The Sexyness of Principia

Uma das obras mais importantes do século XX, Principia Mathematica de Russell e Whitehead foi recentemente objeto de um novo estudo: a história da sua composição, mais especificamente das mudanças entre a primeira e a segunda edição. Imaginem o que era mandar à impressão um texto que exigia tipos novos, talhados especialmente para o procedimento. (Provavelmente apenas um tipógrafo será capaz de entender o que isso realmente implica.) O estudo inclui uma sessão sobre a recepção da segunda edição do Principia na Alemanha.

Trata-se de obra de Bernard Linsky, intitulada The Evolution of Principia Mathematica: Bertrand Russell’s Manuscript and Notes for the Second Edition, Cambridge UP, 2011.  Acaba de sair uma resenha aqui.

PM é uma obra pouco lida, mas imensamente influente (uma consequência da poderosa vaga provocada por Frege);(*) como isso aconteceu, eu não sei dizer. Uma grande mudança, da primeira para a segunda ed., é a remoção de um axioma (o da redutibilidade), por recomendação do jovem Wittgenstein. Um dos resultados disso é a impossibilidade, pelo tratamento da segunda edição, de se definir número em domínio infinito.

A passagem favorita de muita gente é aquela em que fica estabelecido que 1 + 1 = 2:

File:Principia Mathematica theorem 54-43.png

Garanto aos não-iniciados que PM é muito menos complicado do que parece; não é necessário talento para compreender. A lógica daquele tempo, comedida e segura, tornou-se hoje um campo tão vasto, que respirar passou a ser um privilégio de classe. Acreditava-se que seria possível assentar toda a matemática sobre a lógica clássica:

All mathematics is deducible… from the primitive propositions of formal logic. (**)

O que seria um triunfo para os filósofos. A pergunta permanece aberta, com muitas boas intuições de lá para cá. De qualquer modo, é sempre prudente — e um tanto sexy — voltar aos princípios.

Mas eu lhes garanto. Se é difícil ir até o final dos três volumes do PM — talvez seja até impossível, embora alegue-se que Wittgenstein tenha cumprido a tarefa com êxito –, mais difícil ainda é o PT largar o poder.

_____

(*) O Principia também marca o início do período a partir do qual filósofos dignos do nome já não estão mais dispensados de ignorar lógica formal e matemática. Se esse é o caso do leitor brasileiro e do francófilo deslumbrado com o pós-modernismo, ainda há tempo de correr do prejuízo. Advogo a tese de que é possível aprender um método formal mesmo depois dos 80. Eu comecei aos 85 e veja só.

(**) Principles of Mathematics, § 434. É possível assentar toda a matemática sobre a lógica, ou melhor, reduzir a matemática à lógica? Ou, ainda, afirmar que toda a matemática é um desenvolvimento da lógica? Bem, tente justificar um domínio infinito ou, pior ainda, lidar com um quantificador sobre relações n-árias (“para toda relação R em R^n, R é transitiva”). O universo é finito ou infinito? Não seria esse um problema empírico? Certamente. A lógica não diz nada sobre finitude ou infinitude; não diz absolutamente nada sobre o que há lá fora. Não diz quantos objetos um domínio pode ou não ter; eu preciso assumir, ou negar, o axioma correspondente. No entanto, se me proponho a somar dois conjuntos infinitos, não seria a lógica suficiente para “produzir” a função? O próprio Linsky discute esse assunto em Russell’s Metaphysical Logic, Stanford, 1999.

(***) Não há terceira nota. Mas convido o leitor a ler as tags, para saber exatamente do que trata a Conspiração de Weread-Ferris.

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24 comentários em “The Sexyness of Principia

  1. Renato:

    fnord.

    PS.: Parmenides via Platão, Parm. 146B [Burnet, Oxford 1903]: “tudo relaciona-se a tudo” (πᾶν που πρὸς ἅπαν ὧδε ἔχει, ἢ ταὐτόν ἐστιν ἢ ἕτερον).

  2. estudo filosofia fazem 25 anos e é a primeira vez que leio que só existem dois caminhos nesta disciplina: o da lógica formal e o do pós-modernismo francês! Pífio!

  3. Nem lógica formal,* nem pós-modernismo francês são “caminhos desta disciplina”, e ninguém o disse aqui (leia de novo). Faz 25 anos, certo?

    (*) Lógica formal (na medida certa) é pré-requisito para a filosofia. A não ser que você queira ser um amador — não há problema algum nisso.

  4. Luiz, você pode começar pelo manual do Copi e depois, se tiver fôlego, prossiga pelo Raymond Smullyan, “Lógica de Primeira Ordem”. Ambos foram traduzidos.

  5. Julio, acho que entendi o “sexyness of principia”. Dizem que a sedução é um jogo de mostra-esconde. O que inclusive é próprio do estilo deste post e de tantos do mesmo autor. Muita gente evita a sedução já antevendo a disforia pós-coito do homem satisfeito. Em filosofia, tal disforia não é um problema, porque o filósofo atrás da verdade, na maioria das vezes, é como Marcelo Rubini atrás de Sylvia Rank: nunca pega.

    E já que se falou em Russel, Frege e filosofia analítica, e comentou-se recentemente aqui um artigo de Oliver Sacks, gostaria de compartilhar um trecho do livro “Hallucinations”, que venho lendo, em que todos isso aparece junto num só parágrafo, junto ainda com LSD e uma aranha falante:

    “I went back into the house and had put on the kettle for another cup of tea when my attention was caught by a spider on the kitchen wall. As I drew nearer to look at it, the spider called out, “Hello!” It did not seem at all strange to me that a spider should say hello (any more than it seemed strange to Alice when the White Rabbit spoke). I said, “Hello, yourself”, and with this we started a conversation, mostly on rather technical matters of analytic philosophy. Perhaps this direction was suggested by the spider`s opening comment: did I think that Bertand Russel had exploded Frege’s paradox? Or perhaps it was its voice – pointed, incisive, and just like Russell’s voice (which I had heard on the radio, but also – hilariously – as it had been parodied in Beyond the Fringe).

  6. Realmente o livro do Copi é ótimo pra começar… ensinou tudo que uma leiga como eu precisava saber pra começar =] e o livro do Smullyan é ótimo tb.

    (sim, eu leio os comentário do texto antes de ler o texto em si) Mania, toc, loucura… chame do que quiser ><

  7. ” Acreditava-se que seria possível assentar toda a matemática sobre a lógica clássica” até que Gödel acabou com o sonho da galera… pelo menos era o que eu tinha entendido até hoje =]

    Acho que nem vou comentar a respeito de: “filósofos dignos do nome já não estão mais dispensados de ignorar lógica formal e matemática” por amar os dois assuntos (apesar de não ser excepcional neles) e por concordar absolutamente (comentei, fazer o que, né?)… já passou da hora de filósofo e o pessoal da humanas parar de ter medo de matemática e lógica.

    Livro do Linsky sobre MP devidamente pesquisado e encaminhado, mas creio que tentarei ler o MP antes… se conseguirei não sei. Vamos ver quem é mais teimoso: eu ou MP. Mas já aviso que eu sou muito, mas muito teimosa =p

    p.s: estou tomando coragem pra conseguir o outro livro citado do Linksy =] (sou pão-dura mesmo, mas com livro eu gasto)
    p.p.s:depois da mongol aqui teimar (prova da teimosia aí) e clicar 3 vezes na tag e procurar a tal conspiração… finalmente eu achei isso http://weread.com/author/Joshua+Ferris/11831034 (mandando a panda sentar no canto virada pra parede com chapéu pontudo ><)
    p.p.p.s: nem sei se fazer isso com p.s tá certo
    p.p.p.p.s:eu sempre leio teus textos aqui mas nunca tenho coragem de comentar porque eu sempre acho que o meu comentário é idiota demais, mas com os comentário acima, hoje tive coragem.

  8. É, Fer, Gödel descobriu um desses problemas. Mas não é tudo, e não é de todo problemático; o primeiro resultado importante de Gödel aí é que um sistema axiomático (com uma enumeração algorítmica adequada de axiomas), se for consistente, não permitirá demonstrar todas as verdades sobre as relações entre os números naturais. O sonho da galera era que isso fosse possível. Não é. Mas as bases que essa matemática usa, caso a caso, para provar teoremas, é perfeitamente lógica. Por isso, de algum modo, a matemática pode-se dizer fundada sobre a lógica, e mais exatamente sobre a teoria dos conjuntos. Mas Zermelo-Fraenkel tem alguns problemas, etc.

    Ah, e Fer e Vinícius, fico contente que vocês tenham captado o espírito do post. Gostei muito de ler os comentários de vocês. E que fantástica essa passagem do Sacks! (Li compulsivamente uns três livros dele, em sequência, há uns três anos.)

  9. obrigado pelas dicas, julio. vou comprar o copi e o smullyan [nomes novíssimos para mim]. mas desde já, comecei a me impor uns pequenos exercícios de formalização argumentos como este d hannah arendt:

    “Power and violence are opposites [1]; where the one rules absolutely, the other is absent [2]. Violence appears where power is in jeopardy [3], but left to its own course, it ends in power’s disappearence. [4]”

    [1] V = 1/P
    [2] V → ∞; P = 0
    [3] como operacionalizar a ameaça ao poder? uma taxa de desconto em função de alguma probabilidade?
    [4] e esta assertiva? poder seria função decrescente da taxa de aumento da violência?

    [1] e [2] estão certos?

  10. Caro Luiz, se você tem formação em exatas (engenharia ou algo semelhante), pode partir diretamente para o Smullyan. Todos os livros dele são indicados. Esse de lógica de primeira ordem é provavelmente o melhor já escrito, nesse nível elementar — o que não quer dizer que seja fácil, bem o contrário.

    Formalizar essas sentenças não é nada fácil. E você precisa incluí-las em algum modelo formal já trabalhado. Eu sugiro o trabalho excepcional de Ingmar Pörn, The Logic of Power. Você provavelmente o encontrará na Abebooks, usado. É uma preciosidade. Um outro trabalho nessa linha, mais geral e não aplicado, é o de Sven Ove Hansson, The Structure of Values and Norms. Hansson escreveu bastante sobre epistemologia formal, teoria da decisão e axiologia, além de teoria do risco.

    Embora “poder” seja mais facilmente definível, violência não é. Violação de normas, sim. Em um framework de lógica deôntica é possível começar a trabalhar. “Poder e violência são opostos” tem a seguinte forma lógica: O(p&v). Se você pensar que existe uma relação binária, não reflexiva, simétrica e intransitiva, de oposição entre eles (representada por O), pode formalizar a relação assim: pOv, ou assim O(p,v). Sem uma lógica mais expressiva, como a de Pörn, não dá para ir além disso. O mesmo quanto às outras sentenças. [2] pode ser formalizada com a teoria dos conjuntos: V ∩ P = {∅}. Em teoria de probabilidade, pode-se dizer que os eventos de poder e violência, quando absolutos, são mutuamente excludentes: P(v&p) = 0. Você pode formalizar a relação entre a relação de oposição entre poder e violência e o imperium absoluto de ambos dizendo que O(p,v) -> P(v&p) = 0, que indica que qualquer oposição entre poder e violência implica na absolutização destes, o que por sua vez torna a probabilidade de coexistência impossível. E por aí vai.

  11. Tem algum argumento (silogismo) no post?
    ***
    Julio, vc é o quê? Filósofo? E tem uns 30 anos, não é mesmo?
    ***
    A frase que eu achei mais importante no post é “O Principia também marca o início do período a partir do qual filósofos dignos do nome já não estão mais dispensados de ignorar lógica formal e matemática. ” Eu queria perguntar o porquê.

  12. Jether, o post constitui uma notícia. Nem todo argumento é um silogismo. Desde a idade média já não faz sentido falar em silogismos. Eu não sou filósofo; David Hume era.

    Quanto à sua pergunta, ela exige um artigo inteiro. Um esboço seria: 1) metade da filosofia séria desde os anos 50 do século passado usa lógica formal, e a outra metade usa filologia (a questão é escolher de que parte da filosofia você quer ficar de fora); 2) os métodos formais não são apenas uma tendência, mas uma necessidade desde o início do século XX; 3) é possível que grande parte da filosofia seja substituída pelos métodos computacionais (por enquanto, só a metafísica vem sido submetida a esses métodos), e você não vai querer ficar como o vovô diante de um computador; 4) gente sem treinamento em lógica formal não consegue manejar lógica elementar, e gente com treinamento apenas em lógica elementar não consegue manejar argumentos no nível que a filosofia exige hoje, e mesmo ontem (apontando alto, se chega ao feijão com arroz que, infelizmente, nem os graduados dominam no Brasil); 5) é preciso estudar lógica e compreendê-la para apreciar o seu poder, assim como é preciso assistir a programação em TV digital para experimentar a sua superioridade sobre a tecnologia anterior. Vou parar por aqui.

    A parte histórica da sua pergunta é respondida com mais história: no século XX, o Principia foi um dos veículos mais importantes de divulgação rigorosa da lógica proposicional e do cálculo de predicados, e lançou as bases para o que se fez depois — a começar pelos resultados negativos, mas maximamente importantes, de Post, Turing, Kleene e Gödel.

  13. O que aconteceu com as críticas cinematográficas da Ieda Marcondes tradicionalmente publicadas aqui às sextas-feiras? Por que parou, parou por quê?

    Julio Lemos, desculpe usar esse espaço para postar um comentário que não tem relação com o texto pulicado por você, e, por favor, peça para o Joel ou para a Ieda publicarem aqui uma crítica do filme romeno “Além das Montanhas”.

  14. Blablablá protopositivista de que a lógica é a base da filosofia e a tara irracional por computadores.

    Temos de nos lembrar da surra intelectual que o Milhouse Van Houten da Dicta levou de um “vovô-que-não-sabe-que-a-metafísica-foi-substituída-por-método-computacional”:

    “O sr. Lemos, com toda a evidência, confunde a capacidade de raciocinar logicamente com o estudo especializado da ciência lógica, da tekhne logike fundada por Aristóteles e desenvolvida mais recentemente na forma da lógica matemática. A primeira é um dom natural do ser humano, mais desenvolvido em uns, menos em outros, e não depende em nada de conhecimentos especializados da segunda. O que se usa em filosofia é em geral nada mais que uma lógica prática, ou “arte de pensar”, um instinto lógico, se quiserem, e só de vez em quando a lógica teórica que os lógicos estudam especializadamente. O motivo disso é simples. Assim como um escritor escreve sobre algo da sua experiência real ou imaginativa, e não sobre a correção gramatical daquilo que está escrevendo – tarefa que ele deixa aos gramáticos profissionais –, assim também o foco de atenção do filósofo é algum tema da realidade – ontológico, moral, cosmológico, político etc. – e não a própria estrutura formal do seu discurso, objeto da lógica. Um filósofo pode, é claro, ser também um lógico, mas são atividades distintas. Pode ainda fazer uma terceira coisa, uma filosofia da lógica, mas neste caso ele estará interessado na natureza do pensamento lógico, no seu valor relativo, no seu estatuto epistemológico, na sua função cultural e científica, etc., e não em desenvolver a técnica lógica enquanto tal. Não se pode escrever uma filosofia da lógica sob a forma de um tratado de lógica. No mínimo, essa presunção supõe a incapacidade de distinguir entre linguagem e metalinguagem”.

    Hahahaha.

  15. A briga e a surra acontece nos sonhos dos tolos. Não, eu não o disse e ele obviamente não sabe ler. O positivismo lógico está morto há décadas; mas é sutileza demais para o vovô, que nem o básico tem do mencionado dom natural (é preciso uma dose cavalar de falta de noção para acreditar na astrologia).

    Esse é um site para pessoas normais. Não perca o seu tempo, Pablo Salon.

  16. Ricardo, li muito pouco dele. A mente nunca foi a minha praia. Mas Pinker é certamente respeitável. Deve ser lido por quem se interessa pelo assunto.

  17. Those who know math tend to draw the wrong lessons from it. This is because they want to signal their affinity for math more than they want to communicate the wisdom which do in fact transfer. They would tend to champion things like formal precision not because precision will get you anywhere outside of math (and various allied domains) but precisely because precision is largely useless outside of math. If you find precision difficult then it must be because you are doing something wrong, because we mathematicians seem to have no trouble with it. Oh right, I forgot, you aren’t a mathematician. Ha!

  18. Sark, I do tend to find mathematicians a bit clumsy whenever they find themselves far away from their whereabouts. For instance, they have a hard time with uncomputable problems and frequently embrace strange, to say the least, political doctrines. Nevertheless there is the field of formal methods applicable to (sometimes un-) tractable domains — physics, computers, e. g. — and even ‘quasitractable’ ones, such as natural language, knowledge bases and AI&Law, which I daresay are much harder matters than math, and that require mathematical maturity altogether. Researchers in those fields are precisely the kind of people who do not find trouble with math.

    But I find precision to be a domain-independent virtue. Perhaps you are afraid of precisely laying down your arguments or simply not willing to argue further. Are you? I’d be happy to listen.

    PS: I do appreciate von Neumann’s dictum, not surprisingly quoted by you: “As a mathematical discipline travels far from its empirical source, or still more, if it is a second and third generation only indirectly inspired by ideas coming from “reality” it is beset with very grave dangers. It becomes more and more purely aestheticizing, more and more purely I’art pour I’art. This need not be bad, if the field is surrounded by correlated subjects, which still have closer empirical connections, or if the discipline is under the influence of men with an exceptionally well-developed taste. But there is a grave danger that the subject will develop along the line of least resistance, that the stream, so far from its source, will separate into a multitude of insignificant branches, and that the discipline will become a disorganized mass of details and complexities. In other words, at a great distance from its empirical source, or after much “abstract” inbreeding, a mathematical subject is in danger of degeneration. At the inception the style is usually classical; when it shows signs of becoming baroque, then the danger signal is up.”

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