São Tomás de Aquino hoje

São Tomás de Aquino, Carlo Crivelli

O dia 28 de janeiro é a memória litúrgica de São Tomás de Aquino, provavelmente o mais importante pensador cristão – é difícil dizer isso quando lembramos de Santo Agostinho, mas acredito que o próprio Bispo de Hipona subscreveria hoje a minha afirmação –, com contribuições essenciais em todos os campos da filosofia e da teologia. Tendo morrido em 1274, com menos de cinquenta anos, sua extensa obra continua uma fonte inesgotável de sugestões, surpresas e – o fundamental – verdades.

Sua vida foi bem mais movimentada do que parece à primeira vista, tendo em conta a concepção esquemática e falsa que podemos ter a respeito de um frei mendicante da Baixa Idade Média. Basta lembrar que Tomás foi sequestrado pelos irmãos quando jovem; ministrou aulas na Universidade de Paris em um momento agitado, quando as disputas intelectuais geravam paixões intensas, que quase o fizeram ser agredido por uma turba de alunos de professores rivais; defendeu o ideal de vida mendicante, duramente atacado por sacerdotes seculares em uma polêmica aguda; morreu dirigindo-se a um Concílio que pretendia unificar o cristianismo ocidental e oriental, meta até hoje presente na Igreja.

Devo confessar que não apenas admiro o teólogo italiano como um sábio. Tenho uma enorme simpatia por ele, porque era um homem discreto, alegre, humilde, corajoso, amigo e trabalhador. Contudo, é comum que as pessoas o enxerguem como um intelectual sistemático, árido e demasiado lógico, que deixaria de lado aspectos importantes do ser humano, tais como as emoções e a beleza. Um grande amigo, quando critico o que considero a confusão das suas ideias – que normalmente são bastante boas! –, responde-me que sou um “aristotélico-tomista”, e por isso não o compreendo…

Esse tipo de preconceito está bem afastado da realidade. Contam, por exemplo, que quanto Tomás pregava em Nápoles, no final da sua vida, o povo saía da Igreja chorando e batendo no peito, emocionado pelo que ouvira (é verdade que o napolitano não é propriamente fleumático, o que não tira o mérito do santo, ora essa!). Ademais, nosso santo escreveu o ofício do Corpus Christi e o hino Adoro Te devote, obras de arte consumadas, autêntica poesia dificilmente superável.

Hoje, há alguns ótimos livros sobre o Aquinate lançados no Brasil. Vou indicar uns poucos, que podem servir de introdução segura ao estudo do Doutor Angélico. Em primeiro lugar, as duas obras de Jean-Pierre Torrell, OP, publicadas pelas Edições Loyola: Iniciação a Santo Tomás de Aquino – sua pessoa e obra (2ª ed., 2004) e Santo Tomás de Aquino, mestre espiritual. O dominicano francês condensou nelas o trabalho de uma vida dedicada ao estudo do seu confrade, sendo muito bem sucedido. O primeiro livro é uma biografia no sentido clássico, a melhor até hoje existente sobre o santo; o segundo, uma análise da vida interior de Tomás a partir dos seus escritos, uma autêntica jóia, que merece ser estudada com vagar, degustada como o bom vinho.

Mais simples, sem por isso ser menos profunda, é a biografia escrita por Chesterton, Santo Tomás de Aquino. O escritor inglês é sempre brilhante, e não fugiu à regra ao tratar de seu pensador favorito. Há várias traduções, sendo que costumo utilizar a de Carlos Nougué, ele mesmo um amante do tomismo.

Temos hoje no Brasil bons estudiosos da filosofia e teologia de São Tomás. Em primeiro lugar, preciso reconhecer o trabalho admirável de Paulo Faitanin, professor da UFF, em Niterói. Junto com gente talentosa, como Rodolfo Petrônio, da UniRio, e Daniel Pêcego, da UFRRJ, dá vida ao Instituto Aquinate, cujo site sobre o tomismo é excelente. Publicam com constância e qualidade, com pouquíssima estrutura. Eu gostaria de possuir a disciplina e a seriedade desse pessoal!

Outros professores tomistas são o Carlos Frederico e o Sérgio Salles, ambos da UCP. São influenciados pela linha de Cornelio Fabro, que é uma das mais importantes no tomismo das últimas décadas, e cujos pontos centrais me convencem plenamente. Os dois são jovens, estudiosos e excelentes transmissores de conhecimento, o que permite prever-lhes um futuro brilhante. O mesmo se pode dizer de Omayr José de Moraes, responsável por admiráveis edições dos Comentários de São Tomás sobre o Pai Nosso e a Ave Maria.

Para terminar, gostaria de indicar dois livros não lançados por aqui. O primeiro, The metaphysical thought of Thomas Aquinas (2000), de John Wippel, é para quem tem intimidade com o pensamento tomista, não uma porta para nele adentrar. Acredito que seja o melhor a respeito da metafísica de São Tomás, o núcleo da sua filosofia, e corrige alguns pequenos erros de tomistas anteriores. O outro, Les sources de la morale chrétienne, de Servais-Théodore Pinckaers, OP, representou uma impressionante renovação da ética do ponto de vista do Doutor Comum. Pois é, a volta à fonte é a melhor maneira de se rejuvenescer. Está extraordinariamente bem escrito, um deleite para a inteligência.

Bastantes escritos de São Tomás vieram à luz no Brasil recentemente. A edição da Suma Teológica, da Loyola e da Vozes, é bastante aceitável, apesar de dar a impressão em alguns momentos de ter sido traduzida do francês, não diretamente do latim. Vale a pena esperar para que a Editora Sétimo Selo continue seu serviço de publicar obras inéditas do santo, que começou muito bem.

10 comentários em “São Tomás de Aquino hoje

  1. Belas recomendações, Renato. Acho que vale também citar que dá para ler muita coisa dele (tudo, em latim) na internet.

    A obra completa em latim se encontra em http://www.corpusthomisticum.org .

    Em inglês temos:
    Suma Teológica completa e com navegação facílima: http://www.ccel.org/ccel/aquinas/summa.toc.html

    A maioria das obras de S. Tomás, inclusive a Suma Contra Gentiles, questões da Verdade e da Virtude, opúsculos menores, sermões, comentários a Aristóteles e até mesmo parte das quodlibetales: http://dhspriory.org/thomas/

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  3. Caro Renato,

    belo artigo, mas senti falta da menção do grande professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o sacrário da justiça neste país, o tomista Alexandre Sciascia, de quem tive o orgulho de ter seu sido seu aluno na matéria de Direito Romano e, com ele, ter tido um bálsamo de metafísica numa faculdade positivista…

  4. Em 2007 ou 8 a “Sétimo Selo” publicou ótima tradução de leitura esclarecedora sobre “A Política em Aristóteles e Santo Tomás”, de Jorge Martínez Barrera. Para quem ainda tem interesse em buscar na política o trans-político.

    As páginas ali sobre o conceito de “natureza” (“arte de Deus” para o Aquinate; não passível de ser absolutizada como princípio mas inscrita numa “perspectiva teleológica da praxis”) renderiam um bom comment à conversa ali embaixo sobre ciência, conhecimento, Galileu e sua aproximação do “Inferno”.

  5. Renato, otimo texto e Aquino foi fundamental na sistematizacao do pensamento cristao, sobretudo no catolicismo. No entanto discordo de sua sugestao que o Bispo de Hipona subscreveria sua afirmacao sobre Aquino (o maior pensador cristao). Alem de claramente influencia-lo (afinal o Agostinho vem quase 100 anos antes de Aquino), as respectivas obras adotam sistemas filosoficos distintos, resultando em investigacoes e propositos divergentes. Isso sem mencionar algumas linhas de pensamentos conflitantes entre ambos pensadores. Ou seja, apesar do seu excelente texto e da extensa obra de Aquino, creio que nao seja adequado eleger o maior pensador cristao. E, mto menos, que Agostinho concordaria com isso. Abs.

  6. Renato,
    Quando eu era universitário (bota tempo nisso) só era “filosofia” se fosse marxista ou existencialista. Sartre escrevera um livro tentando unir as duas coisas, rejeitado pelos marxistas orientais, mas aceito pelos ocidentais, os quais achavam útil a unificação ideológica do “bloco revolucionário”.
    Depois que o Raymond Aron denunciou a impostura de Sartre, revelando que o “revolucionário de maio/68″ convivera muito bem com o regime fascista da França ocupada, o existencialismo decaiu, mas o marxismo continuou firme na universidade como sendo “palavra final em filosofia”.
    Apesar (e talvez por causa) da sórdida ditadura militar, o “materialismo dialético e histórico” contaminou outros campos do saber, especialmente a antropologia, sociologia e história; falar em tomismo era sinônimo de atraso! Cheirava a “incenso”, diziam.
    A “teologia da libertação” piorou as coisas, pois até padres diziam que o marxismo estava de acordo com o Cristianismo e procuravam esquecer o tomismo.
    Fiquei fora da universidade 20 anos e quando voltei foi como professor de uma matéria jurídica onde não cabia debates filosóficos; dava minha aula e ia embora, mas o pouco que ouvia confirmava que o panorama não mudara. Pouco depois me demiti ao ver que ensinar tomava muito tempo e a minha intensa atividade advocatícia não me permitia ensinar por “amor ao saber”.
    Por isso não sei qual é o panorama hoje, mas folgo em ver gente como você mostrando que o velho São Tomás está bem vivo e ativo. Saravá!

  7. Confesso que senti falta do “Aquinas” do John Finnis.

    No livro há uma das mais relevantes análises da obra de S. Tomás e sua relação com o direito e
    a questão da justiça.

    Uma obra, naturalmente, específica, mas da mesma forma relevante sobre os estudos atuais sobre O Doutor.

  8. PH Ferreira,

    Agostinho morreu em 430 d.C. É bem mais que 100 anos antes…

    Ademais, o bispo de Hipona era neoplatônico (influenciado por Plotino e discípulos); duvido que tivesse algum conhecimento de Aristóteles.

    Acho que o autor do artigo estava se referindo à disciplina e ao caráter sistêmico do pensamento de Tomás. Agostinho tem intuições fantásticas, mas está tudo espalhado nas suas obras. Abraços.

  9. Renato,

    Santo Tomás não seria um monge da Baixa Idade Média (e não da Alta, como você escreveu)?

    Você não colocaria o Jean Lauand nessa lista de bons conhecedores de Aquino no Brasil?

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