necessário avaliar a parte que cabe à individualidade da(s) pessoa(s) envolvida(s): em outras palavras, se uma opinião ou um consenso for predicado a um destes casos, automaticamente irá encontrar opositores por não se ater a uma questão que pode ser esclarecida por um “certo” ou “errado”, já que entram neste ínterim a vontade e o desejo das pessoas, sejam elas as protagonistas do dilema ou as espectadoras.
    Sinto que nesta época em que vivemos o ideal promovido por intelectuais de gabinete se sobrepõe aos dramas da vida real, fenômeno comum que mereceria um olhar mais acurado para se entender esta e outras questões que foram tocadas no texto acima. Tais especialistas podem também sofrer de rupturas em sua argumentação, da mesma forma que reagiram as pessoas citadas nos exemplos. Problemáticas como aborto, incesto e estupro estão além da ordem da razão ou da emoção per se; incorporam-se aos pressupostos éticos e não se resolvem com a mesma facilidade de uma proposição matemática. Já vi estudos que apontam que, biologicamente falando, demonstram que a gênese da vida está no potencial do feto em poder se tornar uma criança futuramente, portanto, o aborto, se for premeditado por incapacidade psíquica/material da mãe em responsabilizar-se por outra vida poderia se aproximar do que outrora foi dito como uma extração forçada da vida (se formos seguir por esta toada, e quanto ao suicídio? Afinal, este ato atenta contra a própria vida e, caso não obtenha seu “êxito”, poderia ser considerado como uma tentativa de assassinato?). O incesto tem suas raízes na moralidade social e teorias da degenerescência tão proclamada em meados do século XIX e mesmo que a Psicanálise tenha sido erigida em torno de sua proibição e de seu desejo de transgredi-lo, ainda caberia entender o porquê de tanta celeuma, afinal somos mamíferos e a racionalidade não é a única característica que nos separa do reino animal. Quanto ao estupro, toda forma de violência – física ou psicológica – atende pela alcunha de crime contra o indivíduo, porque destitui dele o direito a não compactuar contra tal prática nem de defender-se perante esta situação. Dos três casos apresentados, creio ser o único que fornece uma argumentação inapelável que não necessita de revisões, assim como o do incesto por motivos de outra ordem – pais devem criar e educar, irmãos devem ajudar-nos a crescer e demais parentes consanguíneos relativos ao primeiro grau não precisam ser as únicas opções de conjugalidade para pessoas.

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