Os Dólares de Leone

Gostaria de lembrar nossos leitores que estarão em São Paulo amanhã (terça-feira, 17/04) do primeiro evento da série Contradicta de conversas e debates sobre temas da pauta da publicação impressa. No caso, o bate-papo será com o escritor e roteirista Marçal Aquino, que conversará comigo, com Ieda Marcondes e com o público presente sobre o cinema de Sergio Leone. Será às 19:30 na Livraria da Vila da Al. Lorena, 1731.

Como prelúdio da fala de amanhã, publico aqui meu artigo sobre o cineasta italiano (enquanto nossa equipe de TI quebra a cabeça para disponibilizar as edições antigas aqui no site…).

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Os Dólares de Leone

Tomemos um lugar-comum sobre Sergio Leone: diz-se que ele revolucionou o faroeste, substituindo o maniqueísmo de mocinhos e bandidos pelo niilismo moral, ou seja, pela ausência de distinção entre bons e maus. As duas partes do clichê são falsas: nem os faroestes tradicionais eram marcados pelo dualismo moral ingênuo (evidências: High Noon; The Man Who Shot Liberty Valance; The Searchers. Preciso dizer mais?), e nem os de Leone pela ausência de valores, que estão lá e são óbvios para quem assiste. Afinal, torcemos para alguns personagens e desprezamos outros. Mas na hora de diferenciá-los a mente trava. Vou indicar um caminho, uma interpretação possível, para sairmos desse beco.

 

A obra de Leone consiste basicamente em duas trilogias: a trilogia dos dólares (A Fistful of Dollars [1964]; For a Few Dollars More [1965]; e The Good, The Bad and The Ugly [1966]) e a trilogia do “Era Uma Vez” (Once Upon a Time in the West [1968]; Duck, You Sucker! – título alternativo: Once Upon a Time… The Revolution [1971]; e Once Upon a Time in America [1984]). Neste ensaio me deterei sobre a trilogia dos dólares, na qual ele constrói seu ideal, que será destruído passo a passo na trilogia seguinte. Juntas formam uma história trágica, mas contada com beleza. A parte que nos cabe é, todavia, otimista. Não tem a pretensão artística da trilogia subseqüente, mas recompensa igualmente a análise. Aviso desde já que são filmes de entretenimento, ou seja, a filosofia não lhes basta. Se você definitivamente não suporta faroestes, meu artigo não os salvará. Mas se me der uma chance creio que encontrará muito mais do que mero bang-bang. Da matéria improvável dos spaghetti westerns (faroestes dirigidos por italianos, filmados na Europa), o gênio de Leone forjou obras de valor real, superando as limitações estéticas e intelectuais bastante acentuadas do gênero.

Há algo em seus filmes que remete à opera; a grandiloqüência com que os personagens são apresentados e entram em cena (cada um com sua variação da trilha sonora), suas poses, os longos takes imóveis. Tudo isso ajuda a conferir uma aura de grandeza, e sublinhar seu caráter simbólico (embora nunca se percam no puro símbolo). Ligadas também à ópera estão as trilhas de Ennio Morricone. Estamos acostumados à música que se integra imperceptivelmente ao filme, apenas intensificando o clima das cenas. Com Morricone é diferente: a música dá o tom do filme e se intromete nele, tomando o primeiro plano, isto é, a atenção consciente do espectador. Por vezes brincalhona e alegre (as músicas-tema dos três filmes o são), sabe também ser melancólica, nostálgica ou criar ainda um ar de nobreza trágica. Os elementos novos e improváveis que Morricone trouxe ligaram-se indelevelmente ao gênero: o uso de vozes no solo ou na percussão, assobios, tiros, flautas e até a surf guitar. Mesmo sem nunca ter visto The Good, The Bad and The Ugly, a maioria das pessoas reconhece sua música-tema e a associa imediatamente ao faroeste.

O estilo do diretor é característico: tomadas longas (amplas na paisagem, fechadas nos rostos), diálogos esparsos, silêncios eloquentes, humor, música. Chama a atenção o detalhamento dos ambientes internos: balcões de saloon, produtos numa loja, objetos decorativos e quadros na parede, a rua vista de uma janela; e, claro, as refeições que nos fazem querer sentar à mesa com os personagens, cortar um naco de pão e pegar uma concha de ensopado. Tudo o que diz respeito à vida humana lhe interessa; no rosto de cada figurante, frequentemente destacados pela câmera, vislumbra-se uma história. Por trás de tudo isso estão o amor à vida humana e a alegria espontânea de se estar no mundo.

Repetindo: há um código de valores. Só não o reconhecemos de pronto porque ele é muito diferente dos valores convencionais do cinema americano, que exalta o homem comum, o pequeno, o humilde, o democrático (e portanto condena o elitista, o orgulhoso, o aristocrático). Já aqui o interesse vai justamente para o homem que se destaca da maioria, que vive por um padrão de conduta próprio e mais elevado. Uma influência filosófica facilmente notável é Nietzsche, apontada, por exemplo, por Anthony Frayling, biógrafo de Leone. Um acadêmico torceria o nariz ao ver as idéias do filósofo representadas em histórias de caubói; a mim parece que certas idéias prestam-se mais ao cinema que às dissertações.

Decerto Nietzsche não tinha o caubói como exemplo do homem superior. Temos, contudo, que quando ele vasculhou o passado em busca de uma época não contaminada pela moral dos escravos, encontrou ecos dela nos heróis cantados pelas epopéias gregas. Ora, há muito de Ulisses e Aquiles nos cavaleiros de Leone, homens superiores e indiferentes aos reles mortais com os quais se relacionam ocasionalmente. A esse respeito, cabe indicar que, se Leone partilha do desprezo por certa mediocridade e covardia do homem comum, tem também muita simpatia pelas vidas pequenas que se desenvolvem pacificamente, ao contrário de Nietzsche. Enfim, aqui não é o lugar de se discutir Nietzsche; os filmes têm uma visão própria da realidade. O nome do filósofo entra como uma influência a se ter em mente e com a qual traçar relações, e nada mais.

 

A construção do homem

Antes de tratarmos desse homem superior, vejamos o ambiente em que ele vive. Vamos ao grande deserto no qual se fundem Estados Unidos e México. Cidades e vilas são pontos na vastidão árida. Uma das assinaturas de Leone é a tomada aberta do cavaleiro sozinho na paisagem desértica. Paisagem bela, mas inóspita. Só as plantas mais rústicas sobrevivem; da mesma forma, é preciso um tipo humano especial para resistir à natureza escaldante. A dor e o cansaço são duas constantes da vida. Por isso mesmo a poeira e o suor são sempre visíveis nos corpo e nos rostos. O habitante do Velho Oeste era, como o nosso sertanejo, um forte.

Do ponto de vista social, o ambiente é marcado pela ausência do Estado, que até existe, mas pouco faz. Resume-se à figura de xerifes acovardados, que se omitem frente a pistoleiros que fazem a própria lei. A única força estatal digna do nome é o exército, em geral ocupado com manobras e guerras distantes dos personagens. Trata-se de um mundo inseguro, pouco adequado, portanto, a mulheres e crianças, que quando aparecem são como alvos de violência. Já para o homem superior de quem trataremos, acostumado, indiferente, à dor e à morte, é o lar perfeito.

As regras sociais e os preceitos morais significam pouco para ele; menos ainda a lei positiva. Seu respeito é dado apenas seus iguais. A um pistoleiro valentão qualquer (ou meia dúzia deles) ele abate casualmente ao primeiro sinal de agressividade e ainda arremata com uma tirada espirituosa. Já um rival à altura exige certos padrões estabelecidos de honradez no enfrentamento. Falo do ritual mais característico da nobreza enquanto tal: o duelo, que é, assim como o cavalo, uma ligação direta entre a aristocracia européia e sua equivalente no Oeste Americano. Em ambos os casos sua origem está na violência: na proeza militar no caso da Europa e, no Velho Oeste mais individualista, na capacidade de matar e não ser morto. A grande diferença é que no Oeste o aristocrata pode vir de qualquer camada social, pois é definido não por sua árvore genealógica mas pelo quilate de seu espírito. A proximidade do México cumpre um papel. A cultura do imigrante americano anglo-saxão é oposta à idéia de nobreza; é a ética do trabalho, da honestidade e da igualdade de direitos. As formas da nobreza são buscadas, portanto, no México, que, a despeito da miséria, preserva traços da galhardia aristocrática espanhola, presentes especialmente nas poses e nas músicas, com claras influências ibéricas, remetendo, por exemplo, à tourada, que, como o duelo, é uma forma codificada de manifestação da valentia, da nobreza de espírito e do domínio de si. (Paralelamente, o México representa também os apetites carnais, tipicamente plebeus, em toda sua pujança.)

O que justifica um duelo nesse universo? Duas coisas: um bem valioso que ambos queiram e só um possa ter, ou contas a acertar. Para mim, e imagino que para qualquer espectador, surge a questão da moralidade dos duelos e da vingança de modo geral. Tal questão é alheia aos filmes, que a tomam como natural, perseguida com total convicção pelo homem superior e vista com um misto de medo e admiração pelo homem comum; o que não significa que precisemos parar por aí. Devo dizer, contudo, que pensando num mundo em que não haja autoridade legal, é necessário que a justiça seja feita de alguma maneira, e é natural que ela recaia nas mãos dos mais capazes de colocá-la em prática. A comunidade em nenhum momento questiona a autoridade moral do cavaleiro de levar a cabo sua justiça. Além disso, o próprio Estado compactua com essa situação, por meio daquilo que é, na prática, a terceirização da violência que deveria supostamente ser monopólio seu: a recompensa pelo criminoso “vivo ou morto”.

Temos então que o homem superior, para com seu semelhante, pauta-se por um código aristocrático. E para com os inferiores, até onde chega sua indiferença? Até o desprezo? A chave para se entender os valores de Leone talvez esteja aqui. Diferentes tipos de aristocrata aparecem ao longo dos filmes para que possamos compará-los nesse e em outros quesitos. Chega, portanto, de generalidades; vamos aos indivíduos.

 

A Fistful of Dollars

O primeiro filme nos introduz ao Homem Sem Nome (nome promocional dado pelas distribuidoras americanas, mas muito apto), interpretado por Clint Eastwood na série toda, e o ideal encarnado da criação de Leone. Sabemos tão pouco de sua vida pessoal e sua subjetividade, contudo, que não dá sequer para afirmar se se trata do mesmo indivíduo que participa das três histórias ou de personagens distintos, ainda que similares; há evidências em ambas as direções. Não importa.

Embora não tenha nome, tem apelidos. Neste filme é simplesmente Joe. O conhecemos como um cavaleiro solitário que chega a uma pequena vila. Assim como para os habitantes do lugar, ele sempre será, para nós, um forasteiro. Duas poderosas famílias, os Baxter e os Rojo, digladiam-se pela supremacia local, tornando a vida na cidadezinha um inferno. Poucos se aventuram fora de casa; o comércio resume-se a um saloon vazio e ao fazedor de caixões, que vai bem. Para Joe, é uma oportunidade. Trabalhando em segredo para as duas famílias, enriquece a si mesmo e enfraquece a ambas. A missão altamente arriscada é para ele quase um passatempo. Ele é mais inteligente, mais habilidoso e mais corajoso que seus adversários. Apenas um dos irmãos Rojo, Ramon, oferece-lhe perigo, e é o único esperto o bastante para descobrir sua duplicidade.

Mencionara Nietzsche. Agora arrisco que o modelo mais adequado para o Homem Sem Nome seja o indivíduo magnânimo de Aristóteles, o homem de grandes feitos e grande honra. Desprovido de vergonha pois não tem do que se envergonhar; independente, fala pouco de si e dos outros. Está mais disposto a ajudar (quem mereça; por exemplo, um injustiçado indefeso) do que a ser ajudado. Sua superioridade com relação ao que o cerca explica seu traço mais distintivo: o distanciamento irônico. Tudo lhe é objeto de ironia. Sentimos que nada o afeta profundamente, e que ele não leva ninguém muito a sério, para o bem ou para o mal. Não que seja intocável; pelo contrário, quando seus planos são descobertos pelos Rojo, apanha como um cão. Mas é de certa forma invencível: com o rosto ainda inchado da surra, é capaz de tramar sua fuga e levar a melhor.

Todos os seus vínculos são tênues; e têm de ser, pois ele é um nômade. Embora possamos acusá-lo de egoísta (seu fim é, sem sombra de dúvida, ele próprio), notemos que ele respeita o direito alheio. Há um núcleo da dignidade humana que nunca viola; não mata, não estupra e não rouba nenhum inocente, embora não veja problemas em enganá-los. Sua atitude para com as pessoas honestas é de benevolência, chegando a se arriscar para ajudá-las. Como maior mostra de sua compaixão, Joe salva uma jovem que era mantida em cativeiro por Ramon. Dá a ela todo o dinheiro que tinha acumulado para que, junto com marido e filho, fuja antes que voltem os algozes. “Conheci alguém como você, e não havia ninguém para ajudar”. Uma – e a única – indicação de sua origem, e que estabelece o vínculo comum entre aristocrata e plebeu.

Há um enigma no cerne do Homem Sem Nome. Sua finalidade ostensiva, e isso vale para os três filmes, é o dinheiro. Mas nada indica que ele tenha em alta conta os bens que o dinheiro pode comprar. Certamente precisa cuidar de seu cavalo, de suas roupas, de suas armas e se hospedar em hotéis a cada nova cidade. Fora isso, não o vemos fazendo nada muito dispendioso, e ele não parece ser do tipo que acumula por acumular (haja visto seu ato de caridade narrado acima). E se não é do dinheiro, então do que ele está atrás? Dado que nada lhe falta, concluo que seu maior valor é justamente preservar seu modo de vida auto-suficiente; cruzando de vila em vila, engajando-se em aventuras, ganhando dinheiro, matando criminosos, aumentando sua honra e reputação e, de quebra, fazendo justiça. Sua atitude básica é a de quem joga um jogo favorito: alegre e despreocupada, mas dedicada; ou, melhor dizendo, a de um artista cuja obra-prima é sua própria vida. Se o mundo externo não domina sua atenção, é porque vive para bens interiores que nem podemos conceber.

Há três tipos de homem superior na obra de Leone. Farei uma correspondência – temerária, não nego – entre eles e as três partes da alma de uma divisão mais ou menos clássica da filosofia: razão, vontade e apetites. Tal associação é exclusivamente minha, mas cai como uma luva nos personagens e ajudará a entendê-los e a extrair significados simbólicos dos filmes. Ainda que Leone nunca tenha estudado o assunto, considero a divisão razoável o bastante para que seja intuída independentemente da tradição filosófica que a consagrou. Por essa classificação, o Homem Sem Nome é o homem da razão, pois sua atitude fria e irônica é a atitude do intelecto que contempla a realidade. Ele está sempre engajado, é verdade, mas em nenhum momento mergulha de corpo e alma nas aventuras das quais participa. Sentimos que pode desistir facilmente de seu objetivo – que lhe custou esforço e sangue – se algo mais vantajoso aparecer; é sempre prudente e ponderado. Além disso, é justo, dá a cada um o que merece e respeita a ordem das coisas, outro atributo da razão.

Enquanto o homem da razão está por cima, o arranjo social que permite homens superiores continua a existir, e o homem comum tem quem o proteja das injustiças. Enquanto a razão governa o indivíduo, ele se encontra em equilíbrio e feliz. Mas para garantir sua existência ele enfrentará inimigos igualmente formidáveis. Ramon Rojo era uma ameaça, mas ainda claramente inferior a Joe. O segundo filme nos apresentará um vilão mais perigoso, uma espécie de Ramon Rojo potencializado, mais depravado e menos preso a convenções como lealdade, família e vida em sociedade. Será o primeiro contraponto sério à razão: os apetites.

 

For a Few Dollars More

O Homem sem Nome, aqui apelidado Manco, reaparece como um caçador de recompensas. Acima mencionei a ausência de lei no Velho Oeste, e como o Estado contorna o problema oferecendo recompensas pela captura de criminosos “vivos ou mortos”. A recompensa generosa é tudo o que o aristocrata precisa para se engajar na luta contra o crime, unindo o justo ao útil. Manco vive de caçar bandidos e coletar recompensas, o que para ele é trabalho fácil, até que aparece El Índio, perto do qual Ramon Rojo seria cidadão de bem.

El Indio é o bandido mais perturbador da trilogia. Sua gargalhada maníaca é uma indicação de seu caráter: um homem de excessos incontroláveis e obscenos. Paga-se caro por tais excessos. Um ato em particular tortura sua consciência: a violação de uma jovem recém-casada. O estupro é ocorrência comum na vida do bandido, mas esse foi especial: tanto pela pureza da vítima quanto, principalmente, pela reação dela: com o marido morto no chão e o bandido em cima de si, a jovem alcançou uma arma próxima e se matou. A reação normal a um estupro seria matar o estuprador; mas ela ficou tão horrorizada com a monstruosidade que a violava que preferiu morrer a viver com aquela profanação. Esse suicídio é para Indio uma memória desesperadora, um espelho que lhe revelou o grau de sua própria degeneração.

O único refúgio do bandido é se entorpecer de maconha enquanto chafurda cada vez mais fundo na lama de novos crimes. Guarda um memento da jovem: um pequeno relógio musical que roubou dela e que dá o sinal de seus duelos (seu último resquício de honra é dar a algumas vítimas a chance de enfrentá-lo). Como Manco, é um homem superior, imbatível, mas sua superioridade dirige-se à satisfação maligna dos desejos mais baixos, chegando ao extremo da bestialidade em suas duas facetas: a indulgência do corpo e a sede de destruição.

Se Manco é o homem da razão, El Indio é o homem dos apetites. Isso não quer dizer que seja burro; sua inteligência afigura-se como oportunismo e falta de escrúpulos, que o tornam imprevisível. Ele também está atrás de dinheiro, só que, diferentemente de Manco, que persegue o dinheiro fazendo a justiça e o usa moderadamente, Indio e sua gangue roubam bancos, e sabe-se lá como pretendem gastá-lo. No fundo, podemos dizer que ele busca a violação enquanto tal. Quando se trata de dinheiro, rouba o banco mais protegido; seu maior crime é a violação de uma mulher pura; e o bando vive numa igreja abandonada, uma forma da violação espiritual que é transformar o lugar santo em covil de ladrões. A satisfação desenfreada dos apetites exige a derrubada de todas as barreiras e perde progressivamente seu sabor, até que resta apenas o prazer amargo de se ir cada vez mais longe num caminho já sem volta.

O filme apresenta também um contraponto benigno a Manco: o coronel Mortimer. Ex-oficial militar, Mortimer agora é caçador de recompensas. Mais velho, não tem a mesma agilidade no gatilho, mas sua mira é mais precisa e seu alcance mais longo. Depois de uma breve introdução os dois se encontram na mesma cidade atrás de Indio. Inicialmente se estranham e medem-se num conflito de egos; a independência do homem superior é um ponto de honra, e todas as associações são instáveis. Mas o bom senso acaba falando mais alto e eles se unem para derrotar a gangue do temível bandido.

Acontece que, enquanto Manco realmente procura o dinheiro (embora, como argumentei acima, o faça mais com sentido simbólico do que por desejar o que o dinheiro compra), Mortimer quer acima de tudo matar Indio. Se o primeiro está sempre distanciado de seus objetivos, o segundo é determinado até o talo da alma. Cabe a ele, portanto, o elemento que faltava à razão e aos apetites: a vontade, ou seja, o propósito fixo e inabalável. Sua roupa preta representa, assim como a batina de um padre, a morte para o mundo; nada mais importa, só alcançar a meta. Ao contrário de Manco, que está sempre feliz, Mortimer é mais soturno; a meta o consome. Seus motivos inicialmente misteriosos revelam-se ao longo do filme, e não serei eu a estragar a descoberta.

Tampouco vou delinear as complicações do enredo, que é muito bem-amarrado. Basta dizer que os dois se unem e infiltram a gangue. Só que Indio descobre o plano e integra-o a um plano próprio para passar a perna em seus comparsas e ficar com o ouro roubado todo para si. Apesar da astúcia do vilão, os dois conseguem manobrar a situação a seu favor, matando os bandidos um a um, até que o facínora e o ex-oficial se enfrentam num duelo que resolve todas as pendências. Mortimer tem sua vingança, dá sua única risada e vai embora satisfeito. Numa terra sem lei, é o mais próximo da justiça que se pode chegar. Claro que ela é imperfeita; mas como o próprio Leone mostrará na trilogia futura, o preço, em vidas e sofrimento, que se paga por uma sociedade de leis é considerável, e o caráter moral dos governantes legítimos em nada deve aos piores criminosos. Manco fica com o dinheiro do banco (não sabemos se o devolve) e leva na carroça os corpos que lhe valerão uma generosa recompensa.

 

The Good, The Bad and The Ugly

Chegamos ao cume da trilogia. Se os dois filmes anteriores são boas histórias e belos mostruários do que Leone visava construir (especialmente o segundo; o primeiro, embora um produto digno, sofre um pouco com a restrição orçamentária), The Good, The Bad and The Ugly é uma verdadeira epopéia; temos uma extensa introdução antes de o enredo se revelar, e ele consiste numa longa jornada rumo a um tesouro perdido, passando por diversas situações e perigos até chegar ao ápice da busca que une os três protagonistas. E é também o filme em que o super-homem, o aristocrata do deserto, conquista a glória que lhe é devida, além de ter como pano de fundo um evento decisivo da história americana.

O Homem Sem Nome é Blondie, e temos o retorno dos outros dois tipos construídos no filme anterior, só que com valor moral invertido. No lugar do bom Coronel Mortimer temos Angel Eyes (ambos interpretados pelo excelente Lee Van Cleef). Enquanto Mortimer tinha seu foco numa causa justa, Angel Eyes (chamado Sentenza na versão italiana, o que ressalta melhor seu caráter) é todo propósito sem objeto: um matador de aluguel (que é a corrupção do caçador de recompensas; este mata criminosos por dinheiro, aquele mata qualquer um) que “sempre faz seu trabalho até o fim”. Sua primeira vítima, ainda nas cenas introdutórias, oferece-lhe dinheiro para que mate o mandante do crime, e lá vai ele assassinar quem um dia antes era seu patrão. O que ele realmente procura permanece um mistério. Já El Indio, o maníaco depravado, é substituído por Tuco Ramirez, certamente o personagem mais humano de Leone, interpretado magistralmente por Eli Wallach (que hoje, aos 95 anos, continua na ativa). A opção original de Leone, todavia, era que fosse interpretado pelo mesmo Gian Maria Volonté de Ramon Rojo e El Indio, corroborando minha tese da continuidade entre os três. E é Tuco, o novo homem dos apetites, quem rouba a cena.

Tuco é um bandido. Rouba, mata e estupra (sabemos disso porque um juiz lê a longa lista de seus delitos). Não seria fora de propósito imaginá-lo roubando um banco e chefiando uma gangue assim como El Indio. Não vê problema no sofrimento alheio que decorre da sua busca em satisfazer os apetites, mas, ao contrário de seu antecessor, nunca dá o passo final de querer a transgressão por ela mesma. Assim, embora criminoso, Tuco é um espírito generoso e passional. Nada tem do status mítico do Homem Sem Nome, embora não fique atrás dele em valentia e habilidade, mas inspira a identificação do espectador.

Como pode alguém possuído de vícios ser, ao mesmo tempo, personagem cativante? Não é um fenômeno único. Outros exemplos são o Falstaff de Shakespeare ou mesmo Homer Simpson. Estão todos na categoria do ogro bem-apessoado. O que torna Tuco simpático é uma certa inocência no modo de ser, uma franqueza quase infantil. As mudanças de humor, o afobamento, o modo como se atira sem pensar duas vezes; é essa falta de auto-consciência (mesmo sua dissimulação tem um espírito pueril), aliada a um bem-humorado amor à vida, que o distingue de Indio, alguém cuja profunda depravação produzira uma consciência desesperada. Num momento quer matar Blondie; em outro o tem como seu único amigo, e tanto sua raiva quanto sua ternura são sinceras. É um fato também que seus piores crimes estão no passado; na tela, o pior que faz é roubar, matar em combate e fugir da lei. Podemos dizer que viva num estado anterior à formação da consciência, uma inocência original que dá a tudo o que faz uma aura, não de santidade, mas de fanfarronada.

Blondie e Tuco montam uma parceria mutuamente benéfica (o único termo em que poderiam se relacionar): Tuco vale dinheiro, então Blondie o leva ao xerife e coleta a recompensa. Quando seu comparsa está literalmente com a corda no pescoço, um tiro certeiro de Blondie o liberta e ele foge a galope. Ninguém é morto no processo. Os dois repartem o dinheiro e fazem o mesmo em outras cidades. Ocorre que um dia Blondie erra o primeiro tiro. Tuco fica pendurado e uma segunda bala é necessária; escapa por pouco. Depois do sufoco, Tuco exige uma parcela maior dos ganhos, pois o risco é dele. “Uma parcela menor poderia interferir na minha pontaria”, retruca Blondie, cujo orgulho foi ferido pela amostra de falibilidade. É o fim da parceria. Tuco é abandonado no deserto e passa maus bocados. Alguns dias depois reencontra Blondie e o subjuga; usufruindo cada minuto da vingança, faz o ex-colega andar pelo deserto escaldante até, prevemos, sua morte, não fosse por uma carroça desgovernada que passa por eles, na qual encontram um soldado moribundo com informações sobre um tesouro escondido das tropas confederadas. É, esqueci de mencionar: estamos no meio da Guerra de Secessão. A guerra é, para nossos protagonistas, uma condição externa similar ao clima. Não lhes diz respeito, mas volta e meia interfere em seus planos. Tiros inesperados de canhão podem salvar um personagem da morte certa. O exército segue sua lógica própria, e eles têm que utilizar essa circunstância a seu favor.

O soldado revela que o ouro fora enterrado num cemitério distante. Por circunstâncias fortuitas, Tuco fica sabendo a localização do cemitério e Blondie, que está à beira da morte, o nome da cova. Morto o soldado, a única chance que Tuco tem de achar o ouro é salvando Blondie, e para isso leva-o à Missão de S. Francisco. Em meio à guerra que devasta o país, aquele oásis de amor e devoção acolhe indiscriminadamente a unionistas, confederados e solitários como Blondie. Leone nos deixa ver a única alternativa a seu código aristocrático. Os protagonistas são experts em matar; os frades e as freiras, em salvar vidas e almas. Tuco reencontra seu irmão Pablo, superior do convento, e fica sabendo da morte do pai, que desejara, em vão, vê-lo uma última vez. Percebe o efeito destrutivo de seus atos, mas não tem como se arrepender. A vida dera-lhe duas opções, a bandidagem ou a religião. O sacerdócio do irmão era o caminho mais fácil. Partem brigados, mas um laço de amor ainda os une. Vão Blondie e Tuco embora juntos, um curado e o outro com as cicatrizes da alma reabertas, e por isso mais disposto a se abrir; a parceria relutante aos poucos dá lugar à amizade.

Pouco depois vão parar, por acidente, no oposto do convento: um campo de prisioneiros unionista. No universo de Leone, o Estado é, de todos os monstros, o mais perigoso, e também o mais frio e impessoal. Vemos no rosto dos prisioneiros cansados que entoam uma triste canção, fazendeiros simples que claramente não pertenciam àquele mundo, a falta de sentido do sofrimento imposto a eles por sabe-se lá quem. A violência, que deveria ser de poucos, o Estado a leva a todos. Quem se beneficia da guerra são justamente os piores, como Angel Eyes, que reaparece como chefe do campo (traçou o caminho inverso do coronel Mortimer: um foi de oficial do exército a caçador de recompensas; o outro de matador de aluguel a militar). Não pensemos que ele tenha amor à causa unionista; a justiça não figura em suas considerações. O exército é uma escada e nada mais. Para onde? Ganhar dinheiro, talvez? Ele também está atrás do ouro confederado, e portanto esse é um de seus fins. Não parece ser, contudo, do tipo que se satisfaria com a vida pródiga que Tuco almeja. Pelo contrário: é intrinsecamente incapaz da alegria de viver que é pré-requisito dos apetites carnais, e que também se manifesta na serenidade de Blondie.

É interessante notar a relação simétrica que Blondie e Angel Eyes têm com as demais pessoas, e o que isso revela sobre eles. Blondie é benevolente e compassivo para com o homem comum, mas independe dele espiritualmente. Já Angel Eyes o despreza, ou até odeia; mata crianças, bate em mulheres e tortura indefesos. Só que sua alma depende doentiamente do homem comum, pois seu objetivo maior, o fim que explica todas as suas ações, é o poder. Blondie vive afastado da sociedade; nunca se tornaria, por exemplo, capitão de exército. Ao mesmo tempo, é ele quem a protege. Angel Eyes é o homem cujo bem depende de que o outro se dobre à sua vontade, e por isso vive embrenhado na sociedade (vemo-lo ainda, no início do filme, entrando numa carruagem com algumas madames); logo, quem se dobra é ele. Por isso seu prazer em fazer sofrer os outros sofrer: é a punição que desfere a seus inferiores pelo rebaixamento ao qual lhe submetem. Blondie estaria disposto a morrer pelo outro, mas vive para si. Angel Eyes vive para o outro, e por isso mesmo quer matá-lo.

O poder é a marca do mal no mundo de Leone, que pertencia, como tantos artistas, a uma esquerda romântica, de espírito anárquico, revoltada contra o capitalismo e decepcionada com o totalitarismo socialista. Não se trata de dizer que o poder corrompe, e sim de que, se alguém busca o poder, ou se chegou ao poder, então essa pessoa já é corrompida, pois é impossível que alguém genuinamente bom, feliz e amante da vida pudesse desejá-lo. Com efeito, o exercício do poder sobre as outras pessoas une os três vilões da série. Ramon Rojo era já um homem poderoso que governava cruelmente sua cidade. El Indio buscava sua satisfação em violar a dignidade alheia, dinamitar a caixa forte para extrair dela seu ouro. Angel Eyes, por sua vez, é um camaleão, que pode parecer tudo para todos, e cujo único princípio é subir na hierarquia do mundo em que vive; passar de capataz a senhor. A vontade que ele representa não é a busca implacável da justiça (que é a vontade guiada pela razão), mas a nua e crua vontade de poder.

Depois de muitas peripécias, Tuco chega ao cemitério. Esse momento é sua apoteose; o menino de origem humilde corre desnorteado, deslumbrado, pelas covas, antevendo o ouro que lhe espera. A trilha de Morricone, convenientemente chamada L’estasi dell’Oro, confere um sentido triunfal, quase sagrado, à cena. Uma voz feminina, angelical, é acompanhada pela orquestra que toca no ritmo do galope de um cavalo, animal cujos passos dão o tempo de toda música faroeste. O êxtase, entretanto, é precipitado; Blondie, que chega logo em seguida, o enganara quanto ao nome da cova. Angel Eyes também aparece. Os três se encontram no círculo central do cemitério, no qual Blondie coloca um tijolo com o nome da cova. Estão lançados os dados da disputa final; o duelo triplo decidirá de uma vez por todas quem é o maior: a razão (o bom), a vontade de poder (o mau), ou os apetites (o feio).

Os três indivíduos superiores estão ali por inteiro, sem nada que os faça recuar ou duvidar de si. Blondie é o homem virtuoso, que, como Aristóteles apontara, não tem do que se envergonhar. Tuco existe num estado psicologicamente anterior à consciência (um estado imaginário, claro, possível apenas na ficção; vislumbrado, nunca vivido, na prática – Leone tratará disso em sua segunda trilogia). E Angel Eyes vive além dela; crime, justiça, vício, virtude, nada importa. A determinação pura dá a sua maldade um atributo quase espiritual; demoníaco, portanto (e diferente da maldade bestial, dissipada, de El Indio). Novamente, a trilha sonora faz jus ao duelo de titãs que está prestes a ocorrer.

A tensão se eleva até que a música para, e em um segundo tudo está resolvido. Blondie acerta Angel Eyes e a arma de Tuco não dispara; Blondie a esvaziara na noite anterior. Pega parte do dinheiro para si e dá a outra a Tuco, não sem antes pendurá-lo com uma forca ao galho de uma árvore, deixando-o mal apoiado sobre uma lápide. A uma distância inacreditável, liberta o amigo enraivecido com um tiro certeiro (redimindo-se do erro do início da trama). A vontade de poder foi destruída; os apetites recebem seu quinhão, mas têm a forca no pescoço para lembrarem quem manda. A razão, Blondie, reina triunfante. Esse é seu mundo; nem a destruição da guerra e nem inimigos formidáveis podem derrotá-lo; ali, no deserto, ele é um deus.

E assim termina a trilogia. Se há uma coisa que ela não é, é niilista. Apenas não se pauta pelos valores democráticos do homem comum, e sim pelos daquele a quem o homem comum, se íntegro, tem gosto em ver brilhar, por mostrar o que é possível ao gênero humano. A raiz não se ressente da beleza da flor. Só que a flor um dia murcha. Caberá à trilogia seguinte, a do “Era Uma Vez”, mostrar a decadência dos heróis e, por fim, o caráter ilusório que sempre tiveram. Os apetites e a vontade terão sua revanche, e criarão o mundo contemporâneo no processo. Por fim, o homem da vontade de poder descobrirá, quando chegar ao topo – e chegará – que para ele não há salvação e nem paz. Até lá, no entanto, o mundo pertence a Blondie, que, com seu sorriso irônico, cavalga deserto afora.

6 comentários em “Os Dólares de Leone

  1. “…Se há uma coisa que ela não é, é niilista.”

    Perfeito. Segundo Bruno Andrade:

    “Mas onde podemos realmente encontrar o legado de Leone? Tão-somente e apenas nos grandes cineastas morais da segunda metade do século XX: Clint Eastwood, Brian De Palma, John Woo…”
    http://www.contracampo.com.br/64/leonegeral.htm

    Seria bacana se também dedicasse um texto a monumental trilogia da América, hein. haha, abraços.

  2. Depois de ler tudo isso fiquei com uma vontade danada de assistir a trilogia dos dólares de novo. O fim de semana vai ser pequeno.

  3. Mais um a agradecer a temeridade do ensaio.

    Rumo às trilogias. Descobrir Sergio Leone, redescobrir a Itália?

    Engraçado e talvez não casual que um estado-nação tardio à beça, escolado na teatralidade (inclusive no ridículo e no sinistro) do poder e de suas configurações, afirme insistentemente e de tantos jeitos no cinema da segunda metade do século xx qualidades tão humanas e (vá lá) tão arcaicas:

    http://it.wikipedia.org/wiki/Arch%C3%A9

    Se houver transcrição ou registro do debate, não serei o único interessado.

  4. Associando idéias: no seu “Espelho de Próspero”, discutível mas ainda tão sugestivo para pensar Brasil e Ocidente, Richard Morse lembra desse jeito pré-moderno e sertanejo dos ibéricos.

    No umbral das revoluções religiosa e científica a partir do século XIII – diz o Morse – eles, ibéricos, distanciam-se cautelosamente dessa corrente epistêmica hoje em dia no desaguadouro: “´ciência´cada vez mais compartimentada e ´filosofia´cada vez mais desencarnada´”.

    E essa distância não seria entrincheiramento ou reacionarismo; é a circuitos neo-escolásticos do séc. XVI que remontam, por exemplo, as bases da jurisprudência internacional e de outras construções racionais profundamente humanísticas.

    A perspectiva é que é distinta: “o mundo ibérico reformulou e manteve alternativas do período formativo da civilização ocidental que têm um interesse cada vez maior para os grandes dilemas de nossos dias”, sugere Morse. Relevância “vis-à-vis” o pacote moderno, digamos assim, de modo algum descartável mas insuficiente.

  5. Gostaria de agradecer ao Joel Pinheiro e ao DC por essa matéria. Vocês não tem ideia do quanto me fizeram de bem: há mais de 10 anos venho procurado por esse filme sem sucesso por conta da única lembrança que tinha do mesmo: “o momento em que a corda era atingida pelo tiro do caçador de recompensas”. Assisti esse filme quando era pequeno e depois de adulto resolvi procurá-lo, mas ninguém sabia me informar o nome do filme e eu já estava perdendo as esperanças de encontrá-lo até lê essa matéria. Fui vê a sinopse dele em outro site e realmente não comenta sobre o trecho que lembrava, ou seja, pela sinopse oficial eu nunca iria encontrá-lo. Muito obrigado a todos e que Deus os abençoe!!! Abraços!!

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