Terror estatístico e demonstração

Suponha que um juiz profira uma sentença nesses termos, depois de relatar o processo e as alegações das partes: “Há várias soluções possíveis para o caso. Escolhi uma delas arbitrariamente. Aí vai: o réu deve pagar ao autor o valor de R$ 100.000,00 como indenização por perdas e danos pela razão tal, que aliás é apenas uma entre tantas outras que eu poderia elencar”. A sentença não deixaria de ser sentença; a solução, uma só. Mas estariam as partes contentes com a cláusula “há várias soluções, etc”?

O caso acima serve para ilustrar um ideal sobretudo ético. Relaxar nas exigências  ou seja, abraçar a inexatidão alegando a falência geral da razão diante do contingente –, mesmo que o resultado seja invariavelmente incerto, implica abandonar toda possibilidade de acerto. Os exemplos se multiplicam, e até esferas da vida que parecem totalmente desconectadas entre si podem ser iluminadas por esse mesmo critério. Quando quero abrir uma empresa, se penso que  mais de 80% dos empreendimentos termina em insucesso e ajo com base nessa premissa, é bem provável que fracassarei. E isso não por falta de pensamento positivo. (Provavelmente, se vier a “pensar positivo” e a mentalizar corretamente, meu fracasso será ainda mais retumbante.) Quando sei que o sucesso é improvável, é difícil que venha a me decidir a investir tempo e dinheiro no empreendimento; ambos são limitados, e os costumamos gastar com coisas que valem a pena. Em outras palavras, com coisas que valem o risco, caso ele exista. Duas chances em dez é muito pouco, mesmo com um bom prêmio. Logo, não vale a pena. Ocorre que todos pensam assim — e a estatística global tanto influencia, quanto é construída por, essa atitude sistêmica. Em pratos limpos: cada indivíduo vê que o risco é alto e não se arrisca, e no final das contas o resultado é um risco aparente muito maior do que aquele que existiria numa sociedade de corajosos (a bola de neve do risco cresce em virtude do medo que ela mesma inspira!). É a mesma coisa com o casamento. Com a queda das máscaras que seguravam juridicamente — e isso inclui a religião — os casamentos do passado, os novos casamentos são muito mais arriscados, na superfície. O divórcio consensual é rápido e simples. Digamos que a estatística dos casamentos que vão até o final (a morte de um dos cônjuges) seja de 20%. O medo que inspiram os 80% de casamentos dissolvidos antes do seu término natural leva os jovens casais ao seguinte, e cômodo, raciocínio: “Ih, se dá errado com quase todo mundo, vai dar errado com a gente”. O terror estatístico faz vítimas no empresariado e na vida amorosa — e o mesmo mecanismo da bola de neve está em jogo. Se é tão difícil acertar, o melhor é partir para o vale-tudo. Se não há exatidão, fiquemos com o arbitrário. “Há várias soluções possíveis para o caso; toma essa aqui”.

O remédio para isso? Ora, o de sempre: ignorar as estatísticas, porque elas simplesmente refletem o que fazemos. O que não depende de nós é assunto da realidade exterior. E para o que não tem remédio, resta a sagacidade.

O mesmo ideal se aplica às ciências. Se acreditamos em soluções melhores, se possível exatas, não nos contentamos com soluções arbitrárias. Na busca pela verdade, ou somos obsessivamente exigentes (e corajosos, como o casal que manda passear a estatística nelson-rodrigueana da traição necessária), ou ficamos com a falsidade. O segredo é que, se procuramos a exatidão, obtemos, na pior das hipóteses, o provisório; se buscamos o provisório, não ficamos com nada.

* * *

Vejamos com maior detalhe essa última questão.

Um bom ponto de partida histórico é Aristóteles. Nos Analíticos Posteriores, a ciência demonstrativa é, no dizer de Barnes (Aristotle’s Theory of Demonstration, in Phronesis 14, 1969, p. 123), um sistema axiomático dedutivo que compreende uma série finita de apodeíxeis (demonstrações) conectadas logicamente por silogismos. É discutível se esse mesmo método se aplicaria, por exemplo, à ética filosófica. Mas é verdade que, dentro das limitações cognitivas da área, o ideal é o mesmo. O ponto é que, em áreas em que reina a incerteza, o ideal só é atingido com treino prévio na ciência do demonstrável. Não fosse assim, o corpo de observações contido na Ética Nicomaquéia seria ciência impossível, cheia de contradições conceituais, e portanto inútil; e o juiz ali de cima (desonrando a Jurisprudência, ‘ciência’ que pretende, de modo inédito, dar solução para todos os problemas jurídicos) poderia declarar tranquilamente que está pouco se lixando para a questão de se existe ou não uma solução melhor, já que não há solução exata. Se o rigor é abandonado logo na entrada, o resultado não pode ser outro: o nada. O proceder de Aristóteles é interessante. Embora seja questionável o uso do método demonstrativo em seus tratados, os exemplos dos quais lança mão nos Analíticos Posteriores são quase que predominantemente matemáticos. Barnes calcula que são 69 exemplos matemáticos e 82 não-matemáticos em toda essa obra. Na Ética Nicomaquéia, exemplos matemáticos aparecem a todo momento; ao definir a justiça no livro V, Aristóteles recorre à aritmética e à geometria. Já em Platão, a relação entre o exato e axiomatizável (crê-se que muito da geometria de Euclides já fosse conhecida no século de Platão) e a realidade do mundo é de nada menos que  isomorfismo, a julgar pelos estudos de Geiser (Platons ungeschriebene Lehre, Stuttgart, 1963, p. 317 e ss.): cada ponto da realidade tem um ponto correspondente no espaço matemático. Isso seria anátema para Aristóteles, para quem a matemática deveria ficar longe da metafísica.

Afinal de contas, qual o locus natural do método da demonstração em Aristóteles? A quais ‘ciências’ ele se aplica? A resposta de Barnes é extremamente convincente: a demonstração é o modo adequado de ensinar a partir de premissas conhecidas, e se aplica a qualquer área. Aristotélica ou não — porque há um sem número de problemas exegéticos e filológicos envolvidos –, a tese é digna de consideração, porque permite entrever o melhor modo de ensinar a partir do que é estabelecido. Trata-se das premissas objeto de certa área do conhecimento, cujas consequências se seguem necessariamente, se certas condições forem preenchidas, e cujo grau de certeza depende do tipo de saber envolvido. A demonstração não é parte da investigação per se — e essa é a razão pela qual não julgo correto falar em uma “ciência demonstrável”, termo que usei acima, em oposição às “ciências do inefável”. A demonstração é a espinha dorsal da exposição formal nos contextos da pesquisa e do ensino em qualquer matéria. Isso faz sentido sobretudo porque a demonstração é lógica, e não empírica. (Nota técnica: a lógica não pode dizer nada de novo empiricamente, a não ser por via indireta, pela seguinte razão: se B é consequência da série de sentenças {A1, A2An} que expressam um conjunto de conhecimentos, B não é um fato novo, ao contrário da série referida; mas possivelmente, na ordem epistemológica, constitui uma conclusão nova para o sujeito. Diz Barnes em cit. p. 146: For suppose that we are teaching a pupil by demonstrative means; we assume that he has grasped the relevant logical laws and we tell him a pair of propositions which are to serve as premisses; we then draw the conclusion. The question is: Has the pupil acquired any new knowledge by our taking this last step? It is hard to see the importance of the question: the point surely is that the pupil does know the fact expressed by the conclusion — the precise moment at which he came to know it is of no pedagogic interest. Indeed, if it were the case that, in some sense at least, the pupil knew the conclusion before it was enunciated, that would be all to the good; the task of teaching might be simplified.).

Para os que dizem, portanto, que aos cientistas é que exclusivamente compete o domínio das leis da lógica, Barnes responde (sob a perspectiva de Aristóteles): The theory of demonstration offers a formal account of how an achieved body of knowledge should be presented and taught. O aluno também deve, em primeira mão, dominar as leis do raciocínio, para que possa acompanhar as demonstrações. Isso, pensamos, não é só aristotelismo. É o melhor modo de proceder para se atingir a exatidão adequada e possível a cada área. Não basta um corpo de conhecimentos seguro: é preciso saber tirar as conclusões de modo rigoroso. Quando, comparado ao das ciências exatas, o nosso objeto de estudo possui bases duvidosas, como a ética, isso não dispensa o trabalho de dedução, que no fundo é idêntico ao empreendido pelo físico no expor os seus resultados. Basta que explicitemos nossas premissas. Nesse sentido é o comentário de Tomás de Aquino sobre Aristóteles: In his autem principaliores sunt mathematicae scientiae, propter certissimum modum demonstrationis. Consequenter autem sunt et omnes aliae artes, quia in omnibus est aliquis modus demonstrationis, alias non essent scientiae (Trad. minha: “Destas [ciências], a matemática é a melhor, por ser a mais certa no modo de demonstração. Depois dela vêm as outras ciências, porque esta maneira de demonstrar existe em todas elas; não fosse assim, não seriam ciências”, em Comment. in Arist. Anal. Post. l. 1, cap. 1).

Assim se foge do vale-tudo que costuma ser as ciências humanas, que devem fornecer as melhores soluções a partir de um conjunto de premissas claramente delimitado, e não soluções arbitrárias; porque ex falso quodlibet (daquilo que é falso ou contraditório podemos concluir qualquer coisa). Embora defeituoso — sabemos que seus livros eram apenas como que relatórios de um trabalho em curso, e não tratados prontos –, o espírito do método de Aristóteles é um excelente ponto de partida.

2 comentários em “Terror estatístico e demonstração

  1. Serge: se o problema é epistemológico — e isso mostraria que você cometeu uma impropriedade –, eu conheço os teoremas desde 1997. Não sei se você se refere ao primeiro ou ao segundo deles; mas o estranho é não perceber que ambos dizem respeito à limitação da lógica de primeira ordem vis a vis a aritmética. Basicamente Gödel codificou um enunciado G (‘este enunciado não pode ser provado na teoria T’) numa teoria T e mostrou que, se for consistente, a teoria T é incapaz de provar G, que é indecidível. O assunto é muito distinto, aqui, do dos Analíticos Posteriores, embora a relação já tenha sido feita; o que quero é ficar longe desse terreno espinhoso. Bastaria observar, por exemplo, que a geometria pode ser inconsistente, se expressa de modo completo numa teoria T de primeira ordem (isso Aristóteles não percebeu); mas a matemática consegue tratar de modo adequado a geometria (o que Aristóteles percebeu). A matemática é mais poderosa que a lógica de primeira ordem. O uso dos teoremas da incompletude para matérias que estejam fora do estrito domínio da aritmética (e no âmbito da teoria axiomatizável) é no mínimo discutível. E para fazer isso é preciso começar pelo básico.

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