Realidade aumentada

Recentemente, o futurólogo e cientista Ray Kurzweil se tornou o diretor de engenharia da Google. Não se trata, como é fácil perceber, de uma contratação rotineira. Provavelmente a empresa mais próxima de você — a menos que esteja longe da Internet, como o lendário cientista da computação Donald Knuth — está jogando para sair na frente. Antecipando-se às outras empresas que têm investido no desenvolvimento de acessórios semelhantes, a Google pretende colocar no mercado o seu Google Glass a partir de 2014. O propósito do aparelho? Diz Babak Parviz em uma entrevista:

we wanted to have a device that would see the world through your eyes and allow you to share that view with other people. The second big goal was to have a technology that would allow people to access information very, very quickly. So when you have a question, you can very rapidly get to the answer.

Ele será enviado aos desenvolvedores nas próximas semanas. Não sabemos se vai pegar. O meu chute é que, se for mesmo útil e funcional, o acessório será rapidamente integrado — apesar da sua estranheza — pela nova geração de consumidores. Veja por exemplo o projeto de realidade aumentada da Pattie Maes, do MIT, SixthSense.

O mercado consumidor de tecnologia tem sido conservador. Não há dinheiro onde não há segurança e familiaridade. Experimente lançar uma “moto do futuro”, como aquela que parece um misto de carro e motocicleta (e que se equilibra com um par de rodas menores extra que se recolhe automaticamente). Ninguém compra. E não se trata de algo inovador: protótipos e mesmo veículos comerciais desse gênero já existem há mais ou menos 20 anos. Salões do Automóvel exibem certos veículos que serão tão usados quanto as roupas das modelos do Victoria’s Secret.

O iPhone, previsto parcialmente pela revista Wired já em 2003, é essencialmente o mesmo desde que foi lançado: um telefone celular com benefícios. Tem coisa mais velha que telefone celular? Mas vende porque é extremamente funcional. Compramos familiaridade e segurança. Abominamos geringonças do futuro.

Mas será que a vanguarda não vende?

A cautela extrema dos consumidores está correlacionada ao atraso e ao medo. Onde estão as casas automatizadas e os skates voadores? O consumidor há de concordar comigo: fosse menos medroso, teria estimulado o desenvolvimento de novas tecnologias e a disponibilização das já testadas (como a automatização doméstica). E se ele quisesse mesmo um skate voador, é provável que já o teríamos desenvolvido, dado que já inventamos os supercondutores. (Sim, estou descontando certas dificuldades óbvias, como a necessidade de uma pista e outros elementos.)

Há outras tecnologias que, desejadas no passado, foram largamente ignoradas depois de desenvolvidas. O que dizer de telefones com vídeo? Como bem observou ficcionalmente David Foster Wallace em Infinite Jest, ninguém quer trocar de roupas ou lavar o rosto só para atender um telefone. O videofone é um fracasso, mesmo que esteja lá no seu iPhone (Face Time) e seja mais velho que o seu pai. Se não é prático, não pega.

Todavia, o mercado está amadurecendo aos poucos, pronto a equacionar familiaridade e inovação. As novas gerações — os nascidos depois de 1990 — estão acostumadas com a tecnologia. A defasagem era esperada: muitos dos CEOs de grandes empresas são de gerações passadas e agem de acordo com a sua visão de mundo, e mesmo os mais novos entre eles herdaram a obsessão com a segurança dos seus antepassados. Mas a única política que faz sentido hoje é investir sem medo em novas tecnologias. Os consumidores estão mudando, e se trata de uma reação em cadeia.

Novas tecnologias precisam ser úteis, seguras e (com o perdão da tautologia) recentes. Os dois primeiros requisitos são condições necessárias de um produto que passou por testes e que herdou a funcionalidade de gerações anteriores. (Essa é a política da Apple, por exemplo, com os novos modelos de iPhone: mais do mesmo, mas com melhoras sensíveis.) Mas agora o terceiro requisito, responsável pelo incremento tecnológico em termos socialmente verificáveis, tornou-se necessário. Se a tecnologia já existe e foi testada, tem de ser disponibilizada para o consumidor, e isso por canais mainstream. Já foi o tempo em que só os futuristas se interessavam pelo novo, contentando-se com salões, fóruns subterrâneos de discussão e protótipos. Um sintoma pontual, mas importante, de que isso é coisa do passado é a contratação de Ray Kurzweil pela Google.

Na verdade, trata-se apenas de tornar explícito e ‘viral’ o que era até pouco tempo um fenômeno pouco notado pelos consumidores, embalados que estavam no sono da segurança pela segurança. Há décadas robôs e outros aparatos automatizados tomaram o lugar de seres humanos, fazendo melhor o que estes faziam ou operando o antes inoperável, diminuindo riscos e deixando espaço para profissões que exigem criatividade (enquanto não produzimos verdadeiras mentes; se é que isso será possível, a julgar pelos questionamentos de Roger Penrose). Com isso, perdemos alguns empregos, mas ganhamos profissões impensáveis quando as máquinas não existiam.

A tecnologia é um fenômeno sutil: o que ontem era novo hoje é parte de nossas vidas. Basta pensar no surgimento da combinação entre GPS e Google Maps, que nos permite orientar-nos e perscrutar [quase] cada metro quadrado da superfície da Terra. Integrar tudo com maior rapidez, transformando o novo em familiar, parece ser a tendência das novas gerações. Um efeito da realidade aumentada?

* * *

Só existe uma atitude correta diante da tecnologia, que é integrar aquilo que funciona. Aceitamos o novo pelo mesmo motivo que aceitamos o velho: porque têm uma função. Quando um ou outro se mostra inútil ou prejudicial, ou se converte em fetiche, devemos rejeitá-lo. (Se até uma religião austera como o cristianismo ou mesmo uma obra arquitetônica inspirada nele se pode tornar um fetiche, que dirá de “inventos maravilhosos”.)

Quando saíram os primeiros Kindles e iPads, muitos pensaram que seria apenas um mercado alternativo. Hoje muitos têm abandonado os livros, ou ao menos diminuíram os seus gastos com eles. Escritórios digitalizam arquivos inteiros. A previsão é que o papel tenha um uso cada vez mais restrito. Mas até que os anciãos abandonem o seu fetiche — ou melhor, o seu hábito –, ainda perderemos muito tempo. Não se trata de uma obrigação moral: é uma questão de funcionalidade e, para alguns, livres para crer que um arquivo em PDF salva muitas árvores, de preservação do meio ambiente.

E vamos aproveitar que nem os filósofos acreditam no relativismo.

.

8 comentários em “Realidade aumentada

  1. Julio,

    Muito interessante a pesquisa com os filósofos que você linkou.

    Eu, sinceramente, ‘boiei’ em várias perguntas. Essa pesquisa não merecia um artigo seu ou de alguém “do ramo” aqui na Dicta ?

    Quem fez essa pesquisa?

  2. Sim, Wagner. Além do grande número de filósofos profissionais, o número de perguntas (posições) é vasto, e elas são pouco acessíveis aos não-iniciados. Quem fez o survey foi o PhilPapers; veja aqui. É possível que eu escreva algo a respeito, se o Joel não o fizer.

  3. A Google vale mais que o patrimônio dele, André, até onde sei. (Creio que mais ou menos USD 50 bi do Buffett versus USD 250 bi da Google.)

  4. Este texto foi escrito por você Júlio? É um estilo diferente, mais limpo e didático – diria que menos… pedante hehe

    E o dinheiro? Talvez a moto/carro não emplaque pq a querem vender por bagatela de carro de luxo importado! Não dá para pagar 80 mil em uma moto!! (fora colecionador)

    A praticidade fala alto, mas quantas invenções não deslancharam pelo seu custo? O trem bala é realidade há décadas, mas qual a proporção de habitantes do planeta que têm acesso a este transporte? Estima-se que nosso jabuticabaspeed vá custar algo como 60 bilhões de reais e a passagem será entre 10 a 15% mais barata do que a de avião com um tempo de 30 a 40% superior de viagem! Quem pagará? O serviço será ruim ou pouco interessante? Claro que não, mas o custoxbenefício talvez não compense.

  5. Caio, sim, eu o escrevi. Como o tema é simples, o texto é simples. Não dá pra fingir que revisão de crenças, por exemplo, é tão simples quanto falar de tecnologia e de sopas de feijão. Mas eu peguei o recado — mesmo quando a crítica erra, o criticado tem de a incorporar de alguma forma, nem que seja para aprender a apanhar. Valeus. E, sim, o problema do preço é universal. E quem barateia, divulga. A Lego pegou um projeto do MIT de robótica (para encurtar bastante a história) e implementou o LEGO Mindstorms, o mais prático e versátil kit de robótica que existe. Ele não passa de 300 dólares nos EUA. (Nós já temos robôs incríveis desenvolvidos, melhores do que os de filmes de ficção científica dos anos 50. Mas sabe quanto custa o robô ASIMO, o melhor deles? Para alugá-lo por um dia, o preço de um apartamento.)

  6. Julio, este é um assunto fascinante, e eu estava por fora da notícia de que Kurzweil agora trabalha no Google. Como trabalho bastante com reconhecimento de padrões, sei que o trabalho de Kurzweil é extremamente relevante na área, muito embora seja mais conhecido pelos excelentes sintetatizadores que levam seu nome.

    Para mim está claro que Kurzweil não foi contratado pelo Google para continuar seus recentes trabalhos, que estão mais para ficção científica do que ciência propriamente dita. Após a leitura deste artigo, busquei mais informações e, pelo que parece, Kurzweil estará envolvido em pesquisas referentes à “speech recognition”. Um palpite meu é que seria algo relacionado ao produto Google Translator, e também partir para a comrpeensão da linguagem humana ou algo próximo disso. Um desafio que pode ser inclusive inalcançável, mas o Google possui os melhores recursos e algumas das melhores cabeças, e certamente em breve teremos algum produto inovador.

    E sim, parece que o Google está apostando em inovação agora, strictu senso mesmo. Não concordo muito que o mercado seja tão conservador… é que as pessoas acabam utilizando produtos nos quais elas vêem algum valor. Claro que essa visão muitas vezes é absolutamente imprevisível por ser subjetiva, outras nem tanto. Hoje, temos muita informação – o Google, então… Só que a gestão do Google sempre assumiu grandes riscos, é só ver a quantidade de produtos de seu portfólio que foram grande fiasco. O mais recente deles, o Google+ – que é um produto caríssimo. Empresas que não possuem um capital disponível tão imenso quanto o Google jamais farão um investimento tão alto em um produto com risco de fiasco tão grande quanto o Google+. Acho que isso é mais importante do que o perfil dos CEOs das grandes empresas. Conheço pessoas que inclusive criticam um pouco a gestão do Google, por ser um pouco inchada… enfim, eles realmente arriscam mesmo, e perdem dinheiro. Mas, como é uma máquina de fazer dinheiro, não deixa de crescer.

    Ainda, no campo da inovação, em minha opinião o Bell Labs está anos-luz à frente de empresas como o Google e o próprio Kurzweil. As inovações do Bell Labs – que inclui nada menos que o próprio transistor – causaram um impacto muito maior do que qualquer inovação do Google.

    Abraços

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>