Tiranicídios II ou Fiat Lex

CommonLaw1959

 

 

Marcos Paulo Fernandes de Araujo*

 

No artigo que escrevi há algumas semanashttp://www.dicta.com.br/tiranicidios/, procurei ilustrar a semelhança entre a inflação – especialmente a decorrente da capacidade dos governos de emitir moeda ex nihilo (fiat inflation) –, que transmite uma informação falsa principalmente no que concerne à quantidade de coisas à disposição no mercado, e o fenômeno da novilíngua, que comunica informações falsas sobre a essência das coisas na realidade circundante, ambos como meios de falseamento da realidade, suscetíveis de se tornarem instrumentos de tirania. Neste artigo, continuo minha digressão.

O Brasil era, até bem pouco tempo, um país que lidava com sérios problemas relacionados à inflação. As soluções intentadas para tal problema neste país sempre proporcionaram ao mundo amostras sucintas da nossa genialidade, do nosso ‘jeitinho’, e até hoje deleita aqueles que procuram estudar a sua história. Um dos maiores gênios deste país, na matéria, foi Ruy Barbosa (não por acaso, um jurista), que deu uma bela demonstração de como se lidar com o atraso econômico no episódio do Encilhamento, ao pretender que o problema da industrialização do país se resolveria pela mera impressão de algarismos a esmo sobre pedaços de papel distribuídos à população.

Desde então, o país inegavelmente avançou nessa matéria e, de fato, após tentativas de outra classe – como o tabelamento de preços do Plano Cruzado –, finalmente chegou ao Real. Hoje já não se pensa, pelo jeito, que a impressão de mais notas chegue a constituir algum enriquecimento para a população e a inflação caiu vertiginosamente e vem se mantendo a patamares toleráveis já há algum tempo, embora haja indícios para se pensar que esta tendência pode estar sendo revertida.

Há outra modalidade de impressos governamentais, contudo, que ainda é amplamente considerada como fonte mágica de solução de problemas pela maioria dos brasileiros. A importância que o brasileiro médio atribui às leis positivas como instrumento de modificação da realidade política do país parece não encontrar precedentes em nenhum outro lugar do mundo – a esta crença une-se curiosamente outra, a de que ele não está absolutamente obrigado a cumpri-la quando lhe convenha; ao menos é o que se depreende ao andar de carro pelo Rio de Janeiro. Aqui, modificar as leis (ou criá-las, novas) é considerado remédio para tudo, ainda que ele deva permanecer apenas na prateleira.

Deste modo, não surpreende o amplo prestígio e aceitação de que desfrutou o positivismo jurídico no Brasil durante o século XX. Essa corrente de pensamento, nitidamente revolucionária se baseia, como assume Bobbio, no pressuposto de que “dar prevalência à lei como fonte de direito nasce do propósito do homem de modificar a sociedade”[1]. Como os próprios positivistas proclamaram por inúmeras vezes na Conferência de Bellagio, sua doutrina era considerada entre eles como poderoso instrumento de luta contra a moral católica.[2] Só mesmo em um país como o Brasil ela poderia ter caído nas graças de gente sedizente conservadora.

Pretender, contudo, modificar a sociedade, seja a golpes de cinzel (ou mesmo de foice e martelo), é uma estratégia que, mesmo quando fadada ao fracasso pela própria natureza da matéria, encontra sempre uma conclusão em favor do Estado, que se arroga ter sempre a Razão, que é sempre aquilo que favorece mais o uso da violência. Assim, se ele não é capaz de coibir um comportamento sobre o qual por sua própria natureza sequer deveria tratar, jamais se contenta em retirar-se. O Estado moderno baseia-se na lógica de que toda a violência é legítima, desde que tenha origem nele ou sua chancela, independentemente do sentido. Assim, por ser baseado na violência, a tendência do Estado sempre degenerar em favor da lei do mais forte. Deste modo, quando não se encontra capaz de combater o que é errado, passa para o lado deste, que normalmente é também o lado do mais forte, e oprime não somente o fraco, mas insurge-se contra tudo que é justo.

Ambos os fenômenos – tanto o fiat lex quanto o fiat money – são somente amostra do materialismo em que chafurda a sociedade ocidental há séculos, do qual são acusados (a meu ver, sem razão) os ingleses e, principalmente, os anglo-americanos. Seu paralelo com o ouro é claro. Basta atentar para o fato de que tanto a Inglaterra quanto os E.U.A., últimos países a abandonar o padrão-ouro, são também os países do direito consuetudinário que, como afirmou Bobbio, “não pode, de fato servir a tal finalidade [a modificação da sociedade pelo homem], porque […] é um direito que exprime e representa a estrutura atual da sociedade e, conseqüentemente, não pode incidir sobre esta para modificá-la; a lei, em lugar disto, cria um direito que exprime a estrutura que se quer que a sociedade assuma.”[3] De igual modo o dinheiro de papel, que não exprime as riquezas atuais da sociedade, mas as que se deseja que ela produza (ainda que disso não seja capaz).

A tradição do common law, diferentemente do fiat lex, encontra desde os seus primórdios, uma relação com a Lei Natural, como bem demonstrado por Kantarowicz, em Os dois corpos do rei, ao discorrer sobre o De legibus et consuetudinibus Angliae de Henri de Bracton, jurista inglês do século XIII, que demonstra o quanto o direito praticado na Inglaterra se aproximava da perspectiva aristotélica, ao mesmo tempo em que Frederico II pretendia relacionar suas leis para o Reino das Duas Sicílias (aliás codificadas no Liber Augustalis) não à lei natural encerrada na tradição, mas numa lei da Razão; uma Razão (germe da Razão de Estado, segundo Voegelin) que poderia, com efeito, ser qualquer coisa que o Imperador quisesse.

É portanto, uma doutrina favorável à tirania, no sentido aristotélico. Aristóteles, ao diferenciá-la da monarquia absoluta (legítima), afirma, na Política, que um só homem sábio pode ser melhor que todas as leis escritas, mas que, contudo, as leis dos costumes são mais eminentes e lidam com assuntos mais eminentes que as leis escritas e que, portanto, se um homem está menos sujeito a erro do que as leis escritas, encontra-se mais sujeito a nele incidir, quando se trata das leis dos costumes. Ou seja, mesmo o monarca absoluto deve se abster de interferir com esse tipo de lei, para que seu regime não degenere em tirania.

Ambos os fenômenos são sintomas de materialismo, como disse acima. Retirar o valor de troca de algo que é valioso em si, como o ouro – pela sua durabilidade, beleza, etc. – para colocá-lo em algo que em si tem valor ínfimo, como o papel – que, recorde-se, é feito a partir do mesmo substrato que deu origem à própria palavra matéria, a madeira – é transformar o dinheiro em mero instrumento, mero meio, mera causa eficiente. De igual maneira, transformar a lei em mero instrumento da vontade de poder de uns poucos quantos é retirar o valor que esta tem em si – isto é, independentemente do seu efeito exterior. Assim, a lei, como o dinheiro, se multiplica em quantidade e se degenera em qualidade, tornando-se veículo para a ascensão de um governo tirânico. Talvez, não também por acaso, Alemanha e Itália (berços do positivismo jurídico e, mutatis mutandis, principais forças do Império de Frederico II) tenham sido precisamente os dois países da Europa Ocidental onde o totalitarismo mais avançou.

**A meu tio-avô, Manoel da Costa Rabello Filho, in memoriam.

[1] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico, p. 120.

[2] MASSINI CORREAS, Carlos Ignácio. Filosofia del Derecho: Tomo I. 2 ed. p. 214.

[3] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico, p. 120.

 

* Marcos Paulo Fernandes de Araujo é bacharel, e mestre em Teoria e Filosofia do Direito, pela Faculdade de Direito da UERJ.

 

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