A quem servem as comendas? Não é incomum, servirem exclusivamente ao próprio prêmio – a ele é somado o prestígio dos homenageados. Mas o normal, é claro, são os casos em que as comendas servem aos comendados. Certamente não foi o caso de Bob Dylan que recebeu esta semana a Medalha da Liberdade – até onde podemos investigar, a maior honraria oficial civil dos EUA. Ela deixou inalterada sua carreira ou prestigio.
Antes de tudo: há casos em que os prêmios servem – desculpem o neologismo – aos “premiantes”. Dylan posando na foto ao lado de Obama, um presidente em pleno aquecimento à campanha de reeleição, é evidentemente bom para Obama – mais que para Dylan. Mesmo estando ao lado de uma turma eclética (que contava com Shimon Peres, Madeleine Albright, Toni Morrison John Glenn, entre outros), a estrela da cerimônia foi evidentemente o bardo, figura rara em aparições desta natureza e cujas fotos, por isso mesmo, não deixam de ser itens de colecionador. O registro da entrega da medalha ganhou o mundo, os fãs de Dylan – aqueles mais à esquerda – amaram a oportunidade de vê-lo ao lado (mais precisamente, à frente) do “primeiro presidente negro da américa”. Quanto a seus fãs, aqueles mais à direita… bem, a estes resta a analise modesta de seu óculos escuros. Pois Dylan, ao que consta, ficou calado durante toda a cerimônia e muito embora seus cabelos desgrenhados e bigodes ralos sejam marca registrada, a impassibilidade e os óculos escuros nos permitem uma boa diversão semiótica. Afinal, sendo um artista pleno de recursos simbolistas, sua obra encontra força exatamente na sua abertura interpretativa; então, devemos interpretar este “texto”, a foto!
Interessou-me que nenhuma publicação tenha atentado ao fato, mas de lado as excentricidades, por que cargas d’água estaria Dylan de óculos escuros em uma cerimônia oficial – mau-humor, cansaço, tédio? Tratando que estamos de aparições públicas de figura rara, ao lado de um presidente absolutamente controverso, é evidente que os óculos de Dylan deveriam ser elemento de interpretação. Pois tirando a possibilidade de conjuntivite, a escuridão dos óculos de Dylan denotam metaforicamente algo. Arrisco três teses.
A cegueira é talvez o elemento mais extraordinário. Dylan é um artista cuja poética, deliciosamente obscura, são pontos de interpretação permanente. Qualquer olhadela sobre a recepção de “All along the Watchtower“, “Blowin’ in the Wind” ou “The times they are a-changin’” mostra que Dylan é, desde o início da carreira, tido como oracular. Mas se a propriedade do oráculo é dizer coisas a serem decifradas, que fazemos se, de repente, lidamos com um oráculo cego? A cegueira metafórica de Dylan não deixaria de ser uma corrupção da dita visão profética. Tese número um: Dylan coloca óculos escuros pois se reconhece, naquele contexto, como cego, alguém que está ali para (ou, por?) não ver a realidade. Talvez intuí-la, mas aí é tema para o leitor desdobrar em seus próprios artigos.
Talvez não, talvez seja apenas cansaço. Se o cansaço é real ou não, não importa – estamos no terreno da análise semiótica, então vale o que o texto diz, não o que pretende dizer. Não nos importa se Dylan teve uma noite mal dormida, a cerimônia era cedo para seu relógio biológico – ou muito tarde, sei lá. O que importa é que os óculos escuros nos permitem imaginar olheiras, fadiga física mesmo. E aqui, o cansaço físico deve ser colocado analogamente a outro, que chamarei de “cansaço espiritual”, suplicando que me perdoem a tolice da expressão. Mas quero dizer daquele cansaço cético que temos em uma festa estranha com gente esquisita. Algo que expressamos intimamente “meu Deus, que estou fazendo aqui entre estes canalhas recebendo Medalhas de Honra ao mérito; eles não entendem nada… eu não entendo nada”. Tese dois: Dylan coloca óculos escuros pois se percebe, naquele contexto, cansado; cansado da falta de sentido de cerimônias como essa – para não ofender os presentes com suas olheiras, ou seja, para não ofender-lhes com seu niilismo ou constrangimento.
Pode ser outra coisa, outra face da primeira mas com sinal trocado. Óculos escuros são instrumento de trabalho de seguranças particulares. E isso por dois motivos: evita que saibamos onde estão olhando mas, sobretudo, que saibamos o que estão pensando. Talvez Dylan não estivesse fechado em si mesmo por cansaço ou constrangimento niilista mas por não querer explicitar seus pensamentos mais inquisitoriais – combativos, prescrutadores. Tese número 3: os óculos escuros são armadura, a esconder os olhos ferinos, o dedo em riste a apontar na cara de todos; o artista recebe a Medalha mas não recebe – jamais receberia! – o ambiente da Medalha. É antes de tudo um desconfiado e desta posição ninguém o tirará.
Adoraria dizer de Obama, atrás de Dylan, servindo-lhe com dentes arreganhados – “the juggler”, “the joker” ou “the thief”? Faltaria dizer de seus dividendos políticos objetivos… Mas não há mais espaço!
Sobre Dylan, sugiro visitar os brilhantes ensaios para este mesmo site, de Martim Vasques aqui e aqui.
Tese número 4: ele é um rockstar e ficou convencionado que tais figuras devem SEMPRE usar óculos escuros em entrevistas, premiações, jantares beneficentes, inaugurações de hospitais etc. Vide Bono Vox, entre outros.