Resenha: God’s Battalions, de Rodney Stark

Publicado originalmente na revista Vila Nova.

Rodney Stark é, infelizmente, um nome pouco corrente em terras brasileiras, embora seja um sociólogo com obra muito relevante quando se fala de Cristianismo, seu tema favorito (embora seja, ele próprio, agnóstico). The Victory of Reason (2005) é uma interpretação da vocação inovadora do Ocidente como oriunda do fé cristã e da visão de mundo que ela pressupõe. Cities of God (publicado em português como O Crescimento do Cristianismo pela Paulinas em 2006) analisa a expansão do Cristianismo em seus primeiros três séculos; usando a (pouca) informação quantificável disponível, tira conclusões muito interessantes sobre a Igreja primitiva.

Meu interesse aqui é por seu livro mais recente, God’s Battalions: The Case for the Crusades (ainda sem tradução), cujo tema são as Cruzadas. Provocador como sempre, Stark defende que: 1) as Cruzadas foram uma empreitada militar justificada. 2) Sua motivação foi genuinamente religiosa, e não econômica ou política. 3) Sob o nome “Cruzadas” existiram muitos movimentos (mesmo dentro de uma mesma Cruzada), alguns razoavelmente organizados e bem-sucedidos, e outros fruto da exaltação popular, desordenados e largamente mal-sucedidos. 4) A ideia de ocidentais bárbaros atacando árabes civilizados é um mito.

A respeito da quarta tese, a primeira parte do livro destina-se a mostrar que os avanços árabes muçulmanos se deveram a descobertas feitas por cristãos ou pagãos que viviam sob seu domínio. Em contrapartida, a suposta Idade das Trevas europeia foi muito mais produtiva e inventiva do que se pinta. O restante do livro analisa as Cruzadas em si, mas sempre na mesma chave de corrigir o viés pró-árabe das leituras atuais. Por exemplo, à crítica de que os latinos promoveram um massacre em Jerusalém enquanto os árabes a tomaram pacificamente, Stark responde: sim, os fatos são esses, mas não se devem a uma suposta superioridade civilizacional árabe. O comum na época era que, se uma cidade sitiada se rendesse, o invasor a dominaria pacificamente (foi o que ocorreu quando os árabes tomaram Jerusalém). Por outro lado, se a cidade não se rendesse, obrigando o agressor a invadi-la (como no ataque cristão), ele se vingaria ferozmente da população. Os mesmos árabes cometeram massacres e pilhagens sanguinários ao tomar cidades aguerridas. Era uma atitude nada cristã; mas não era exclusiva dos cristãos.

Um participante que costuma receber pouca atenção é o Império Bizantino, lembrado apenas pelo saque de Constantinopla na Quarta Cruzada. Stark dedica mais espaço a ele, em especial às maquinações dos imperadores, que ora pediam ajuda e ofereciam auxílio aos latinos, ora abandonavam-nos à própria sorte e por vezes até os sabotavam. Em 1182, por exemplo, os cidadãos gregos, a mando do imperador, massacraram e exilaram os latinos que viviam na cidade. Havia ressentimento mútuo, e o próprio exército veneziano que saqueou a cidade em 1204 fora para lá a pedido de Alexius IV, herdeiro do trono e metido em intrigas pelo poder. A história é, no mínimo, complexa.

Um dos méritos de Stark é sua escrita provocativa, que não teme defender posições opostas ao consenso, sempre apresentando evidências. Esse mérito, contudo, engendra um defeito: não dar a devida atenção aos argumentos contrários. Lendo-o, ficamos sem saber como é que tantos outros historiadores e sociólogos cometeram erros aparentemente grotescos; talvez eles também tenham bons motivos, e os de Stark não sejam tão conclusivos assim. Para contrabalancear essa tendenciosidade, uma boa leitura complementar é A Casa da Sabedoria, de Jonathan Lyons [resenhado por mim na Dicta de dezembro/2011], sobre as maravilhas do mundo árabe, disponível em português e largamente distribuído. A pergunta que não quer calar é por que só um dos lados desse debate é divulgado a nosso público.

3 comentários em “Resenha: God’s Battalions, de Rodney Stark

  1. Alex, Christopher Hitchens já foi assunto de vários textos por aqui.

    O Sam Harris é alguém que até hoje, na minha opinião, ainda não fez jus à aura que o circunda. Lembro que no lançamento de The Moral Landscape, comprei o livro e o li avidamente. Ele me decepcionou (não por eu discordar de suas posições, o que é esperado, mas pela óbvia fraqueza argumentativa e ingenuidade com que defendia seus pontos), e não teve o impacto cultural que se esperava que tivesse antes do lançamento. Alguns figurões do neo-ateísmo o elogiaram, mas até onde sei ele não gerou nenhum grande debate público, embora o tema seja muito explosivo. Enfim, é alguém a se ter no radar.

    Já Dinesh d’Souza é, acima de tudo, um apologeta cristão. Não é, a princípio, alguém cuja obra seja de interesse direto para a Dicta (ao menos não para este editor). William Lane Craig, por exemplo, também tem diversos livros de apologética; mas o que faz dele uma figura culturalmente maior é o fato de ele ter obras e preocupações filosóficas. Isso significa: ele está disposto a seguir o argumento até onde ele levar, e não se contenta com respostas fáceis que persuadam o grande público. Na minha opinião, ele vai mais fundo; e isso faz toda a diferença. Não importa se o sujeito é ateu, cristão ou espírita; há uma atitude fundamental para com a verdade (e que, sejamos sinceros, bota em risco ao menos potencialmente qualquer sistema de crenças) que vai além da mera defesa ou propaganda da própria crença, e que distingue filósofos, que se lançam de peito e olhos abertos à realidade, e apologetas, que pré-selecionam os aspectos da realidade que melhor se coadunam a um sistema de crenças intocável.

    Admito, contudo, que não tenho grandes conhecimentos dos livros do Dinesh; mas é a impressão que tenho de ler alguns artigos e ouvir algumas falas/debates dele. E, é claro, nenhuma porta é jamais fechada. Se amanhã tomarmos conhecimento de algum artigo ou livro que mude nossa opinião, ou que revele algo novo, aqui estaremos para comentá-lo, na medida de nossas possibilidades.

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