Neste elaborado artigo para o The Atlantic, analisando o trabalho de colegas neurocientistas, Oliver Sacks, professor de neurologia na Escola de Medicina da NYU e colaborador da Dicta&Contradicta, alega que experiências de proximidade da morte (NDEs – Near-Death Experiences, no jargão popular) e outras percepções do tipo, como as OBEs, não constituem evidência a favor da existência do sobrenatural. Como se trata de dados observáveis, neurocientistas sempre terão a palavra — ao menos no que diz respeito às evidências. Ao final, diz ele,
“hallucinations, whether revelatory or banal, are not of supernatural origin; they are part of the normal range of human consciousness and experience. This is not to say that they cannot play a part in the spiritual life, or have great meaning for an individual. Yet while it is understandable that one might attribute value, ground beliefs, or construct narratives from them, hallucinations cannot provide evidence for the existence of any metaphysical beings or places.”
.
Como saber que todas essas experiências foram alucinações? Tudo que pode ser dito é que “esse tipo de experiência é possível como alucinação”, certo?
No artigo ele não menciona os inúmeros relatos de EQM ou NDE em que os pacientes relatam com riqueza de detalhe acontecimentos e fatos comprovados por testemunhas que ocorreram na sala em que os pacientes estavam ou mesmo fora dela como os relatados no livro de Craig Hogan, “Your Eternal Self” (http://youreternalself.com/chapter1textlink.htm). Estes fatos não podem ser explicados como formas de alucinações, pois se referem a acontecimentos reais, testemunhados por terceiros, e dos quais os pacientes não poderiam ter tido experiência, pois não registravam atividade cerebral e seus sentidos estavam impedidos de receber inputs, a não ser que sua alucinação, por um golpe de coincidência sensacional, coincidiu exatamente com a realidade. Realmente tais fatos não comprovam a existência de seres sobrenaturais ou mesmo a imortalidade da alma (o que seria um salto temerário na cadeia de premissas), mas somam evidências, ao meu ver, da existência de consciência pessoal independente do corpo ou do cérebro, indo contra a idéia da “ilusão da alma”. Seria importante estudar caso a caso para saber se o paciente em EQM não poderia ter recebido a informação por outros meios. Creio que a comprovação de um único caso já seria suficiente para demonstrar a independência da consciência em relação ao cérebro e ao corpo, de um ponto de vista rigorosamente racional. Já fazem estes experimentos em Universidades brasileiras, se já não faziam: http://www.partidaechegada.com/2011/09/eqm-estudos-tentam-comprovar.html.
Julio, você leu todo o artigo?
Sim, eu li todo o artigo. A citação que incluí é o último parágrafo.
Acho que o equívoco em classificar todas as NDEs como alucinações, que é justamente o que faz Sacks no artigo, é deixar de fora do raciocínio dois elementos fundamentais: o testemunho dos pacientes sobre objetos e pessoas que eles não poderiam ter visto nem mesmo conscientes (conforme, por exemplo, o artigo indicado pelo Vinícius, logo acima) e a possibilidade de verificação desse mesmíssimo testemunho por modos muito simples – em “Heaven is for real”, por exemplo, Colton Burpo diz que viu o pai rezando em outro lugar durante a operação a que ele, Colton, estava sendo submetido, o que foi confirmado pelo próprio pai do garoto; assim, ou o menino realmente viu o que acontecia sem precisar dos olhos e do cérebro ou o pai dele mentiu.
Sinceramente, Vinícius e Rodrigo, um cristão buscar evidências em favor da existência e imortalidade alma em fenômenos desse tipo constitui cavar a própria cova. A mim me parece extremamente provável que esses fenômenos ou (i) serão sempre verificados como alucinações ou (ii) nunca poderão ser usados como prova em favor da existência ou imortalidade da alma. Não é sem razão que esse pessoal que publica esses livrinhos sobre NDEs sempre foi mal visto em todos os ambientes fora de suas igrejinhas. Além do mais, na suposição de não serem alucinações, esse tipo de fenômeno se encaixa muito melhor em categorias New Age e xamânicas. Por fim, são semelhantes às percepções de pessoas sob efeito de LSD, peyotl, amanita muscaria e outras ‘enteógenos’ ou drogas alucinógenas.
Péssima aposta para um católico.
Tendo a concordar com você, Julio. Mas o que você diria sobre as tais testemunhas que confirmam as percepções dos pacientes? Não seriam dignas de crédito por seus relatos terem sido publicados em livros de autores não respeitados no meio científico?
Eu diria que estão longe de provar qualquer coisa. Nos anos 90, devorei a literatura paracientífica e o tempo todo temos relatos desse tipo, especialmente sobre experiências fora do corpo. Há gente que viajou pelo globo inteiro, conheceu outros viajantes do plano astral, tudo bem documentado e cheio de testemunhos. Isso se estende a toda a literatura ocultista, fascinada por testemunhos e pelo princípio “experimente para depois crer” — até a Ecclesia Gnostica funciona com base nesse princípio. O efeito é curioso: quanto mais reverenciam o princípio da experimentação, mais reforçam a credulidade. Conversei com pessoas de todos os meios, e elas estão convictas de que a viagem astral é uma realidade palpável. É um labirinto de confirmação interminável, que recua pelo menos até Paracelso, cujos ancestrais estão em Amônio Saccas e outros gurus esotéricos da antiguidade tardia. O buraco não tem fundo. Nunca consegui prestar assentimento a esse mumbo jumbo todo. Não existe confirmação de absolutamente nada em todo esse universo, que prefere manter tudo na obscuridade a pôr à prova o seu edifício fantasma. E, como disse, essas experiências de NDE e OBE se amoldam muito melhor à categorização esotérica e New Age. Minha formação é científica e católica (mais para a linha extremamente cética de Roger Bacon do que para a turma do Antônio Conselheiro…), e tem horror à credulidade. Pode ser um preconceito. Mas prefiro ficar do lado daquilo que está ao alcance direto dos sentidos, mesmo ampliados pela técnica e pelo método da ciência, e não dou ouvidos a conversinha esotérica.
Julio, concordo com você quanto a buscar evidências sobre a imortalidade da alma por esses meios ser problemático, mas o que ficou de fora da descrição é algo mais comezinho: se as NDEs são apenas alucinações, por que deixar de fora – propositalmente, porque o Sacks nada tem de tolo – o ponto intrigante, ou seja, a atividade cognitiva que aparentemente não cessa mas se amplia durante o estado de ecstatic seizure? Note que admitir essa possibilidade não valida absolutamente nada além do que pensar em atividade consciente “fora” do cérebro – longe dos conceitos de “alma” e mesmo “mente”, se o investigador for procurar, por exemplo, outra “fonte” para a consciência que seja de natureza orgânica.
Caro Julio, Rodrigo Dubal resumiu bem o que eu quis dizer. As viagens astrais e encontros com seres sobrenaturais podem muito bem ser explicadas como alucinações. Mas a atividade cognitiva de fatos DESTE MUNDO descrita em detalhes e com prova testemunhal em seu favor tem intrigado a COMUNIDADE CIENTÍFICA e juntado plausibilíssimas evidências de que existe consciência ou atividade cognitiva independentemente do cérebro, ao contrário do que pensam autores como o do livro “A Ilusão da Alma” (Joel Pinheiro Sênior) para quem não existe pensamento, sentimento, ou qualquer estado mental sem uma correspondente atividade cerebral.
Isso não tem nada a ver com new age ou pseudo-ciência. Pelo contrário é a ciência experimental que tem demonstrado isso. Se todos estes relatos fossem bobagem o grupo de academicamente laureados pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora que citei não estariam investigando o fenômeno, como tem sido feito ao redor do mundo todo, não só em igrejinhas.
“um cristão buscar evidências em favor da existência e imortalidade alma em fenômenos desse tipo constitui cavar a própria cova.”… Se me permite a arrogância incluo um (iii): se provada ficar, cientificamente, a existência da alma estaremos a mercê de controlar a mesma. Seria questão de tempo. Daríamos um bem-vindo ao mais totalitário dos mundos. Mas fico tranquilo, esta existência nunca será provada pq Deus não a permitiria. Ora se até Deus respeita nossa consciência e nossas escolhas – liberdade, liberdade – não faria sentido que permitisse que a perdêssemos alheios a nossa vontade.
Vinícius, não é nada mal que estejam investigando o assunto. Mas não existe nenhuma conclusão, e nem sequer uma hipótese consistente. Matérias como aquela que menciona os pesquisadores de Juiz de Fora mostram a ausência de dados concretos. A notícia fascina e vende, mas não tem solidez nenhuma.
Eu participei de algumas reuniões de um grupo de estudos de neurociência e filosofia na Escola Paulista de Medicina, talvez o melhor centro de pesquisa do país, e nenhum dos médicos e cientistas vê qualquer evidência nesse tipo de pesquisa. Ainda estão muito longe de começar a tocar no assunto da consciência independente do cérebro. Eu mesmo, antes de ter contato com esses estudos, tinha certa tendência, por formação filosófica (traduzi com o Joel uma pequena parte do comentário de Aquino ao De Anima, e o assunto sempre me interessou), a aceitar essa hipótese. Os médicos dizem que não há nenhuma evidência em favor dessa hipótese, por enquanto. Por isso não se pode divulgar essas coisas sem cuidado, sob pena de estimular a credulidade. Durante muitos anos convivendo com católicos com maturidade, nunca vi ninguém mencionar essas hipóteses como esperança para novas provas de que a consciência existe independentemente do cérebro. Se isso é verdade, não creio que seja possível comprovar. Sempre será uma hipótese filosófica sem base, porque os fenômenos mentais superiores, se são 100% imateriais, não podem deixar *imediatamente* — ou seja, diretamente — rastro algum na realidade sensível. Posso estar errado, mas sair do corpo e ver o que está na sala ao lado é, por enquanto, a coisa mais absurda que se possa imaginar. E, veja, fenômenos como esse, se autênticos, são raros e não devem mudar a vida de ninguém. Gostamos do extraordinário e do curioso, mas não é uma atitude madura. Lembre-se que, se provas assim não poderiam ser usadas, a não ser como indícios, em processos judiciais, que dirá do seu uso no interior do método experimental.
E, sinceramente, não é porque alguém que consideramos uma autoridade presta assentimento a fenômenos mágicos que eles são, agora, dignos de crédito. Esse tipo de julgamento não passa de um reiterado “jumping to conclusions”. Pena que não há uma boa expressão portuguesa consagrada para esse tipo de inferência inválida.
Caro Julio,
Científica e isoladamente, você tem razão. Mas será que a realidade deve ser encarada apenas assim? Essa atitude – tomada às suas últimas consequências – não levaria a um ceticismo neurótico de duvidar até de que sua mãe é sua mãe, porque, afinal, aquelas fotos e a sua certidão de nascimento são só um indício?
Se não queremos sair pedindo exames de DNA por aí, indícios são importantes. “Milagres, em si, não provam nada”. E, por isso, não servem para nada, filosoficamente? Será tudo um desserviço? As EQM devem ser examinadas apenas sob esse ângulo científico, apodítico e isolado? Todo o resto é convera de boteco? Por que não poderiam constituir (mais) um indício de que há algo mais do que enzimas, sinapses e matéria? Para alguns assuntos – talvez os mais importantes que há -, só teremos mesmo indícios. Decidir o que fazer com eles pode ser a coisa mais importante da vida. Às vezes, “jump to conclusions” é necessário. E note que não estou advogando contra a ciência e em favor de achismos, mas do bom e velho senso-comum. E, nessa esfera, talvez as EQM sejam relevantes. Abs., Rodrigo.
Caro Rodrigo,
Mas eu só posso ter razão, no que é mensurável, científica e isoladamente. Isso não implica que eu defenda o reducionismo — mas, num ambiente cheio de credulidade fácil, é melhor parecer reducionista do que estimular a aceitação sem critério de fenômenos não mensuráveis. A realidade, por outro lado, deve ser encarada como um todo; e tudo o que não é mensurável é decidido, no campo da ação, pela prudência, que não é científica (nem anti-). Creio também que a prudência não nos manda aderir a nenhum milagre concreto. Pode-se fazê-lo pela fé, que demarca um âmbito de justificação extrafilosófico, e que portanto não pode ser validado em uma discussão que não aceite premissas religiosas; a filosofia propriamente dita trata do natural, como bem lembrou o Joel, e não faz nenhum sentido trazer, aqui, premissas sobrenaturais. Essa mistura de fundamentos é indigesta no debate público. Grande parte da discussão na Internet nos meios filosóficos do lado de cá está dominada por argumentos que se crêem justificados porque o seu defensor apelou ao ‘senso comum católico’ (na mão de pessoas imaturas, não passa de triunfalismo).
A filosofia pode esquadrinhar os resultados da neurociência, e mesmo propor hipóteses em assuntos em que a ciência não pode estabelecer premissas. Mas desconfio que, quase sempre, ela não tem muito no que se apegar depois de ter feito seu único trabalho possível, que é a análise lógica e semântica — e olhe lá! Confio mais na ética, como orientação para a vida, e no senso comum, para questões gerais de sentido, do que na filosofia.
O Guilherme certa vez mencionou Raymond Tallis como exemplo de um neurocientista que tem bons argumentos contra o reducionismo nessa área particular. Talvez valesse a pena conferir. Abração!
Mas o debate não está viciado quando partimos da premissa de que ‘a consciência é um produto cerebral’? Que evidências há disso?
Uma outra coisa que imagino é que, se há uma ‘consciência espiritual’, toda essa terminologia de ‘dentro’ e ‘fora do corpo’ para tratar do fenômeno parece só um emaranhado de analogias espaciais (materiais). Como se uma alminha feita de fumaça pudesse voar por aí. As experiências ‘sobrenaturais’ da mais parte das religiões não são desse tipo, está faltando teologia mística nessa discussão.
Sim, falta teologia umbandista nessa discussão.
“Qualquer experiência possível que um homem possa ter, é produtível por meio de uma alteração dos neurônios necessários para produzi-la.” Esta é certamente uma das afirmações mais absurdas que já li. Nenhuma estimulação cerebral pode produzir objetos de percepção. Nem mesmo objetos imateriais. Nenhum neurocirurgião pode, por meio de estimulação cerebral, levar você a entender que 2 + 2 = 4.
Mas é por isso mesmo que falei em experiência, e não em qualquer atividade mental! E por experiência, quero dizer experiência sensorial, o que inclui os cinco sentidos e outras sensações que temos (fome, sono, coceira, etc.). Diversas delas já são produzidas mediante estímulo artificial de neurônios.
Concordo com você: fazer alguém verdadeiramente entender o ilógico não é possível, pois há uma contradição nisso (embora talvez seja possível reproduzir a sensação prazerosa de se ter entendido? Afinal, às vezes nos sentimos como tendo chegado a uma verdade matemática quando, na verdade, erramos na conta.). E ao percebermos isso acho que começamos a esbarrar em alguns problemas conceituais que uma filosofia materialista/fisicalista enfrenta.
Mas acho que isso (a impossibilidade de se artificialmente produzir entendimento de coisas ilógicas) não será relevante nos casos das EQMs; afinal, o que as pessoas relatam são experiências sensoriais mesmo: viram parentes, uma grande luz, sentiram uma paz interior muito grande, etc. E por isso que digo que 1) é quase que certo que todas essas visões são detectáveis enquanto fenômenos cerebrais (não são algo que ocorre independentemente do cérebro); 2) provavelmente são naturais também; isto é, não necessitam de causa sobrenatural para serem explicadas nem quanto à sua origem, e nem quanto ao tipo de informação que dão ao paciente (embora, de fato, não haja mal nenhum em testá-lo, como tem sido feito na UFJF).
Essas minhas afirmações, se verdadeiras, depõem contra o valor das EQMs como prova de algo – seja de Deus, seja da imortalidade da alma. Mas não impugnam o valor delas como partes importante da vida das pessoas e nem como algo querido por Deus para ajudar os homens em sua jornada na fé.
Olavo, não consegui encontrar essa passagem, mas de qualquer modo se trata de uma questão em discussão (e também o que constitui um objeto da percepção em termos neurológicos, bem como se há objetos imateriais — e se, existentes, seriam cognoscíveis, já que nada chega ao intelecto sem que antes tenha passado pelos sentidos; ou chega?). Também não acredito nessa espécie de engenharia reversa da percepção, mas não me parece teoricamente impossível. Não é uma contradição. A rigor todo fenômeno físico pode ser revertido com exatidão. Uma das questões que se debate é se existe uma bijeção entre cada emoção e seu correspondente neurológico. Se o fisicalismo é verdadeiro, essa tese da produção de experiências pela alteração de neurônios também é — teoricamente — verdadeira. Que um neurocirurgião não possa fazê-lo agora é um fato. De qualquer modo, os detalhes exigem conhecimento de neurociência, em grande parte fora do nosso alcance. Assisti a discussões entre neurologistas e filósofos na EPM, sem opinar, e fiquei impressionado com o nível de sofisticação atingido. O máximo que podemos fazer por enquanto é ficar a par dos resultados da ciência.
Júlio,
Essa frase está no primeiro parágrafo do post do Joel e não no texto do Oliver Sacks.
Acho que o Olavo comentou no lugar errado.
abs
Obrigado, Rodrigo! Tem razão. Abraço.
“Experiência” e “sensação” não são sinônimos. Estimulação neuronal artificial pode produzir sensações, não experiências, que subentendem a presença de um sujeito cognoscente e não somente de um cérebro.
Oliver Sachs nem sequer compreende a questão que está discutindo. Nenhuma abordagem neurofisiológica poderá jamais confirmar, por si, se um objeto visto durante uma NDE existe ou não, seja no mundo físico, seja lá onde for. O alcance cognitivo de qualquer atividade cerebral não pode ser atestado pelo simples exame dessa atividade mesma. Filosoficamente, a abordagem que Sachs faz do assunto é de um primarismo atroz.
“Posso estar errado, mas sair do corpo e ver o que está na sala ao lado é, por enquanto, a coisa mais absurda que se possa imaginar. E, veja, fenômenos como esse, se autênticos, são raros e não devem mudar a vida de ninguém.” (Júlio Lemos)
O Júlio parece não saber que UM ÚNICO “exemplum in contrarium” é suficiente para impugnar uma generalização.
Ao contrário do que diz o Júlio, a neurofisiologia não poderá NUNCA ter a última palavra no assunto, pelo simples fato de que a realidade de um objeto de experiência não está no cérebro, mas no objeto. Se digo que o gato está dormindo em cima da mesa, nenhum exame que se faça do meu cérebro poderá, por si, confirmar se o gato estava lá ou não. Se houvesse reencarnações, o dr. Sachs precisaria talvez de umas três para chegar a compreender isso.
O nome do autor é Sacks (e não Sachs), Olavo. Talvez V. não tenha lido os livros dele, mas a minha impressão é que Sacks é um realista moderado, i. e., acredita na existência do mundo exterior, e portanto em objetos existentes independentemente da sua percepção. Isso é normalmente pressuposto por um cientista. A posição contrária, do idealismo puro (e até solipsismo), pouca gente defende, e é tipicamente filosófica. Até hoje não conheci ninguém que defendesse posições assim extremas fora das clínicas de reabilitação para sobreviventes de Woodstock.
De qualquer modo, se a pergunta é se (1) “os objetos exteriores existem independentemente da sua percepção”, creio que nós três concordamos, e estamos tudo, menos sozinhos. Mas se a pergunta é (2) “NDEs podem ser produzidas pela ‘mente'”, então a última palavra é dos neurocientistas (não neurofisiologistas, necessariamente, pois a neurociência é mais ampla). V. deveria ter percebido a distinção antes de atribuir posições amalucadas a mim e ao Sacks.
No mais, que uma ocorrência que contrarie uma lei geral baste para derrubá-la é algo que eu já disse aqui. É uma afirmação tautológica em última instância, que dispensa defesa. Meu movimento naquela passagem era ad argumentandum tantum. Um fenômeno raro, se confirmado, como a bilocação, não muda a minha vida. Mas a filosofia não pode provar a bilocação, e nem a OBE (a experiência fora do corpo). As provas que qualquer um desejaria são do tipo experimental. Não basta apelar à autoridade da sabedoria dos antigos ou a alguma teoria filosófica ou tese esotérica tresloucada, embora muita gente se contente com o que, até agora, não passa de delírio.
Agora eu peço que repare nas duas perguntas acima, (1) e (2). As afirmações correspondentes são independentes, o que significa que podem ser simultaneamente verdadeiras, falsas, possíveis as outras duas combinações, se notarmos que, no caso em que (1) é falso, (2) passa a ser necessariamente e trivialmente verdadeiro. Se eu disser que NDEs podem ser produzidas pela mente, isso não implica que a existência dos objetos dependa da sua percepção. Mas se for confirmado que os objetos dependem da percepção, então tudo será alucinação. A única distinção válida nesse estado de coisas é entre alucinações coletivas e individuais, ‘idióticas’. E então a resposta positiva a (2) seria que as NDEs são alucinações individuais, etc.
Penso que a resposta positiva a (1) é em parte confirmada, ou ao menos pressuposta, pela ciência. Só uma hipótese no estilo Matrix seria capaz de sustentar que os estímulos necessários para a produção de imagens (a luz) também constituem um fenômeno estritamente mental (!). Mas veja: hipóteses nesse estilo costumam partir da filosofia e da ficção científica, e não da ciência moderna. (Alguns atribuem a Berkeley uma posição semelhante, mas só o li de segunda mão, preferindo não opinar.) Talvez eu tenha sido breve demais, mas creio que seja o suficiente.
Um questionamento, Julio: se se provar, em um caso que seja, para além de qualquer dúvida (ou tanto quanto isso for possível cientificamente), que um homem teve experiências de coisas que se passaram longe do seu corpo em coma; isso não mudaria a sua vida? A implicação de que há tal coisa como uma alma que pode ser separada do corpo não lhe seria relevante?
Joel, minha vida não mudaria. O que isso implica? Que fenômenos que alguns chamam ‘paranormais’, ao menos um, é real. Seria curioso, sem dúvida! Mas o que mais? A pessoa estava viva e conseguiu estender os seus sentidos à (digamos) sala ao lado, ou a uma área situada em outra cidade. Passaria algumas horas maravilhado, e é só. Mas é uma resposta pessoal, e não um argumento. O ordinário da ciência, que lida com fenômenos regulares, também não mudaria. Não é uma experiência ordinária. Mas se ficasse provada, isso mudaria um pouco a nossa visão: agora é fato que o corpo pode estender seus sentidos, sem instrumentos criados para tal, à sala ao lado. Como se alguém pudesse ver o que ocorre sem usar uma câmera. Mas isso nada tem que ver com uma alma em sentido popular ou cristão; na tradição aristotélica a alma humana não passa de uma força vital multifuncional (vegetativa, sensitiva e intelectiva, ou seja, a forma do corpo) que não resiste à morte corporal.
A experiência de que falávamos era de uma pessoa viva. Se quem projetasse uma experiência fosse uma pessoa morta — i. e., que um morto se comunicasse com os vivos –, bem, teríamos uma evidência em favor do espiritismo e de várias tradições, como a do shintoísmo ‘estendido’ do velho Japão (pois há shintoístas que cultuam os mortos mesmo julgando que eles deixaram de ser completamente, de modo semelhante aos romanos antigos — embora alguns deles acreditassem em fantasmas). A contragosto eu seria obrigado a reconhecer que os mortos se comunicam com os vivos.
Além disso, uma OBE hipotética verificada prova que houve extensão dos sentidos (e não intelectiva, pois essa é uma outra implicação, que não se prova com uma OBE), e não vida após a morte. Vida durante a vida, apenas. O que isso mudaria? Bem, eu pensaria, novamente, que nossos sentidos se podem estender de algum modo ainda não explicado para ‘além das paredes’, além do alcance posicional dos olhos, sem espelhos ou câmeras. Muito bem. Isso ainda estaria no plano dos sentidos. Sabe por que? As supostas visões que se reportam são tridimensionais e possuem uma perspectiva; nada têm de borgeanas (lembra-se do conto O Aleph?). Alguma coisa precisa ter captado a luz dos objetos, e essa coisa tem uma posição no espaço-tempo, como qualquer corpo. Mais uma vez, OBEs verificadas provariam certas pretensões paranormais, mas não favorecem, de modo algum, uma visão transcendente. Seríamos obrigados a dar o braço a torcer à tradição ocultista. Quando estudei magia ceremonial — com interesse acadêmico, diga-se –, várias vezes me deparei com esse tipo de pretensão extensiva dos sentidos. Nunca vi ninguém na tradição cristã defender a bilocação, por exemplo, a não ser como milagre concedido aos santos. E não me lembro de nenhuma referência a OBEs ou mesmo a NDEs. O juízo particular ocorre apenas depois da morte. O Michael Pakaluk — você estava comigo no dia — referiu-se ao fenômeno da ‘vida inteira passada diante dos olhos’, algo inteiramente natural e já explicado por neurocientistas. Se reencontrar o artigo, que passou por peer review, te mando. É uma boa evidência em favor da consciência moral, a que qualquer naturalista ponderado prestaria assentimento de bom grado.
Curiosidade por curiosidade, eu certa vez tomei uma pancada no olho com um taco de bete e tive uma experiência semelhante, embora um tanto vingativa. Se pudesse sair do corpo naquele momento, teria dado um chute no traseiro do agressor.
“Se eu disser que NDEs podem ser produzidas pela mente, isso não implica que a existência dos objetos dependa da sua percepção. Mas se for confirmado que os objetos dependem da percepção, então tudo será alucinação.” Finalmente você chegou ao ponto. O dr. Sacks parte da premissa de que tudo é produzido pela percepção e chega à conclusão de que se trata de alucinações. A coisa é francamente imbecil. Ademais, o material que ele estuda é ridículo, colhido em igrejinhas pentecostais malucas. Por que ele não estuda as visões que resultam em profecias confirmadas e em carismas comprovados?
Júlio, não faz sentido você admitir que um só “exemplum in contrarium” basta para derrubar uma generalização, e em seguida dizer que a comprovação de um caso de visão fora do corpo “não mudaria nada” porque as ciências só lidam com fenômenos ordinários. O direito de ser ilógico tem limites, ou deveria ter.
Quanto à posição absurda que V., Olavo, atribui ao Sacks, eu deixo a defesa a ele. Não creio que ele a defenda, e nem que o artigo original a deixe entrever.
Não tem nada de ilógico aí. O que eu disse textualmente é que se, ad argumentandum, isso ficar provado, minha vida não mudaria (o que não é argumento, mas descrição de um estado subjetivo) e que a ciência lida com fenômenos regulares. São dois pontos consistentes, perfeitamente lógicos, embora só o segundo seja objetivo. Não entendi sua acusação.
(Se quer uma demonstração mais precisa, vamos lá. Eu admito, necessariamente, a tautologia segundo a qual a exceção a uma regra geral derruba esta última, justamente porque o geral indutivo não admite exceção. Essa é a premissa. Agora suponha que ocorra a exceção: uma OBE. A regra geral já não vale. Não posso mais usar a premissa. A lei agora é que, com um proviso, os sentidos podem ser estendidos para além do seu alcance anterior sem uso de instrumentos. Subjetivamente, isso não muda nada para mim (1.o ponto, irrelevante), e objetivamente a ciência terá de admitir o fato de que, normalmente, os sentidos não se estendem a não ser sob condições extraordinárias e talvez não reprodutíveis em laboratório. Esse fato objetivo não implica mudança significativa no conjunto de premissas científicas, já que a regra geral agora é apenas uma regra default, com exceções extraordinárias em circunstâncias especiais (2.o ponto, relevante). Não vejo contradição nenhuma aqui.)
No mais, todo mundo tem o direito de acreditar em fadas, profecias, carismas, em ciência, no que quiser. Só não está garantida a razoabilidade. A regra que a prudência aconselha é balancear crenças de acordo com as evidências. Alegações extraordinárias requerem provas extraordinárias. Mas se uma pessoa prefere acreditar em profecias, fadas, carismas ou hipóteses pré-científicas sem evidências extraordinárias (o que não é o seu caso, quero crer), bem, problema dela.
Acho que o debate muito melhoraria se não se fizessem comentários desabonadores a posições contrárias. “sobreviventes de Woodstock”, “solipsismo”, “fadinhas”, são argumenta ad absurdum, que não representam em nada a visão adversária.
Fora isso, parece-me evidente que tanto Sacks quanto o Julio defendem uma visão reducionista da realidade: que apenas as naturezas mensuráveis existem. O argumento pela natureza da consciência me parece um argumento filosófico e não neurológico, visto que a neurologia só pode trabalhar com uma parte da realidade. E é isso que o Olavo quis dizer: mente e cérebro não são a mesma coisa, eles podem até ser identificados como a mesma coisa em certo tipo de filosofia, mas é necessário um argumento a favor disso e não simplesmente assumir como um dado. Creio que Sacks deixa essa opinião bem clara quando ele diz que deve haver explicação natural para esse tipo de fenômeno, ora, isso não passa de uma crença metafísica e não de uma verdade metodológica como ele quer deixar parecer.
Bruno, acho que faltou conhecimento do que é um argumento ao absurdo. E repare que minha discordância com o Olavo é bem pequena, e existe justamente em questões que estão fora do tema.
No mais, não argumento a partir do reducionismo. Nunca conheci ou li quem o defendesse — nem Richard Dawkins nos seus anos áureos. Isso é outro espantalho semelhante aos sobreviventes de Woodstock. (Justamente na passagem que você não compreendeu. Não acusei ninguém de defender o solipsismo, nem de acreditar em fadas. Erre, como todos fazemos, mas erre depois de ponderar.) E repare que, no atribuir-me a posição reducionista, o velho e fácil fantasma, você cai naquilo que condenou. Sem ter reparado, aliás, que falei em prudência e consciência moral, para mencionar apenas dois exemplos de entidades totalmente não mensuráveis.
Todo o intermédio entre neurociência e filosofia da mente está bem além daquilo que quem não costuma ler a respeito imagina; não é a primeira vez que vejo essa redução à ‘crença metafísica’ desfilar. O próprio Husserl mostrou com clareza os erros do empirismo (basicamente, porque o mínimo teórico de que a ciência precisa não é empiricamente fundamentado ou, em termos mais modernos, verificável). Mas como já tratei disso, prefiro deixar como está.
Você não respondeu minha interpelação vou reformular.
Oliver Sacks diz que “To deny the possibility of any natural explanation for an NDE, as Dr. Alexander does, is more than unscientific — it is antiscientific.”
O que está em questão é que está pressuposto que sempre haverá uma explicação natural para qualquer fenômeno psíquico. E isso é uma verdade evidente? Não (o senso comum aponta até o contrário), portanto é uma crença epistemológica que demanda uma elaboração maior, na relação entre mente e corpo. E nem você, nem o Sacks falam isso. Aliás, você constantemente afirma, ou deixa a entender, o contrário; mas seus pronunciamentos sempre apontam para outro lado. Então responda sem ar blasé sem deixar implícito que seu debatedor (no caso, eu) é um ignoramus que não se deve nem dar atenção. Qual a posição que você toma na relação mente-corpo?
( No caso em questão é óbvio que o Sacks provavelmente tenha razão, as experiências em questão não me parecem lá muito boas ou críveis. Mas é um caso fácil que não pode ser generalizado. Casos como os que o Olavo aludiu são muito mais interessantes.)
Agora, vai um conselho de alguém que te considera um amigo, presta atenção na sua forma de escrever.
Em primeiro lugar, você não falou explicitamente que alguém era solipsista ou “acreditava em fadinhas”, mas a simples menção a estes absurdos, que estão completamente longe da discussão, serve para tirar o foco da questão central e levemente imputar à crença do adversário uma companhia pouco agradável. Olavo falou em profecias e carismas e você disse “não acredita em fadas, profecias e carismas”. Ora, se Olavo falou nos dois últimos parece claro que o primeiro também vai junto no mesmo genus de fatos. Não sou ingênuo, você desloca atenção do leitor para um absurdo, e isso sem se comprometer objetivamente com qualquer afirmação.
Você escreve de uma forma que apenas dá a entender e tenta desqualificar o argumentador. Acabou de fazer comigo. “Gente que não lê sobre o assunto”, se eu falasse algo você logo diria “veja que eu não falei de você”, sendo que está bem claro que você associa o que eu falei a um tipo de crueza a quem não leu sobre o assunto tanto quanto você. Bom, pode ser o caso ou não. Mas tenho a impressão que você sequer entendeu o que eu quis dizer com “crença metafísica”, isto é, uma crença sobre a constituição do mundo que está implícita no reducionismo do Sacks.
Pois bem, tenha coragem de falar o que pensa sem se esconder com pequenas alusões e com indiretas.
Agora começou o ad hominem, Bruno!
Mas vamos lá. Crença metafísica é exatamente o instrumental teórico mínimo de que eu falava, que Husserl — por uma via um pouco complicada — usou para criticar, certeiramente, o empirismo. E aqui concordamos 100%, eu, você e Husserl; mesmo que eu tenha notado e dito expressamente que esse tipo de argumento ‘ao reducionismo’ é um fantasma que não deve aparecer em quem leu sobre o assunto. Se você leu ou não, como você mesmo disse e estou de acordo, é um fato irrelevante. Mas que é uma saída fácil, é.
Agora essa do deslocamento da atenção é nova. Eu retirei justamente da posição do Olavo e da minha o que é extremo e irrelevante (o solipsismo, as fadas, etc), e agora sou acusado de chamar a atenção para elas. Isso, não posso compreender.
Fadas, profecias de todo tipo, carismas, hipóteses não provadas e até mesmo a ciência estão em diversos níveis de ‘crença’. O problema é que alguns podem ser dispensados, como as fadas, e outros requerem evidências extraordinárias, como carismas e profecias. Podem ser ou não autênticos. Eu prefiro soar severo do que conceder status de respeitabilidade a qualquer profecia ou o que seja. Já hipóteses falseáveis, na terminologia mais moderna, são dignas de discussão, ou melhor, de prova. A essas eu posso prestar assentimento imediato, desde que provadas. Qual o diâmetro do Sol? Posso verificar. A discussão não sai dos trilhos. Já quando se trata de coisas como profecias, bem, toda cautela é pouco, porque as provas exigidas têm um peso bem maior. No mínimo, a mesma cautela estraga-prazeres que os agentes chatos do Vaticano devem ter, e normalmente tiveram, ao investigar estátuas que choram sangue, profecias e curas. Nenhuma dessas alegações, nem sequer as que possuem algumas evidências em seu favor, é, como você sabe, objeto de fé; nem Fátima, por incrível que pareça, é de assentimento obrigatório. E seria perda de tempo dizer aqui o que você sabe. Só faltou colocar em perspectiva o que eu disse. Mas nunca podemos contar com uma leitura benéfica, não é verdade? Peace, brother.
E vamos agora ao seu ponto central, Bruno.
Não subscrevo o que o Sacks disse. Defendo aqui a minha posição, e deixo, como disse, ao Sacks a defesa das suas posições.
O que ele disse é que não podemos negar uma explicação natural para uma NDE. Uma explicação natural é dizer o que são essas imagens, essas experiências que ocorrem durante o coma ou em estágios próximos a ele. Não está pressuposto — o que ele diz é que não podemos negar essa possibilidade de uma explicação natural. Se é uma alegação totalmente extraordinária, vamos lá, que nos forneçam provas extraordinárias. Em que lugar metemos a velha prudência? Se não é assim que pensa o velho Sacks, ele que me desculpe, mas discordo dele frontalmente.
Creio que o natural é procurar uma explicação ordinária. Você costuma ter experiências inexplicáveis? Eu não me lembro de ter tido uma. Se tiver, primeiro esgotarei todas as possibilidades naturais. Existe um costume — muito compreensível — de querer desde já usar explicações menos simples, que apontem para o extraordinário — ao ver uma luz estranha no céu, a mentalidade crédula imediatamente pensa em alienígenas (no sentido popular), e não em balões meteorológicos. Não é um bom proceder, concorda comigo? Nós somos curiosos e abominamos o feijão com arroz. Mas infelizmente querer crer não produz o objeto desejado.
Esgotadas as investigações naturais, ainda assim não me parece prudente dizer que se trata de um fato que viola as leis da física, mas sim que a ciência precisa se atualizar, ou afinar os seus instrumentos. Nesse sentido, experimentos com OBEs, desde que alguém cauteloso esteja convencido de que não é possível explicar uma alegação com o que temos à mão, não são ilícitos. O fato é que até agora não vi nada interessante.
Veja, Julio,
A questão dessas Experiências Fora do Corpo, realmente a explicação natural é mais plausível. Mas eu não estou falando de milagres ou de nada extraordinário. Coisas simples como o vermelho de um batom ou a ideia de Triângulo podem ser explicadas de um ponto de vista reducionista? Um neurologista vai conseguir explicar o que é a sensação de vermelho ou a ideia de triângulo? Muita gente acha que não.
Bruno, sendo assim, como já tinha dito, não sei o que é o reducionismo, a não ser que se trata de um espantalho. Você o definiu como a limitação de todo conhecimento ao mensurável, estou correto? Bem, eu não conheço quem o defenda. Mas quem o faz, suponho, terá trabalho para explicar, por exemplo, o que é a prudência ou qualquer noção desse tipo. Quanto ao vermelho e ao triângulo, talvez o questionamento do Joel nesse último post “Mente redutível ao cérebro?” seja aplicável. (Não bastaria dizer que a percepção do comprimento de onda correspondente ao vermelho acompanhado da formação de uma imagem correspondente, por decodificação, é exatamente a percepção do vermelho? Não me parece uma explicação absurda.) Da minha parte, no que diz respeito aos detalhes, alego ignorância.
Julio, certa vez eu li o William Lane Craig falando dessa frase de Truzzi (popularizada pelo Sagan), que o mundo dos debates de internet conhece como ECREE (extraordinary claims require extraordinary evidence):
«…this standard would prevent you from believing in all sorts of events that we do rationally embrace. For example, you would not believe the reports on the evening news that the numbers chosen in last night’s lottery were 4, 2, 9, 7, 8, and 3, because that would be an event of extraordinary improbability. The odds against that are millions and millions to one, and therefore you should not believe it when the news reports it. Yet we obviously believe we’re rational in concluding it’s true. How is that possible?…if the evening news has a very high probability of being accurate, then it’s highly improbable that they would inaccurately report the numbers chosen in the lottery. That counterbalances any improbability in the choosing of those numbers, so you’re quite rational to believe in this highly improbable event.»
William Lane Craig, The Case for Faith, 88-89
Pode explicar isso? ‘The claim itself requires extraordinary validation’ ou há algo que não estou pegando?
Pergunto em espírito de humildade.
Nem sempre nosso WLC acerta, Felipe [Pelife].
A resposta a esse argumento dele é que, embora antes de sorteado o número seja improvável, depois de sorteado se trata de um fato necessário, de máxima probabilidade, por pertencer ao passado. Se antes de rolar um dado de 100 faces (já viu um? eu já!) eu dissesse: “O dado dará 67″, a probabilidade de eu acertar é pequena: 1/100. Mas se eu o rolar e obtiver 67, dizendo a modo de constatação: “O dado deu 67″, a minha probabilidade de ter acertado é 100/100, ou seja, 1, que em jargão probabilístico equivale a fato necessário. Qualquer pessoa que tenha testemunhado a posição do dado, com a face com o número 67 virada para cima, será obrigada a acreditar que este é o resultado. É quase a mesma situação das pessoas que assistem ao vivo ao sorteio de um número de loteria.
Trata-se de uma notícia de um fato que tem máxima probabilidade virtual de ser verdadeiro: que o número sorteado foi o número sorteado. A fonte de credibilidade é, obviamente (por isso eu falei em probabilidade virtual), a agência de notícias. Assim, se eu confio na agência de notícias, confio na informação de que o número 4-2-9-7-8-3 foi sorteado.
Se o caso fosse diferente, e. g., a agência de notícias tivesse dito que o número a ser sorteado será 4-2-9-7-8-3, bem, então se trata de um fato altamente improvável e, portanto, extraordinário. Nem eu, nem ninguém, acreditaria nele a não ser que o portador da ‘notícia’ oferecesse uma evidência extraordinária: por exemplo, farta documentação indicando que o (pseudo) algoritmo que realiza o sorteio na verdade é determinístico, e que esse número foi escolhido de antemão em virtude de um conluio entre o ganhador futuro e a lotérica; ou então apresentasse provas de que fulano possui dons paranormais e previu o número a ser sorteado; e assim por diante.
Na verdade, a frase de Truzzi popularizada por Sagan de que alegações extraordinárias exigem provas extraordinárias, se não for usada como um trunfo ou desvirtuada de modo sofístico, serve perfeitamente como espelho do senso comum. Tudo aquilo que contraria um fato conhecido e, além disso, é altamente improvável, irregular, exige evidências proporcionais. Normalmente, é assim que pensamos; não se trata de uma sacada genial.
(O falso contraexemplo de Craig toca no chamado “paradoxo da loteria”, que é bastante diferente e versa sobre números ainda não determinados ou sorteados. Esse paradoxo, sim, é significativo e interessa a quem estuda Inteligência Artificial, lógica ou filosofia. Se quiser ler a respeito, pode começar por esse artigo.)
No mais, muito bem apontado o argumento do Craig! Se tiver a oportunidade de novamente conversar com ele, pretendo colocá-lo contra a parede (risos). Abraços!