Há livros que entram na categoria de testemunhos. Alguns deles são verdadeiramente históricos, e isso pode acontecer por dois motivos. Primeiro, porque o autor foi protagonista dos eventos que narra, sendo estes grandiosos e influentes. Um exemplo evidente dessa subcategoria são as memórias de guerra de Winston Churchill ou de De Gaulle, duas figuras de ação, dotadas, ao menos tempo, de uma sólida bagagem intelectual. Contudo, há muito lixo dentre esses testemunhos de protagonistas, porque são também uma forma fácil de ganhar dinheiro, aproveitando-se da própria popularidade e alimentando-a. Daí que políticos e gente famosa adore entrar nesse tipo de empreitada, como Tony Blair, Obama e Sarah Paulin, estes dois últimos contando dos seus sonhos e projetos. Os resultados são muito díspares, e não vou criticá-los, porque não os li, nem tenho interesse em fazê-lo. De fato, é preciso ser criterioso para encontrar aquilo que realmente ajuda e não é um mero panfleto datado.
O outro motivo para um relato desses ser histórico é que os autores, mesmo sendo gente então anônima e sem participação direta nas grandes decisões, possuem qualidades humanas extraordinárias, além de conseguirem descrever com talento e honestidade o que vivenciaram. Para mim, um dos mais importantes livros do século passado é Em busca de sentido – um psicólogo no campo de concentração, de Viktor Frankl, que entra exatamente nesta classe. Juntamos aí um homem brilhante, com enorme sensibilidade e talento literário, sincero e profundo, observando e descrevendo a vida em um campo de concentração durante o holocausto. O resultado não defrauda: é uma obra impactante, enriquecedora, que nos torna mais humanos e, se o permitimos, mais sábios. Acredito que esse livro deveria ser distribuído por todos os lugares, em cópias populares; é uma pena que não tenha a divulgação que merece.
Pois é exatamente com uma citação de Viktor Frankl que se inicia outro livro que incluo nessa mesma categoria: Sobrevivi para contar, de Immaculée Ilibagiza. São as lembranças de uma jovem de vinte e quatro anos, sobrevivente do genocídio de Ruanda, em 1994. Essa moça passou três meses em um banheiro, de aproximadamente 1,20 m2, junto com outras seis mulheres, enquanto o inferno acontecia à sua volta. Nada menos do que um milhão de membros da etnia tutsi foram massacrados em um par de meses. Ela esteve várias vezes a um passo da morte, com as milícias hutus procurando-a incansavelmente e revistando minuciosamente a casa em que ela se encontrava. Um armário diante da porta do esconderijo serviu para despistar os assassinos, o que ela atribui a uma intervenção da Providência.
Não quero adiantar história do livro. Apenas desejo comentar que ler sobre essas situações limite leva a ponderar a própria vida e a enxergar o mundo de uma maneira diferente. A selvageria humana, quando libertada dos seus freios, é algo assustador, que se repete com frequência em lugares e tempos díspares. Amigos e vizinhos, que a recebiam em suas casas, querem três dias depois – literalmente – esquartejá-la. A propaganda falsa e a instilação do ódio possuem uma eficácia diabólica. As centenas de milhares de cadáveres são o mais visível de uma tragédia como essa, e podem fazer com que duvidemos do homem e mesmo de Deus.
Contudo, para mim, esses eventos são uma das melhores provas de que Deus existe e o ser humano tem valor. Porque neles sempre aparecem respostas excepcionais, que dignificam a nossa espécie. A reação de Immaculée é impressionante, e culmina com o perdão aos assassinos da sua mãe e de seu irmão. A evolução espiritual dessa mulher, acontecida em um minúsculo banheiro, no qual ela passava os dias e noites em silêncio, apenas rezando e meditando, mostra que o mais importante é o que passa no interior do ser humano, e que suas ações decorrem disso. Quanto a Deus, se ele não estivesse presente, qual o sentido do sofrimento daquela gente? Interessante que Voltaire, em seu confortável escritório em alguma cidade europeia, escreva palavras indignadas contra Deus devido ao terremoto de Lisboa, enquanto os portugueses, que sofreram na pele o desastre, tenho certeza que rezavam e pediam ajuda à divindade.
A mesma lição traz a ruandesa. Seu testemunho está salpicado de relatos miraculosos, sobre os quais se pode ou não acreditar. O indubitável é a fortaleza de Immaculée, que ela afirma, uma vez e outra, tirar da oração. Lendo o que ela escreveu, é difícil deixar de lhe dar um voto de confiança. Sem alçar os voos psicológicos e mesmo literários de Frankl, ela foi capaz de legar um testemunho tão sincero e poderoso quanto o do psiquiatra judeu. Isso não é pouco! Conhecer a tragédia que se abateu sobre o povo ruandês, e a maneira como essa jovem superou-a, é uma lição valiosa.
Só gostaria de corrigir um dado, a bem da verdade não foram 1 milhão de tusis étnicos que foram mortos- a cifra varia de 400 a 600 mil tutsis , mais cerca de 300 mil hutus que não eram apoiadores do genocídio e foram massacrados pelo simples fato de não quererem assassinar seus vizinhos.