Quero uma ideologia para viver…

… pelo menos é o caso deste texto de Patrícia Campos Mello, publicado em seu blog no Estadão, a respeito dos tea-parties. Trata-se de um primor de desinformação, encharcado de “preconceito ideológico”. Obviamente, a ideologia aqui em questão é a “obamista”, e seu relato sobre a resistência dos tea-parties – adjetivada com os clichês de sempre, como “direitista”, “radical”, “histérica”, etc. – mostra também um medo que prova que tal movimento pode se tornar cada vez mais representativo nos EUA.

O problema central de um texto deste naipe é o de ver o mundo pelos prismas ideológicos – vícios dos quais o jornalista brasileiro parece padecer como se fossem virtudes. Talvez a pessoa nem perceba isso, mas eles estão lá o tempo todo e é muito díficil tirá-los do seu organismo. Trata-se de um peculiar mecanismo de sobreviência psíquica; o jornalista precisa fazer isso senão ele morre – não só profissionalmente como também existencialmente.

O detalhe que chama a atenção para o serviço de desinformação apresentado pelo texto é que a resistência dos tea-parties não é, em hipótese nenhuma, uma resistência da “direita” ou da “esquerda” e sim de pessoas que, como bem observa o relato, divergem em muitas coisas, mas também estão unidas por um interesse em comum: o desejo de que o Estado não se meta mais na sua vida. Da mesma forma que o Nelson Mandela de Clint Eastwood fez no filme Invictus, uma parcela do povo americano decidiu se unir através de um problema concreto apresentado pelas exigências do real – e não através de uma retórica populista que, a propósito, o próprio Obama percebeu que terá de se afastar se quiser governar decentemente pelos próximos três anos (além de, claro, ganhar as eleições do Congresso de 2010 e as presidenciais de 2012).

Além disso, a jornalista em questão quer embelezar o seu relato com uma sofisiticação acadêmica, ao citar justamente o ensaio de Richard Hofstadter entitulado The Paranoid Style in American Politics. Ora, pois, este é um dos ensaios mais superestimados já escritos; Hofstadter argumenta que a política americana é uma forma mentis que sempre apela para a culpa do outro – ou seja, a responsabilidade do político não ter dado certo na realização de seus projetos é sempre do “comunista”, do “conservador”, do “reacionário”, do “extremista”, do “radical”. Em outras palavras, trata-se do princípio do bode expiatório explicado para dummies. A ironia do artigo é que a própria jornalista cai na retórica deste raciocínio distorcido ao apelar para o termo – olhem só! – “paranóica” para classificar a existência dos tea-parties. Ou seja, a culpa de quem impede a concretização das políticas de Obama cai nos ombros de um movimento a-partidário, já rotulado como “oposição organizada”, quando não passa de uma resistência informal de pessoas que simplesmente querem ser deixadas em paz (E, a propósito, o dia em que os tea-parties virarem uma espécie de “terceira via” tenham certeza de que fracassou – e talvez seja por isso que o apoio de pessoas como Glenn Beck e Sarah Palin pode ser muito mais prejudicial do que vantajoso).

Sugiro à jornalista que não cite mais o ensaio de Hofstadter (Se quiser algo parecido e mais honesto, leia Patriotic Gore, de Edmund Wilson, em especial a sua introdução, uma perfeita amostra de como um intelectual da esquerda pode se soltar das amarras da ideologia política quando necessário); além de datado, mostra uma incompreensão básica de um detalhe essencial da verdadeira política americana: ela é feita através de intimações da vida e não através de slogans ideológicos. Provas destas intimações? Só lembrarmos de 1776, dos Founding Fathers, do Federalista, de Alexander Stephens, de Martin Luther King e Ronald Reagan. E toda vez que  o governo americano partiu para a última alternativa se deu mal – vejam os casos de Lincoln, Roosevelt, Kennedy, Nixon, Bush, Jr. e agora Barack Obama.

Pena que não existem possibilidades de se realizarem tea-parties aqui no Brasil – aliás, todas devidamente sufocadas não só por textos como os que são publicados no site do Estadão e outros órgãos supostamente “plurais” da nossa imprensa, como também por uma soi-disant oposição “liberal e conservadora”, que escolheu a apatia como meio de vida.

8 comentários em “Quero uma ideologia para viver…

  1. Não foi só a repórter do Estadão que narrou a convenção do Tea Party por uma ótica míope e preconceituosa. A Folha de S. Paulo seguiu pelo mesmo caminho. Parece que os jornalistas de ambos os periódicos acreditam que manifestações sérias só podem ser organizadas por esquerdistas. O resto é histeria de direitistas, fundamentalistas, etc., etc. Isso só mostra quanto a mentalidade de nossos jornalistas está comprometida no que se refere a encarar a realidade com um mínimo de objetividade.

  2. Falta humildade nesse artigo da jornalista, como bem disse Romano Amerio:

    “L’affermazione della verità non è disgiunta dall’umiltà, perché l’uomo che afferma il vero non afferma né se stesso né qualche cosa di sé, ma egli è soltanto più impresso e più passivo di chi afferma il falso. In una proposizione falsa c’è sempre un’infiltrazione di sé. Si potrebbe quasi dire che l’uomo sarà nel vero in proporzione della sua umiltà.”

  3. Caro Martim,

    “(E, a propósito, o dia em que os tea-parties virarem uma espécie de “terceira via” tenham certeza de que fracassou – e talvez seja por isso que o apoio de pessoas como Glenn Beck e Sarah Palin pode ser muito mais prejudicial do que vantajoso)”

    Concordo plenamente com isso e acho que seja o principal desafio que os Tea Parties encaram hoje.

    Por outro lado, o equilíbrio é bem difícil de se alcançar, uma vez que, para dar força política a suas aspirações, acho que o movimento precisará buscar representatividade no Congresso através dos partidos – muito provavelmente através do Partido Republicano.

    Vamos ver o que vai acontecer; mas, de qualquer modo, o Tea Party é um ótimo acontecimento.

    Abraços.

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  5. E que feio o texto da Patrícia Campos… Tão ideologicamente formatado.

    Para o que ela não gosta, termos como “espernear”, “fanáticos”, “ultraconservador”, “radicais”, “tumultuavam”. Chega até ao cúmulo de ver alguma anormalidade doentia e perigosa em protestos nos quais põe-se um bigodinho de Hitler na foto do presidente. Ora, e isso não acontecia, em escala muito maior, com o Bush Jr.?

    É um artifício tolo e banal, sem dúvida – equiparar o que não se gosta a Hitler ou ao nazismo, figuras do mal absoluto – mas se é algo que denota fanatismo, então a esquerda é muito mais fanática do que a direita.

  6. O problema da direita americana é ainda depender de uma figura como Sarah Palin para se fazer valer… embora no Brasil esteja igualmente mal representada.

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