Reverberações de William Lane Craig

Conforme largamente divulgado, o filósofo e apologeta cristão americano William Lane Craig esteve no Brasil há duas semanas. Tive o privilégio de, no dia 12 de março, um pouco antes de sua palestra na Faculdade S. Bento, fazer uma longa entrevista com ele, de teor bastante filosófico. Enquanto esta não é publicada, recomendo a leitura da entrevista que ele concedeu à Veja, que aborda seu lado apologeta (que tem, obviamente, intersecções com a filosofia; por exemplo, na questão da existência de Deus), ou seja, de quem defende racionalmente a fé.

Alguns consideram essa uma tarefa inútil; afinal, se é fé, se é algo desprovido de motivações racionais, como defendê-la usando a razão? Se fosse passível de prova racional, não seria fé. O que os críticos não se dão conta é que, embora a fé seja de fato incompatível com prova, com demonstração, é compatível com indícios, com motivos racionais que indicam mas que não fecham a questão. Há muitas fés no mercado; por que aderir a uma e não a outra, ou a nenhuma? Necessariamente, algum fator externo à fé em si decidirá essa questão; e é aí que entra a tal da apologética.

Leiam a entrevista aqui.

Sem em nenhum instante negar o valor do trabalho de Craig, há alguns pontos que não posso deixar de discordar. Um deles, e que surgiu também na entrevista que fiz, é o da ontologia moral; ou seja, da fundamentação última da ética. Para Craig, esse fundamento é a vontade de Deus, expressa por meio de um mandamento, que implica uma obrigação (como o homem conhece esse mandamento, se por meio da fé na Bíblia ou por meio de uma intuição moral de sua mente, não vem ao caso). Sendo assim, ele não tem como escapar da posição de que a moral depende, em última análise, do capricho de Deus; e que esse capricho pode mudar.

Então se Deus ordena um assassinato, este assassinato passa a ser ético. Felizmente, “a forma normal com que Deus conduz os assuntos humanos” não é essa; em geral, Ele condena o assassinato. Mas Ele também pode abrir exceções quando bem entender. Se um interlocutor me disser que Deus abre exceções apenas quando o homicídio será bom, então não é a vontade de Deus que fundamenta a ética; ela apenas a reflete. Pela posição de Craig, é preciso afirmar que mesmo o homicídio mais injusto e odioso imaginável seria bom se Deus assim o comandasse.

E daí se coloca um dilema teórico sério para o fiel. Se Deus te ordenasse que assassinasse um inocente, você o faria? Não? Então há algo superior a Deus. Sim? Então você é basicamente um terrorista em potencial, aguardando um comando de Deus para cometer uma atrocidade? Sem falar no problema epistemológico de saber se é realmente Deus, e não uma alucinação, ou, ainda, um espírito mau, quem ordena o assassinato. Afinal, se o que é pedido é algo imoral, ainda que se proclame da parte de Deus, como avaliar?

Na história do pensamento teológico moral, há uma outra abordagem a esse problema, que é a da lei natural: a moral está fundamentada na natureza humana, e o único jeito de mudá-la seria mudando a natureza do homem. Da natureza humana, criada por Deus, decorre uma ética, que é portanto querida por Deus também. Não dependemos de conhecer algum mandamento mutável de Deus; os mandamentos refletem o que se depreende de nossa natureza de animais racionais em busca da felicidade. Por esse motivo, teólogos renascentistas católicos gostavam de afirmar que suas conclusões morais valeriam mesmo se Deus não existisse.

Claro que, nesse caso, teremos uma dificuldade de interpretação bíblica. Pois, como Craig bem aponta, se acreditamos na Bíblia, então acreditamos que Deus mandou Abraão matar seu filho inocente (sacrifício que foi impedido na hora H; mas Abraão não tinha como sabê-lo de antemão). Assunto não falta para teólogos e filósofos da religião…

20 comentários em “Reverberações de William Lane Craig

  1. Bem… Eu, que sou um trouxa, acho que a diferença entre um terrorista e Abraão está no fato de que o último falou efetivamente com Deus, enquanto o primeiro é só um lunático assassino. E isso faz toda a diferença do mundo! Se Abraão, depois de cometer um assassinato, deve ser preso em Guantánamo, ser condenado à morte pela justiça dos homens, ou receber ajuda financeira do PSTU ou do Irã, isso é totalmente irrelevante para os planos divinos. O erro é achar que o homem pode definir o que é bom ou mau e encaixar Deus no esquema mais adequado ao seu conforto.

  2. Tem um problema de conhecimento aí, Marcelo: como saber se estamos falando com Deus?

    Se um dia você tem uma revelação pessoal que lhe diz “Sou eu, o Senhor teu Deus. Levante-se agora da cama e mate seu filho.” Como você sabe que se trata, de fato, de uma revelação divina? Você pode estar alucinando. Pode ser um espírito mau. Como decidir? O teor da revelação certamente apontaria na direção de algo não-divino (pois se Deus é amor, como comandar o assassinato de um inocente?).

    Nenhuma tentativa de justificar a crença nessa revelação com base em algum elemento interno à revelação (digamos, um sentimento profundo de convicção e paz, uma visão maravilhosa de um coral de anjos, etc) será capaz de resolver o problema, pois uma alucinação ou sugestão demoníaca poderia emular essas mesmas coisas. Como decidir?

    Como saber se se ouviu realmente o chamado de Deus ou se se é só mais um malucão prestes a cometer uma barbaridade?

    E sobra a questão ontológica de fundo: a moral é fruto do capricho divino, sem relação necessária com a natureza humana? Deus poderia declarar que a partir de agora que beber água é imoral e que cometer estupros é uma obrigação?

  3. Joel,

    Vou tentar responder primeiramente à segunda pergunta, que me parece mais fácil: sim, a Lei de Deus é o fundamento da moral. Até porque Deus não pode se submeter a nada além de si próprio. O bem é a vontade de Deus. Se ele decidir que os homens devem estuprar criancinhas de 5 anos, então pronto. O que o homem pode fazer sobre isso? O homem é só o homem. Deus é Deus. Em última análise, se o homem não obedecer e Deus perder a paciência, Ele manda cair uma chuva mais longa. Agora, será que Deus faria isso? Eu simplesmente acho e espero que não. Só sei que não tenho como saber o que se passa na cabeça de Deus.

    Quanto à primeira pergunta, sim, eu concordo que há o risco de alucinação ou tentação. Mas e daí? Para os planos divinos, isso não deveria representar qualquer problema. Para os mortais, ora… ninguém falou que o homem tem uma vida segura. No fundo, onde está mesmo a sua capacidade de não ser enganado? Se Deus decidisse que um demônio deve cegar completamente o discernimento de um homem, a ponto de impossibilitar sua ação boa, o que o homem poderia fazer sobre isso? Seria o mesmo que tirar o livre-arbítrio do homem. Eu acredito que Deus não permitiria isso, mas quem sou eu pra prever a vontade divina? Aliás, isso me lembra de um versículo de que gosto muito – Jó 7, 17.

    Aparentemente o homem possui, sim, livre-arbítrio. Mas o homem não é onisciente. E se as suas certezas mais profundas, aquelas nas quais você escolheu acreditar porque sua razão pembou, nada mais são do que enganações do demônio? E se Jesus Cristo, na verdade, foi Satanás disfarçado, que expulsou demônios só pra ganhar credibilidade entre os trouxas, através de um blefe?

    Na minha opinião, qualquer conhecimento humano, qualquer um, é baseado na fé. Particularmente, eu acho que esse é um dos principais motivos pelos quais os homens precisam rezar muito, para que Deus não permita que o homem deixe de ver o caminho certo e para que Ele nunca desista de nosotros. De nossa parte, só podemos continuar acreditando no amor divino.

    E, se rezar por essas coisas também for uma espécie de enganação – e não vejo como qualquer outra tentativa de busca da verdade pelo homem seria menos enganação do que essa em questão -, então, para mim, todos os problemas estão resolvidos: nada importa ou a verdade não me diz respeito. E, se nada importa ou a verdade não me diz respeito, então posso continuar tranquilamente na minha loucura, sem ter prejuízos.

  4. Por mera provocação, Marcelo: um bom muçulmano (e neste momento não estou fazendo qualquer juízo de valor) raciocina exatamente do modo como você no primeiro parágrafo do comment 3. Acho possível que alguns bons rabinos idem – mas tenho a impressão (corrijam-me se estiver enganado) que nesse campo hoje em dia é maior a margem de debate.

    O que é que distingue ambos de um bom católico, por exemplo? O fato de que este se lembrará de que Ha Shem é também Logos. O Criador, para os cristãos, é razoável e pode ser conhecido no amor.

    A pergunta final do post do Joel é de longe uma das mais interessantes que se colocam para que se interessa, hehe. Está no coração mesmo daquilo que significa ter fé. Uma resposta possível, que de certo modo temperaria o seu primeiro parágrafo, Marcelo, mas que por avançar no mesmo rumo deixa muita gente insatisfeita, é a de Kierkegaard refletindo sobre essa passagem do sacrifício de Isaac.

    Quem estuda filosofia conhece bem. Meio ao acaso – haverá muitos outros sites resumindo essa idéia do dinamarquês – vai apresentada aqui: http://www.kareyperkins.com/percy/kierkegaard.html

    Já que ele (Kierkegaard) puxa a questão para o plano existencial, posso dizer que não fui o único sujeito a sentir-se pessoalmente interpelado por essa idéia de salto na fé como salto no imponderável.

    Essa discussão é ampla à beça, porém, e não faltam (mesmo dentro do campo cristão ou daquele dos crentes em geral, inclusive judeus e maometanos) outras maneiras de se aproximar desses mistérios – e no caso dos cristãos de aproximar Logos e sacrifício do próprio filho. Talvez o desenvolvimento teológico que nos permite pensar Ha Shem como pessoa (três pessoas!) resulte dessa necessidade de aproximação.

  5. Ricardo, eu gosto do pouco que conheço da resposta que Kierkegaard dá ao problema. E é justamente por isso que digo que a diferença que existe entre um terrorista e Abraão é que o último está certo. E é a diferença mais significativa que existe!

  6. Quem dá uma boa resposta a estas indagações é Agostinho, especialmente quando discute a relação entre lei eterna e lei temporal (por exemplo, no De Libero Arbitrio e na Ciuitas Dei). A chave desta questão parece mesmo estar na relação entre o eterno e o temporal, nossa existência e a transcendência.

  7. Mas a lei eterna é apenas outra maneira de se entender a lei da graça. A lei eterna diz que é justo que tudo esteja absolutamente ordenado, só que para nós tal ordenação só pode existir quando amamos Deus acima de todas as coisas, desmesuradamente; e, por sua vez, só podemos amá-Lo assim com a Sua graça ; )

  8. No texto indicado acima sobre Kiekegaard fala-se da “suspensão da lei ética” pela vontade de Deus. É uma idéia análoga a da “suspensão das leis da natureza” no milagre. Talvez nesta idéia de suspensão esteja a chave para se consiliar a concepção natural da ética com a concepção baseada na vontade de Deus. Deste modo as leis éticas baseadas na natureza humana não seriam universais e absolutas, mas relativas, assim como muitos cientistas naturais hoje aceitam que a natureza não obedece a leis eternas ou imutáveis.

  9. Creio que seja extremamente perigoso pensar na suspensão da lei ética pela vontade de Deus, justamente por não existir meios confiáveis para diferenciarmos o que é ou não vontade do Todo Poderoso.
    O Joel já disse o suficiente a respeito disso e creio que os posts abaixo não foram esclarecedores em relação ao método para diferenciar o que vem de Deus e o que é uma alucinação.
    Da minha parte, prefiro fundamentar a ética na lei natural, independente da questão da existência de Deus, embora creia que não tenha sentido conceber a existência da ética sem a existência de um ser como Deus.

  10. Duas maneiras de ver, nos dois links abaixo.

    No primeiro, uma reflexão de doze minutos mais ou menos sobre obediência, na linha da confiança amorosa (Agostinho teria, sim, muito a dizer).

    No segundo, em registro menos “existencial”, Ratzinger reflete sobre Logos e obediência, como em tantas outras ocasiões.

    http://proudtobecatholic.org.nz/1953/abraham-isaac-and-christ-a-commentary-by-fr-barron/

    http://www.30giorni.it/articoli_id_11814_l6.htm

  11. Vinicius, independente de outras coisas, note que você excluiu uma palavra chave: “teleológica”.

    Mesmo na perspectiva do Kierkegaard, a “suspensão” (não abrrogação) continua referida a um determinado norte.

    Mais: ela se dá no espaço de uma relação com o Criador.

    Claro que, na perspectiva do “temor e tremor”, você pensa a relação com o transcendente em termos de uma dinâmica existencial (não gosto da expressão, mas é disso que se trata).

    Daí a concluir que a lei natural não implica certas categorias universalmente aplicáveis é um salto lógico excessivo.

  12. Do texto de Ratzinger. Ele não usa à toa a palavra “analogia”:

    “…entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito criador e a nossa razão criada, existe uma verdadeira analogia, na qual por certo – como afirma, em 1215, o IV Concílio de Latrão – as diferenças são infinitamente maiores que as semelhanças, mas não até ao ponto de abolir a analogia e a sua linguagem. Deus não se torna mais divino pelo facto de O afastarmos para longe de nós num voluntarismo puro e impenetrável, mas o Deus verdadeiramente divino é aquele Deus que se mostrou como logos e, como logos, agiu e age cheio de amor em nosso favor.”

  13. Tenho a impressão de que na teologia de Ratzinger Deus não pode (contradiz sua natureza) mandar algo que contrarie a natureza humana (eticamente falando), pois isso contradiz a própria natureza divina. Acho que vale a pena reler aquele famoso discurso dele em Regensburg em que cita o Miguel Paleológo e que fez tanto auê entre os muçulmanos.

  14. Joel,

    – Primeiro, concordo com a sua ressalva sobre a noção de ontologia moral do Craig, mas suspeito que, pelo menos do que já li e ouvi do Craig, ela não seria exatamente como você a descreveu.

    O Craig tem consciência do dilema de Eutífron que você descreve, mas na teologia cristã Deus não teria uma relação com o bem a partir de onde possamos refletir se Deus seria subordinado ao bem ou árbitro do bem, mas ele SERIA o próprio bem. A partir disso a ontologia moral do Craig diz que Deus pressupõe uma moralidade objetiva com a sua existência, que o bem não dependeria apenas da epistemologia ou da subjetividade humana, mas que teria tanto um suporte como mesmo uma fonte ontológica em Deus, de onde seria, portanto, independente da opinião do próprio homem (daí o exemplo dele de que se os nazistas tivessem vencido e realizado uma lavagem cerebral no mundo de modo que todas as pessoas considerassem o holocausto algo bom, ainda assim ele teria sido algo mau). A minha reserva com essa ontologia moral é que ela nos compromete a um jogo de linguagem: todo “bem” anunciado ou seria insignificantemente subjetivo ou, se quisesse valer, dependeria de um paradigma que só poderia ser considerado significativo se fosse objetivo, e pra isso dependeria de emprestar a natureza absoluta de Deus como medida. Ou seja: só se poderia falar em bem com a existência de Deus atuando como uma régua absoluta. Mas na verdade isso é apenas privilegiar o paradigma-Deus de valores, ele não passa a ser absoluto só porque alguém quer, ele no fim é tão relativo como apenas mais um paradigma de bem quanto qualquer outro no desempenho de valores da linguagem. É certo que isso reforça a teologia cristã, mas o problema é ignorar que valores como bem e mal na nossa linguagem são uma axiologia e que partem da própria natureza.

    – Segundo, achei a entrevista dele para a Veja HORRÍVEL. Creio que ele quis dizer que um terrorista pode ter um código ético impecável, mas estará cometendo uma atrocidade na mesma medida em que estará agindo em nome do deus errado – quando entendemos a sua ontologia moral isso até faz mais sentido, mas é um assunto muito delicado pra ser tratado nesses termos em uma entrevista com a visibilidade da Veja. Depois acho que ele de fato erra o foco quando explica tanto a ideologia guerreira quanto as ordens por sacrifício de Deus no Antigo Testamento. Rapidamente eu mencionaria três dados pra contextualizá-las: 1) historicamente, seriam a reprodução cultural de um tempo em que o estrangeiro representava hostilidade e em que a guerra era um instrumento político constante; 2) teologicamente, seriam traços da chamado período da lei, em que a observância do código moral de Deus é uma realidade dura, e não do período da graça trazido pelo Messias (e que os evangelhos anunciam conscientemente nesse sentido); 3) que homens morressem na realocação do povo de Israel à terra prometida é um claro sacrifício, lamentável tanto naquela época como hoje se lamenta toda guerra, e a função disputada é a de que o povo de Israel fosse guiado pra enfim nada menos do que trazer a salvação para o mundo (depois de passar, afinal, pelo período da lei, de tornar a santidade de Deus conhecida pela sua palavra e de fornecer Jesus como a única remissão realmente alcançável pelo homem, quando o evangelho é voltado para todo o mundo).

  15. Dois pontos a serem observados nos textos (do Joel e comentários).

    a) Deus não é refém da sua vontade, como se fosse um animal refém de instintos, ou seja, movido por “caprichos”. A vontade de Deus é expressão da sua sabedoria perfeita. É a sabedoria que guia seus mandamentos.

    b) A sabedoria divina “se move” na direção de levar o homem à vida eterna, e NÃO de ter uma vida confortável aqui ou parecer um bom moço. O bem supremo é avaliado do ponto de vista da eternidade. Por que Deus deixa de ser bom se ordena um ato na realidade imanente que vai, ao final, dar o prêmio da vida eterna a quem participou do seu plano?

  16. Rafael,

    a) Pra esse dilema de Eutífron só é importante lembrar da unidade da natureza divina: na “cadeia dos seres” Deus seria o ser mais uno possível, a sua essência e a sua existência são uma. Se fosse apenas uma questão de Deus agir conforme a sua sabedoria, ainda assim Ele poderia ser sujeito a ter que julgar as coisas subordinado ao que Ele soubesse ser o bem. Mas na teologia cristã Deus É o próprio bem, e essa solução é fundamental nesse problema.

    b) De fato a existência de um Deus que seja bom e a permissão do mal no mundo não é uma contradição lógica porque nada compromete a ideia de que haja razões morais pra se permitir o mal, mas uma contextualização aqui cai bem quando isso é um obstáculo emocional mais do que intelectual pras pessoas. Acho que você faz uma lembrança fundamental quando diz que para o judaísmo e o cristianismo a finalidade de Deus para a vida mortal dos homens não é meramente a felicidade, mas conhecê-Lo livremente e a conciliação da natureza humana para se integrar com a natureza dele. Mas algumas vezes aqui também é exigido algum sentido por trás da ideologia guerreira no Antigo Testamento, que se insere no chamado regime da lei, muito mais local do que a universalidade do regime da graça depois da vinda do Messias, e, por exemplo, no sacrifício de Isaque por Abraão o fato de que: Deus já havia prometido a multiplicação dos descendentes de Abraão, que já estava muito velho e ainda assim teve Isaque. Como a narrativa bíblica tem uma sumaridade (as ricas lacunas tidas em alta conta por Auerbach em uma análise mais literária), há quem julgue que Abraão pode ter lembrado das promessas de Deus e imaginado que Deus ressuscitaria Isaque em seguida. Mas de qualquer forma o que a passagem deixa explícita, além da fé de Abraão (que já havia tido contato com esse Deus antes e fora guiado por Ele até ali), é o significado da experiência de sacrificar um filho, o que para a visão cristã é um espelhamento óbvio do sacrifício de Jesus (primeiro aqui no amor do homem por Deus, depois com Jesus no amor de Deus pelo homem).

  17. Pelo que entendi de alguns comentários devemos concluir que como diz a epístola de Paulo a Tito “Ominia munda mundis”: tudo é puro para os puros, para quem age com intenções puras tudo é permitido, pois para ele, tudo é moral.

    Essa ideia me dá calafrios!

  18. Corretamente, a moral está baseada em obrigações, e estas nos mandamentos divinos. Porém, eles não são “meros caprichos”.

    Craig nunca afirmou que os mandamentos divinos são arbitrários, mas fluem necessariamente a partir da natureza divina. Podemos pensar na lógica como algo análogo.

    Um texto, escrito pelo próprio Craig, ajuda a esclarecer o assunto:
    http://www.reasonablefaith.org/argument-from-morality

  19. A questão é mais árdua do que parece à primeira vista e deve necessariamente respaldar-se não só na ética propriamente dita (ou seja, se Deus de algum modo vincula-se a Si mesmo eticamente) mas também na metafísica do que pode-se compreender seja Deus.
    De fato, colidimos com o paradoxo: se Deus cria a moral, é fundamento desta, por tê-la criado a antecede e por essência seria destituído dela. Esquecemo-nos, entretanto, do requisito essencial da divindade consubstanciado na perfeição, vale dizer, Deus para ser Deus deve ser perfeito; que é ser perfeito? Entre outras coisas ser isento de contradições. Ora, se entre nós, seres imperfeitos, é dito comumente ser contraditório dar ordens e não as cumprir nós próprios (o famoso “faça o que digo mas não faça o que faço”), mais contraditório ainda seria isso para o Ser Perfeito.
    Retornando à questão ética propriamente, penso que a moral é um instrumento – útil e necessário – para seres imersos na materialidade e que necessitam de regras para a conduta. Em outras palavras, só é preciso moral (e ética, e Direito) na escassez, na finitude, quando é preciso distribuir bens de forma restrita. Isso não é aplicável ao infinito, à abundância. Deus, por definição, é infinito, portanto prescinde de moral. É imoral um homem matar outro homem porque aquele que matou não pode restituir a vida. Não faz sentido algum dizer que seria “imoral” Deus matar, pois este tem poder para dar a vida.
    Contudo, não há qualquer meio idôneo para certificar-se de uma suposta ordem divina contrária à moral, a não ser a própria coerência sobre que está fundado o conceito de Deus: por que razão Ele mandaria um homem matar outro homem, contrariamente a seu próprio mandamento, se Ele próprio poderia fazê-lo? E para que ele testaria a fé de alguém mediante atos externos se Ele pode ver as intenções, ler os corações ?
    Neste ponto Abraão não parou para pensar e quase fez uma bobagem.

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