Por uma universidade contemplativa

oxford

 

 

Gustavo França*

 

Em meu último artigo (http://www.dicta.com.br/uma-esperanca-para-as-ideias/), defendi a premente necessidade de retorno à produção de ideias no Brasil. Parece-me relevante referir-me agora a um dos pontos nevrálgicos desse problema tão contemporâneo, em todo o mundo: a estrutura das universidades. Acredito ser passada a hora de propor uma reformulação radical do próprio conceito que hoje se atribui às universidades. Em outras palavras, de construir novamente autênticas universidades, espécimes que, nos termos da definição de que me valerei, praticamente desapareceram do imaginário intelectual.

O que hoje frequentemente se chama de universidade não guarda relação com o que deveria ser essa instituição basilar da sociedade e da cultura. Trata-se do agrupamento desordenado de cursos de treinamento profissional, em que o conhecimento é compartimentalizado em caixinhas incomunicáveis. O cultivo do conhecimento universal (do qual se tira o próprio nome universidade) e a formação intelectual sequer se aproximam do ambiente de certas faculdades atuais.

O que é, então, a universidade[1]? A universidade surgiu na Idade Média, no contexto do processo, que teve o seu pico no século XIII, de secularização das instituições terrenas. Assim como (das longas disputas de competência entre o poder temporal e as autoridades eclesiásticas) ganhou força a ideia de que é a vontade de Deus que as instituições políticas se organizem autonomamente por seus próprios critérios, surgiu a noção de que está igualmente conforme os desígnios divinos que as disciplinas seculares (os chamados estudos liberais) orientem suas investigações por parâmetros próprios, independentes da Teologia.

O principal produto dessa época foi o gênio de Santo Tomás de Aquino, que se dedicou, entre tantas outras coisas, a esclarecer a essência do ensino universitário. Segundo Tomás, ao contrário do que os alunos podem ser tentados a acreditar, a universidade não se presta a transmitir conhecimentos necessários ao exercício de uma profissão. Numa universidade, o conhecimento não é um instrumento prático, mas um fim em si mesmo. A universidade conduz os estudantes ao conhecimento perfeito do universo, aproximando-os do fim natural da pessoa humana, que se realiza na elevação da racionalidade individual à contemplação das verdades eternas, do sumo bem e da suma beleza. Assim, o Doctor Angelicus nos apresenta o conhecimento como um itinerário para o aperfeiçoamento da alma, concepção já desenvolvida no contexto anterior da mística religiosa por Hugo de São Vítor.

A mais célebre defesa moderna desse pensamento foi feita por John Henry Newman, nas palestras dadas em Dublin em 1852, a pedido dos bispos irlandeses que desejavam fundar a Universidade Católica da Irlanda. Reforçando a noção fundamental de que o conhecimento na universidade é a finalidade a ser cultivada, Newman alerta para a degeneração que ocorre quando as ciências particulares se enclausuram ou quando se retira uma das disciplinas fundamentais da formação, gerando a ilegítima pretensão de uma disciplina particular a intrometer-se no campo das outras (o que acontece quando economistas querem resolver problemas éticos ou físicos aventuram-se pela Metafísica, exemplos tão comuns em nossos dias[2]). Também ensina o cardeal inglês que a Filosofia é a matéria que deve orientar todos os estudos liberais, dando-lhes unidade e integração ao saber completo e lhes fornecendo os pressupostos basilares.

Dessas lições extraímos que a universidade, em sentido estrito, não é, como agora se entende, para capacitação profissional. A universidade é lugar das vocações contemplativas, para a formação daqueles que pretendem ter o conhecimento e a investigação dos padrões absolutos que regem o cosmo (a verdade, o bem e a beleza) como seu ofício vital. Curso superior não é para todos (como no jargão hoje repetido à exaustão), mas apenas para essa pequena parcela dos homens.

Os saberes instrumentais para o exercício de uma profissão devem ser transmitidos não nas faculdades, mas em cursos técnicos. Não faz qualquer sentido existir uma faculdade de Engenharia, campo eminentemente técnico, ou de Medicina. Deve haver faculdades de Física, de Matemática ou de Biologia, mas não de Engenharia ou de Medicina. Da mesma forma, um curso superior de Direito deveria visar ao conhecimento dos fundamentos do fenômeno jurídico, em sua inserção na ordem moral transcendente, e não à capacitação para o exercício das funções práticas dos operadores das leis (foco de um curso técnico em Direito).

O resultado da tara hodierna por que todos os profissionais (advogados, médicos, administradores de empresa) tenham diploma universitário é um estorvo mútuo entre universidade e estudantes. Os alunos, pouco interessados em abstrações metafísicas, veem-se enfadados por horas passadas em salas de aula, adquirindo conhecimentos que seriam muito mais eficientemente transmitidos em estágios. Por outro lado, a universidade fica impedida de exercer sua ratio essendi, para atender à maioria dos seus discentes[3].

Aqui, é importante deixar claríssimo que não pretendo implicar qualquer hierarquia em favor das vocações contemplativas. Ao contrário do sentido que acabou adquirindo no vocabulário da ideologia “universidade para todos”, cursos técnicos não devem ser considerados menores ou indignos. De forma oposta, o aprendizado para o exercício de profissão é caminho para a realização das competências pessoais no lugar social próprio. Além disso, não há qualquer contradição em que sejam difíceis, profundos, longos e cuidadosos (como os exemplos de Engenharia e de Medicina). Simplesmente, cada pessoa é chamada naturalmente ou pelas circunstâncias da vida a um caminho: para muitos, será um ofício necessário à sociedade; para outros, será o próprio cultivo do conhecimento. O que não pode acontecer é que esses caminhos sejam indiferenciados, misturados numa instituição híbrida batizada impropriamente de universidade.

Para melhor reflexão a respeito desse tópico, recomendo a leitura do capítulo 16 da obra “A política da prudência”, do filósofo norte-americano Russell Kirk, que traz uma abordagem atual da problemática evidenciada, com a maior clareza e lucidez que conheço. Trata-se, com efeito, de leitura obrigatória para todos os que desejam fazer renascer a universidade, pilar da sociedade e magnífico ventre da alta cultura.

 

[1] O breve histórico da ideia de universidade que segue se baseia, em grande medida, em Alasdair MacIntyre, “God, philosophy, universities”.

[2] Exemplos extraídos da obra citada de MacIntyre, p.146.

[3] Cf. Russell Kirk, “A política da prudência”, p. 308.

 

*Gustavo França é graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista Dicta & Contradicta

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